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Nobel da Paz relata estupros usados como arma de guerra na República Democrática do Congo

Denis Mukwege, ginecologista congolês, dedicou prêmio a todas as vítimas de violência sexual ocorridas em diversas regiões de conflitos por todo o mundo
Denis Mukwege
The Nobel Foundation

Tradução:

Denis Mukwege, médico congolês, ganhou o prêmio Nobel da Paz. Discursando em Oslo, ele jogou na cara dos ricos e poderosos do mundo toda a miséria e violência que reina nos países em conflito, particularmente na República Democrática do Congo.

A violação de meninas, meninos, mulheres e até de bebês tornou-se rotina utilizada como arma de guerra. Como não assombrar-se diante de tanta violência? Ao dedicar seu prêmio a todas as vítimas de estupros e de genocídios que os Estados assistem com indiferença, ele faz um apelo: façamos a guerra contra a indiferença. E pede socorro para que seu povo encontre o caminho da paz, que toda a África encontre o caminho da paz.

Denis Mukwege, ginecologista congolês, dedicou prêmio a todas as vítimas de violência sexual ocorridas em diversas regiões de conflitos por todo o mundo

Umeå universitet
Denis Mukwege, médico congolês, ganhou o prêmio Nobel da Paz.

Confira a íntegra do discurso de Mukwege:

A violência macabra não conhece nenhum limite

Na noite trágica de 6 de outubro de 1996, os rebeldes atacaram nosso hospital em Lemera, na República Democrática do Congo (RDC). Mais de trinta pessoas assassinadas. Os pacientes foram abatidos em seu leito à queima roupa. As pessoas que não conseguiram fugir foram mortas a sangue frio.

Eu não podia imaginar que isso era apenas o começo.

Obrigados a abandonar Lemera, em 1999, nós criamos o hospital de Panzi em Bukavu, onde eu trabalho até hoje como ginecologista-obstetra.

A primeira paciente admitida foi uma vítima de violação que recebeu um tiro de arma de fogo nos órgãos genitais.

A violência macabra não conhece nenhum limite.

Essa violência, infelizmente, jamais cessou.

Um dia como os outros, o hospital recebeu um apelo.

Na entrada, um colega em lágrimas implorava: ”por favor, envie-nos rapidamente uma ambulância. Por favor, depressa.”

Assim, nós enviamos uma ambulância, como fazemos habitualmente.

Duas horas mais tarde a ambulância regressou. Dentro dela, uma criança de justos 18 meses. Ela sangrava abundantemente e imediatamente foi levada à sala de cirurgia.

Quando eu cheguei, as enfermeiras estavam todas chorando. Os aparelhos genitais e urinários e seu reto estavam gravemente danificados.

Por uma penetração de um adulto.

Nós rezamos em silêncio: “Deus meu, diga-nos que isso que estamos vendo não é verdade.

Diga-nos que isso é um pesadelo.

Diga-nos que ao acordarmos tudo estará bem.”

Mas isto não era um pesadelo.

Era a pura realidade.

Tornou-se nossa nova realidade da RDC.

A impunidade dos poderosos

Quando um outro bebê chegou, eu concluiu que esse problema não se soluciona com cirurgias em bloco, mas que era necessário lutar contra as causas profundas de tais atrocidades.

Eu me desloquei para a vila de Kakumu para conversar com os homens: “por que vocês não protegem seus bebês, seus filhos e suas mulheres? Onde estão as autoridades?”

Para minha grande surpresa, os aldeões conheciam o suspeito. Todo mundo tinha medo dele, pois é membro do Parlamento Estadual e gozava de um poder absoluto sobre a população.

Havia vários meses que sua milícia aterrorizava o povoado inteiro. E tinha infundido o medo depois de ter assassinado um defensor dos direitos humanos que teve a coragem de denunciar esses fatos. O deputado, saiu sem consequências. Sua imunidade parlamentar o permite abusar de tudo impunemente.

Esses dois bebês foram seguidos de dezenas de outras crianças violadas.

Depois que chegou a 48o vítima nós ficamos desesperados.

Com outros defensores de direitos humanos, procuramos um tribunal militar. Finalmente os estupradores foram perseguidos e julgados como crime contra a humanidade.

As violações de bebês em Kavumu pararam.

As emergências no hospital de Panzi também.

Porém, o futuro psicológico sexual desses bebês é hipotético.

Ausência de educação criou uma espiral de violência

O que ocorreu em Kavumu e o que continua hoje em numerosos lugares no Congo, tais como as violações e os massacres em Bèni e em Kasai, e isso é possível pela ausência de um estado de direito, a ruína dos valores tradicionais e o reino da impunidade, em particular pelas pessoas que estão no poder.

As violações, os massacres, tortura, a insegurança difusa e a flagrante ausência de educação criaram uma espiral de violência sem precedente.

O balanço humano desse caos perverso e organizado é de centenas de milhares de mulheres violadas, mais de quatro milhões de pessoas deslocadas para o interior do país e a perda de seis milhões de vidas humanas. Imagine, o equivalente a toda população da Dinamarca dizimada.

Os guardiões da paz e os especialistas das Nações Unidas não economizaram esforços. Muitos encontraram a morte no cumprimento de seu mandato. A Missão das Nações Unidas na RDC continua presente nos dias de hoje a fim de que a situação não degenere ainda mais.

Nós estamos agradecidos por isso.

Entretanto, apesar dos esforços, essa tragédia humana continua sem que todos os responsáveis sejam perseguidos. Só a luta contra a impunidade pode mudar a espiral de violência.

Nós temos todo o poder para mudar o curso da História, desde que as convicções pelas quais nós lutamos sejam justas.

A todas as vítimas de violências sexuais através do mundo eu dedico este prêmio.

Vossas Majestades, vossas altezas reais, excelências, distintos membros do Comitê Nobel, madame Nadia Murad, senhoras e senhores, amigos da paz.

É em nome do povo congolês que aceito o prêmio Nobel da Paz. É a todas as vítimas de violências sexuais através do mundo que eu dedico este prêmio.

É com humildade que me apresento trazendo em alto a voz das vítimas de violências sexuais nossos conflitos armados e as esperanças de meus compatriotas.

Aproveito essa ocasião para agradecer a todos os que durante esses anos apoiaram nossa luta. Penso, em particular, às organizações e instituições dos países amigos, em meus colegas, a minha família e a minha querida esposa, Madeleine.

Meu nome é Denis Mukwege. Venho de um país dos mais ricos do planeta. No entanto, o povo de meu país está entre os mais pobres do mundo.

A realidade gritante é que a abundância de nossos recursos naturais -ouro, coltan, cobalto e outros minerais estratégicos- alimenta a guerra, fonte da violência extrema e da pobreza abjeta no Congo.

Nós amamos os belos automóveis, as jóias e acessórios. Eu mesmo tenho um smartphone. Esses objetos contêm os minérios de nossa terra. Historicamente extraídos em condições desumanas por jovens, vítimas da intimidação e de violências sexuais.

Quando você conduz seu carro elétrico, utiliza seu smartphone ou admira suas joias, reflita por um instante o custo humano da fabricação desses objetos.

Enquanto consumidores, o menos que se pode fazer é insistir para que esses produtos sejam fabricados com respeito à dignidade humana.

Fechar os olhos diante desse drama é ser cúmplice.

Não são somente os autores de violências os responsáveis pelos crimes, mas também aqueles que escolhem desviar o olhar.

Os lucros dos minérios vão para oligarquia predatória

Meu país é sistematicamente pilhado com a cumplicidade de pessoas que pretendem ser nossos dirigentes. Roubam por poder, riqueza e glória. Roubam dos milhões de homens, mulheres e de crianças inocentes abandonados em uma miséria extrema… Enquanto que os lucros dos nossos minerais vão para as contas de uma oligarquia predatória.
Já faz vinte anos, dia após dia, que no hospital de Panzi eu vejo as consequências declinantes dos maus governos do país.

Bebês, meninas, mulheres jovens, mães, avós e também homens jovens, violados de maneira cruel, seja em público e nos coletivos, introduzindo plásticos em chama ou objetos contundentes nas genitais.

Eu vos poupo dos detalhes.

O povo congolês é humilhado, maltratado e massacrado desde duas décadas à vista e no seio da comunidade internacional.

Hoje, graças às novas tecnologias de informação e da comunicação, nenhuma pessoas pode dizer: eu não sabia de nada.

Com este prêmio Nobel da Paz,, eu apelo ao mundo para que seja testemunho e eu exorto a todos a juntar-se a nós para acabar com esse sofrimento que envergonha nossa humanidade comum.

Precisamos urgentemente de paz

Os habitantes de meu país desesperadamente precisam de paz.

Mas:

Como construir a paz sobre as fossas comuns?

Como construir a paz sem uma verdadeira reconciliação?

Como construir a paz sem justiça nem reparação?

No momento em que vos falo, um informe está sendo preparado num escritório de Nova York. Redigido a partir duma pesquisa profissional e rigorosa sobre os crimes de guerra e as violações dos direitos humanos perpetrados no Congo. Essa pesquisa identifica explicitamente as vítimas, os lugares, as datas mas omite os autores.

Esse Informe do Projeto Mapping estabelecido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, descreve nada menos que 617 crimes de guerra e crimes contra a humanidade e talvez crimes de genocídio.

O que deve merecer a atenção do mundo?

Não há paz duradoura sem justiça. Ou, a justiça não se negocia.

Tenhamos a coragem de olhar crítica e imparcialmente os acontecimentos que ocorrem desde há muito tempo na região dos Grandes Lagos.

Tenhamos a coragem de revelar os nomes dos autores dos crimes contra a humanidade para evitar que continuam a enlutar a região.

Tenhamos a coragem de reconhecer nossos erros do passado.

Tenhamos coragem de dizer a verdade e de realizar o trabalho de memória.

Queridos compatriotas congoleses, tenhamos a coragem de tomar nosso destino em nossas mãos. Construamos a paz, construamos o futuro de nosso países, juntos construamos um futuro melhor para África. Ninguém fará isso por nós.

Quadros de uma realidade sinistra

Senhoras e senhores, amigos da paz.

O quadro que eu lhes mostrei oferece uma realidade sinistra. Contudo, permita-me  contar-lhes a história de Sarah.

Sarah nos foi levada ao hospital num estado crítico. Sua aldeia tinha sido atacada por um grupo armado que massacrou com toda sua família, deixando-a só.

Sequestrada, ela foi levada para a floresta. Amarrada a uma árvore. Nua. Todos os dias, Sarah foi submetida a violações coletivas até perder a consciência.

O objetivo dessas violações utilizadas como armas de guerra é destruir Sarah, sua família e sua comunidade. Em resumo, destruir o tecido social.

Quando chegou no hospital, Sarah não podia nem andar nem mesmo ficar de pé. Ela já não conseguia reter a urina nem as fezes.

Consequência dos graves ferimentos nos aparelhos gênito-urinário e digestivo, associado a uma infecção, ninguém podia imaginar que um dia ela seria capaz de manter-se em pé.

Contudo, a cada dia que passava, o desejo de continuar a viver brilhava nos olhos de Sarah. Cada dia que passava, era ela que encorajava o pessoal a não perder a esperança. Cada dia que passava, Sarah lutava por viver.

Hoje, Sarah é uma bela mulher, sorridente, forte e cativante.

Sarah se dedica a ajudar as pessoas que sobreviveram a uma história semelhante a sua.

Sarah recebe 50 dólares, uma dotação de nossa casa de acolhimento às mulheres que precisam reconstruir suas vidas social e economicamente.

Hoje Sarah dirige sua pequena empresa. Ela comprou um terreno, A Fundação Panzi ajudou com materiais para ela construir um teto. Construir uma casa, é autônoma e produz.

Sua história mostra que mesmo numa situação assim de difícil que parece desesperada, com determinação, é possível ver uma luz no fundo do túnel.

Se uma mulher como Sarah não desiste, quem somos nós para abandonar?

Esta é a história de Sarah. Sarah é congolesa. Más há muitas Sarah’s na República Centro-africana, na Colômbia, na Bósnia, em Myanmar, no Iraque e em todos os países em que há conflitos no mundo.

O trabalho de transformar sofrimento em poder

A Panzi, nosso programa de sentido holístico, compreende atendimento médico, psicológico, socioeconômico e jurídico, demonstra que, mesmo que a rota contra a miséria seja longa e difícil, as vítimas têm o potencial de transformar seus sofrimentos poder.

Elas podem se tornar atrizes de mudanças positivas na sociedade. É o caso da Cité de la Joie, nosso centro de reabilitação em Bukavu, onde as mulheres são ajudadas e retomar seus destinos nas mãos.

Não obstante, elas não podem chegar sozinhas e nosso papel é de estimular como hoje vemos a madame Nadia Murad. Querida Nacia, sua coragem, sua audácia, sua capacidade nos deu esperança, são fonte de inspiração para o mundo inteiro e pra mim pessoalmente.

O prêmio Nobel da Paz que nos outorgam hoje não terá valor real se não puder mudar concretamente a vida das vítimas de violências sexuais pelo mundo e contribuir à conseguir a paz no Congo.

Bom, o que podemos fazer?

O que você pode fazer?

Primeiramente, é nossa responsabilidade atuar nesse sentido.

Atuar, agir, é uma escolha.

É uma escolha: acabar ou não a violência contra as mulheres.

Criar ou não uma masculinidade positiva que promova a igualdade dos sexos, em tempos de paz como em tempos de guerra.

É também uma escolha:

– Sustentar ou não uma mulher,

– Protegê-la ou não,

– Defender ou não seus direitos,

– Lutar ou não a leu lado nos países arrasados por conflitos.

É uma escolha: construir ou não a paz nos países em conflito.

Agir é recusar a indiferença.

A guerra contra a indiferença

Se é necessário fazer a guerra, é a guerra contra a indiferença que assola nossas sociedades.

Nós somos todos devedores a essas mulheres e seus próximos e devemos travar esse combate. Pressionar os Estados para que parem de acolher os dirigentes que queimaram, utilizaram violência sexual para capturar o poder.

Em vez de acolher esses dirigentes com tapete vermelho, os Estados devem estender uma linha vermelho contra a utilização de violações como arma de guerra. Uma linha vermelha que será sinônimo de sanções econômicas, políticas e de processos judiciais.

Praticar um ato de justiça não é difícil. É uma questão de vontade política.

Outro ponto, devemos reconhecer o sofrimento dos sobreviventes de todas as violências praticadas contra mulheres nos conflitos armados e manter de maneira holística no processo de apaziguamento.

Insisto sobre as reparações. Medidas que lhes deem compensação e satisfação e lhes permita começar uma nova vida. É um direito humano.

Apelo aos Estados a que apoiam a iniciativa de criar um Fundo global de reparação para as vítimas de violência sexual nos conflitos armados.

Em nome de todas as viúvas, todos os viúvos e dos órfãos dos massacres cometidos na RDC e de todos os congoleses amigos da paz, apelo a comunidade internacional a por fim considerar o Informe do Projeto Mapping e suas recomendações.

Que o direito se imponha

Isso permitirá que o povo congolês finalmente possa chorar seus mortos, fazer seu luto, superar seu sofrimento e se proteger serenamente no futuro.

Finalmente, depois de 20 anos de derramamento de sangue, de violações e deslocamento massivo de populações, o povo congolês espera desesperadamente que se aplique a responsabilidade de proteger as populações civis quando seus governos não podem ou não querem fazer. Esperam de poder explorar o caminho de uma paz duradoura.

Essa paz passa pela realização de eleições livres, transparentes e confiáveis.

Ao trabalho, povo congolês. Construamos um Estado onde o governo esteja a serviço de sua população. Um Estado de direito, emergente, capaz de realizar um desenvolvimento duradouro e harmonioso, não só na RDC, mas em toda a África. Construamos um Estado onde todas as ações políticas, econômicas e sociais sejam centradas na humanidade e onde a dignidade cidadã seja restaurada.

Vossas Majestades, vossas altezas reais, excelências, distintos membros do Comitê Nobel, amigos da paz.

O desfecho é claro. Ele está em nossas mãos. Pela Sarah, pelas mulheres, os homens e as crianças do Congo, eu faço um apelo urgente de não só nos conceder o Prêmio Nobel da Paz, mas que todos vocês se empenhe a dizer bem alto: a violência na RDC já basta! Já é demais! A paz imediatamente!

Agradeço a todos,

Denis Mukwege

Direitos da © The Nobel Foundation, Stockholm, 2018. Publicação e tradução autorizada


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Denis Mukwege

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