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Marcas da devastação provocada pelo Vulcão do Fugo na região de Escuintla, a 60 quilômetros da Cidade da Guatemala | Foto: Governo da Guatemala
Na conduta dos governantes há extremos impossíveis de ignorar. Retrocessos capazes de esmagar não apenas a dignidade das pessoas, mas também sua integridade física e moral. Atos de tal magnitude fazem despertar todos os alarmes, especialmente se forem cometidos por aqueles que se supõe que devem administrar com ética e transparência os bens do Estado. O exemplo mais ilustrativo desses desmandos está aí, na Guatemala e à vista do mundo.
Carolina Vásquez Araya*
Algumas vezes acreditei ter visto os extremos da perversidade nos círculos do poder. Mas o que aconteceu antes e durante a erupção do Vulcão de Fogo ultrapassou tudo o que se pode imaginar. As hordas governamentais não tardaram em se organizar, mas não para alertar a população em risco, mas sim para se apoderar do fluxo de ajuda recolhida pela cidadania e fingir, por meio de atos indignos de seres humanos, que ela provinha do governo. Não contentes com essa farsa, alguns prefeitos assumiram um poder ilegítimo para proibir a entrega direta de víveres e outros insumos à população afetada, abrigando os doadores a depositá-los em seus depósitos, talvez com o propósito de utilizá-la em seu favor em alguma próxima campanha eleitoral.
Mas o mais aberrante foi a atitude das autoridades no tratamento da população infantil guatemalteca refugiada; são crianças que perderam tudo. São as vítimas de sempre, a infância desprotegida por ser pobre, indígena e camponesa. Tenho na memória a inconcebível imagem da repartição de bananas e a marca com tenta na testa dessas crianças para que não ousassem pedir outra. Será a instauração do Último Reich na Guatemala? Coincidem estas atrocidades com as perversas intenções do congresso, cujo propósito é marginalizar legalmente toda diversidade sexual mediante obscuros pactos em meio ao caos? É parte do novo regime ditatorial legislar para eliminar as penas por crimes de lesa humanidade? Com que autoridade essas quadrilhas arremetem contra os pequenos avanços alcançados na busca de uma sociedade justa e igualitária?
No meio da dor e da raiva é impossível passar por alto que um funcionário aparentemente não identificado teve o gesto de avisar nas primeiras horas da manhã do domingo a gerência de um exclusivo clube de golfe porque aí se hospedavam pessoas importantes. Evacuaram as instalações do clube às dez da manhã. Todos se salvaram. Enquanto isso, a Comissão para a Prevenção de Desastres emitia um comunicado afirmando que não era necessária a evacuação. Será outra estratégia contra a população indígena? Centenas de vítimas fatais merecem agora investigação, justiça e reparação por parte de um governo que lhes negou o direito de ter uma oportunidade de sobreviver, ainda que fosse mínima.
Vivi o terremoto de 1976 e vi com meus próprios olhos como o “glorioso” Exército se apropriava da ajuda internacional. Barracas luxuosas, hospitais de campanha, mantas, víveres, roupa, remédios… Quando se assinaram os Acordos de Paz pensei que jamais voltaria a acontecer semelhante despojo mais eis aqui a história repetida com calculada maldade, só que nesta ocasião com maior desfaçatez, se é que isso é possível.
Médicos voluntários clamando por remédios porque as autoridades os armazenaram e não lhes permitem o acesso a eles. Rostos de centenas de cidadãos solidários marcados pela impotência e o cansaço, sempre prontos a oferecer o pouco que têm para salvar a vida de outros, ficaram como imagem inapagável em nossa memória.
Será a Guatemala um ensaio de laboratório para repetir os desmandos do nazismo?
*Colaboradora de Diálogos do Sul, da Cidade da Guatemala