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O ano novo no olhar de José Martí

A prosa sedutora do revolucionário neste tema se presta a reflexões profundas, pois sua capacidade associativa nos revela o caráter universal da festa
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

As festas e celebrações natalinas foram comentadas de diversas maneiras por José Martí.

Seu longo período de residência em Nova York levou-o a descrever em suas magníficas Cenas norte-americanas o modo ostentoso como se festejava o Natal no norte, e as diferenças entre estas festas e as de raiz hispânica que tão bem conhecia. É um tema em seu legado que daria para mais de um estudo detalhado, mas queremos indicar aqui alguns elementos, em função da conclusão do ano de 2023.

Às vezes mostra as diferenças sociais entre a população, já que uns podem celebrar abundantemente, cedendo ao luxo e à ostentação, e haverá muita família humilde, com pais tristes por não poder satisfazer a fantasia de seus pequenos com um único presente. Não obstante, a prosa sedutora de Martí neste tema se presta a reflexões mais profundas, pois sua capacidade associativa nos revela o caráter universal da festa, e os nexos que existem entre os símbolos natalícios com outras épocas e culturas. Vejamos:

Vejam! Aqui passa uma árvore de Natal: é de bálsamo, porque são considerados vulgares, e são deixados para gente modesta, os de pinus e os de cedro. Vejam, coroa de flores e folhas secas que vêm da Alemanha! Quanta estrela, feita de mirtos e semprevivas! Quanta grinalda, feita de louro e azevinho! Quantos adornos valiosos, que serão pendurados depois nas paredes da sala de jantar enfeitada, e em portas e janelas! Vejam o azevinho, o ramo sagrado dos gauleses, diante do qual juravam as sacerdotisas e os druidas eterno ódio a César, e ante cujas palmas verdes, aos acentos bélicos da magnífica Velleda, postravam-se no bosque misterioso, à pálida luz de noites mornas, frente aos mudos e divinos dólmens! Vejam estas violetas, que são de Nápoles e de Parma! Vejam estes cestos de rosas, grandes rosas da França; de cravos encarnados; de imortais amarilis, que vêm da Itália; de jacintos romenos; de camélias japonesas! E peguem-nas e ponham-nas junto ao berço de seu último filho, que é meu presente de Páscoa! [1]

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A prosa sedutora do revolucionário neste tema se presta a reflexões profundas, pois sua capacidade associativa nos revela o caráter universal da festa

Foto: Sebastian Baryli/Flickr

Martí: "Para um povo escravo não há mais ano novo que aquele que se abra com a força de seu braço entre as fileiras de seus inimigos"

Sobre Jesus – cujo nascimento é motivo das celebrações pascuais –, sua transcendência simbólica e alcance ético na obra martiana muito se escreveu. Mas nestes dias natalinos, marcados pela tristeza que provocam as notícias do genocídio que tem lugar na Palestina, onde não haverá alegria, e sim desolação e angústia; onde não haverá nascimentos em Belém, e sim uma cidade vazia, castigada pelas balas e pelo ódio, vale a pena revalorizar estas palavras de Martí, alusivas ao exemplo de sacrifício, altruísmo, inspiração e vocação para o serviço que o ser humano deve encontrar em Cristo, acima de credos religiosos ou motivações ideológicas. Em um mundo em crise, lacerado até a raiz pela ambição e a indiferença, urge manter vivo o exemplo do amor e da concórdia, da honradez e da entrega, para manter viva a luz da esperança em um mundo mais justo e demonstrar que não desistimos no empenho de construí-lo permanentemente:

Não há, pois, que empreender agora cruzada para reconquistar o Santo Sepulcro. Jesus não morreu na Palestina, está vivo em cada homem. A maior parte dos homens passou dormindo sobre a terra. Comeram e beberam; mas não souberam de si. A cruzada há de ser empreendida agora para revelar aos homens sua própria natureza, e para dar-lhes, com o conhecimento da ciência prática, a independência pessoal que fortalece a bondade e fomenta o decoro e o orgulho de ser criatura amável e coisa vivente no magno universo. [2]

De igual maneira, reconhece que há motivações menos transcendentais, apegadas à contingência da vida cotidiana, e que o ser humano necessita dessas pequenas alegrias e prazeres comuns para recompor-se das fadigas e empreender novos ciclos da existência sob outros auspícios: reunir-se, festejar em família, compartilhar o pão e a amizade, com generosidade e carinho, repõem as forças para um futuro de esperança:

Nada é, na verdade da vida, um ano que acaba, nem outro que começa; mas o homem […] no choque trágico e inevitável do egoísmo dissidioso e da abnegação ativa, que é, no fim das contas, a história toda do mundo, gosta e precisa deter-se de vez em quando no caminho, para limpar do rosto o sangue e o suor, e voltar para o céu os olhos de sua esperança. [3]

Isso não o impede de insistir no dever supremo dos cubanos, já nos preparativos da Guerra necessária, em um artigo publicado em Patria, datado de 6 de janeiro de 1894. Neste artigo dá conta da terrível situação de desamparo e miséria que atravessava a Ilha sob o governo colonial, e do egoísmo dos que em terra estrangeira se prestavam aos jogos do anexionismo e ao cuidado da própria riqueza, desentendidos da dor maior dos compatriotas que resistiam na terra de origem. Conclui assim suas reflexões a respeito: “Para um povo escravo não há mais ano novo que aquele que se abra com a força de seu braço entre as fileiras de seus inimigos: o primeiro dia do ano novo será o primeiro combate por nossa liberdade!”. [4]

Convido à leitura completa deste último artigo que citei (“O ano novo”), que, salvando as distâncias, nos deve servir de inspiração para refletir e agir no próximo 2024. Que a paz, a unidade e o trabalho de seus filhos abra uma etapa superior para a heróica pátria de Martí.

Referências

[1] JM, OC, t. 9, p. 207.

[2] Ibídem, t. 8, p. 289.

[3] Ibídem, t. 3, pp. 23-26.

[4] Ibídem, t. 3, p. 23.

Guillermo Castro H. | Alto Boquete
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Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Guillermo Castro H.

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