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Niko Schvarz*
O 190º aniversário da independência do Estado Plurinacional da Bolívia foi comemorado na sexta-feira, 7, em uma recepção realizada no histórico edifício Mauá da rua Juan Carlos Gómez, durante a qual, depois de depositar uma oferenda floral ao pé do monumento a Artigas, na Praça Independência, o embaixador Benjamín Blanco Ferri fez um ilustrativo resumo das principais conquistas alcançadas pelo governo de Evo Morales no último período.
Previamente destacou o significado histórico desta data do ano de 1825, associada indissoluvelmente ao nome do Libertador Simón Bolívar com que foi batizada a nascente república, unido, na gesta independentista do domínio espanhol, a Antonio José de Sucre e Andrés de Santa Cruz, juntamente com líderes indígenas autóctones, como Tupak Katari e Bartolina Susa, dos quais o atual presidente Evo Morales é fiel continuador.
Desde 2006 operou-se uma verdadeira refundação do país, dando à luz o Estado Plurinacional da Bolívia, que se consolidou em 2009 com a nova Constituição Política do Estado, atravessando um processo de profundas transformações, que permitem afirmar que hoje, a 190 anos de sua independência, a Bolívia sente-se plenamente livre, digna e soberana.
Em suas palavras, o embaixador recordou que em data ainda muito recente a Bolívia era considerada um estado quase falido, um país inviável; e hoje seus avanços no terreno econômico e social são reconhecidos no plano internacional, tendo à frente o primeiro presidente indígena do continente. Junto com melhores indicadores macroeconômicos, a Bolívia conta hoje com a maior estabilidade social e política de sua convulsionada história.
Em primeiro lugar, entre os principais índices que sustentam a transformação que o país experimentou, está o fato de que aumentou de 1.000 para 3.000 dólares o Produto Interno Bruto (PIB) per capita; 4 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza e 1 milhão de pessoas da pobreza extrema, tudo isso no contexto de uma população que em 2013 chegava a pouco mais de 10 milhões de habitantes. O salário mínimo nacional quadruplicou no mesmo período.
Outro fato fundamental em um país como a Bolívia é que foi recuperado o papel do Estado na economia. Obteve-se para este ano de 2015 um investimento público de 7,8 bilhões de dólares, enquanto que, em 2005, este investimento era de apenas 600 milhões de dólares. E isso com recursos próprios, não com doações ou créditos. Do mesmo modo, foi possível abater sensivelmente a dívida externa, que representava, em 2005, 74% do PIB e hoje implica em apenas 26% daquele índice.
Sobre estas sólidas bases, o presidente Evo Morales estabeleceu um plano de 10 anos, apoiado em 13 pilares, para continuar avançando na construção de uma nova sociedade e de um Estado mais inclusivo e participativo, mais democrático, sem discriminação nem racismo, sem ódios nem divisão, tal qual ordena a Constituição Política do Estado. Isto implica trabalhar pela industrialização de seus recursos naturais, e fazê-lo em plena harmonia com a Mãe Terra e o respeito às normas ecológicas.
Vínculos fraternos entre a Bolívia e o Uruguai
Os vínculos fraternos entre a Bolívia e o Uruguai são muito firmes e vêm de muitas décadas. Segundo seu embaixador, a Bolívia valoriza muito o esforço que o governo uruguaio realiza para que seu país ingresse na condição de membro pleno do MERCOSUL. Ao mesmo tempo, destaca o inalterável apoio do Uruguai frente as duras condições da Bolívia como país privado de seu litoral marítimo por uma injusta guerra, promovida por interesses transnacionais. Agradece ao governo, assim como a personalidades e artistas uruguaios, esse apoio solidário, expressando sua convicção de que, por meio do diálogo e do respeito ao direito internacional, conseguirá retornar ao mar com soberania. Ao mesmo tempo, valoriza as facilidades e concessões outorgadas pelo Uruguai à Bolívia para o acesso ao Oceano Atlântico por seus portos, e afirma que isso será reforçado com o ingresso pleno da Bolívia no MERCOSUL.
Afirmou ainda que os laços de irmandade, de cooperação e de complementaridade entre nossos dois países têm se fortalecido nos últimos anos, como o prova uma série de fatos. Entre eles, a contratação da fábrica Envidrio, recuperada por seus trabalhadores, para instalar nesse âmbito a Empresa Pública Produtora de Embalagens de Vidro da Bolívia. Em um plano análogo situa-se a pronta aquisição de Unidades Potabilizadoras de Água de nosso país para atender populações próximas ao Lago Titicaca. A isso se somam vários projetos de cooperação sul-sul em vias de execução e outras iniciativas a concretizarem-se brevemente.
Parágrafo aparte merece, por sua importância para nosso país no tema do transporte aéreo, a conectividade aérea que efetua a empresa AMAZONAS desde Santa Cruz de la Sierra na Bolívia até Montevidéu, com frequência diária, o que colabora para o notório incremento do turismo e dos negócios entre as duas nações.
A todos estes vínculos atuais quero acrescentar outros mais antigos. Recordo particularmente a mudança relevante que significou o acesso ao governo do general Juan José Torres, em 1969. Em uma situação de grande confusão política e institucional, Torres chegou a El Alto, ganhou a guarnição do aeroporto, percorreu o caminho até La Paz, subiu nos caminhões dos mineiros até o Palácio do Queimado e apoderou-se da situação, implementando uma série de medidas progressistas e de caráter antimperialista, em estreito contato com a Confederação Operária Boliviana (COB). Nessa ocasião tive oportunidade de entrevistá-lo no próprio Palácio do Queimado. Lamentavelmente, não foram adotadas as medidas adequadas contra as tentativas golpistas que se gestavam, e o general Hugo Bánzer derrubou-o em um golpe de Estado dois anos depois, instalando um regime ditatorial. Demoraram anos e vários governos até recuperar-se o curso democrático hoje existente na Bolívia.
Álvaro García Linera e o Fórum de São Paulo
O outro fato que desejo evocar está vinculado à realização da 20ª edição do Fórum de São Paulo (FSP) que se realizou precisamente na capital da Bolívia, em La Paz, entre 25 e 29 de agosto de 2014, e particularmente a intervenção que coube, na inauguração do evento, ao vice-presidente boliviano Álvaro García Linera. Esclareço que acaba de realizar-se o 21º Encontro do Fórum de São Paulo, no México.
García Linera é um intelectual universitário de alto nível, além de sua condição de dirigente dos movimentos indígenas e sociais. Complementa com máxima eficiência o trabalho do presidente Evo Morales. Nesse momento o FSP estava prestes a cumprir um quarto de século de sua criação, por iniciativa conjunta, em que foi destacada a participação de Fidel Castro e de Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse quadro, García Linera esboçou um cenário da nova situação gerada na América Latina desde o início do novo século e milênio, em comparação com a que prevalecia no momento em que foi criado o Fórum. Também fez referência, em um enfoque tipicamente gramsciano, às perspectivas abertas ao futuro do continente.
A seu ver, a primeira conquista da atual insurgência latino-americana é a democracia como método revolucionário. “O que a América Latina mostra nestes últimos 15 anos é que a democracia está se transformando e é possível transformá-la no meio e no espaço cultural da mesmíssima revolução, o que na Bolívia chamamos a revolução democrática”. O que aconteceu na América Latina é uma apropriação social da democracia. A partir das lutas sociais, a democracia foi se transformando e enriquecendo, e esta transformação deve ser entendida como participação, como radicalização, como comunidade: “aqui a chamamos de democracia comunitária, democracia participativa”. A segunda conquista destes anos é a presença popular e a mobilização social nas ruas. As vitórias da esquerda latino americana são frutos de processos de mobilização no âmbito cultural e ideológico, e também no âmbito social e organizativo.
A terceira conquista destes anos consiste em ir desmontando o esquema do neoliberalismo. García Linera contrastou a situação dramática que estavam (e estão) vivendo países europeus, como a Grécia e a Espanha, com as realizações do governo boliviano: antes de mais nada, a recuperação das empresas estratégicas, somada à ampliação dos bens comuns, à contínua redistribuição da riqueza em benefício dos mais desfavorecidos e à ampliação dos direitos trabalhistas. O quarto componente das conquistas destes anos é “a construção difícil, porém ascendente, de um novo corpo de ideias, de um sentido comum mobilizador”. A política é antes de mais nada a luta pela direção das ideias. As principais ideias-força que se expandiram no continente no último período são a pluralidade de identidades, o surgimento de um novo movimento operário e a identidade indígena camponesa como força transformadora, muito notória no caso da Bolívia. Uma segunda ideia força é o antimperialismo (que significa autodeterminação) e o anticolonialismo, assim como o que se denominou o pluralismo socialista.
A quinta conquista é um renovado internacionalismo e a expectativa da integração regional, hoje expressos na criação da ALBA, da UNASUL, da CELAC e de outros instrumentos de integração. Nós, os latino-americanos, começamos a construir nossa unidade, baseada na “necessidade de unificar as forças para construir um estado continental que será plurinacional”, afirma.
Graças a essas conquistas avançou-se, a América Latina mudou, mas o objetivo é aprofundar as mudanças, e com esse objetivo propõem outras 5 metas para a frente. A primeira é defender e ampliar as conquistas obtidas. Junto a isso, a estabilização do modelo até agora alcançado, e para isso a mobilização deve ser perpétua, essa é a garantia. A terceira tarefa consiste em reforçar a tendência comunitária e socialista da experiência cotidiana (próximo à definição de Lukács do socialismo como democracia da vida cotidiana). A quarta tarefa consiste em ter a capacidade de remontar as tensões que surgem de uma revolução que emerge de processos democráticos (e não de revoluções como a chinesa ou a bolchevique).
A quinta e última tarefa consiste em avançar em processos de integração técnica produtiva para chegar a uma plena integração econômica, material e tecnológica. “Aí estamos jogando nossa vida”, diz García Linera. “Nenhuma revolução nem nenhum país da América Latina vai se dar bem sozinho. Ou vamos juntos ou não vai ninguém”.
Sobre esta base se eleva a conclusão final: “Juntos teremos a capacidade de construir um novo mundo, comunitário e socialista”.
Tudo isso está vigente e assume uma candente atualidade. Pareceu-nos oportuno refrescar a memória sobre estes antecedentes ao nos unirmos à celebração do 190º aniversário da independência do Estado Plurinacional de nossos irmãos bolivianos.
*Colaborador de Diálogos do Sul, de Montevidéu, Uruguai
Tradução de Ana Corbisier