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ToggleAs polêmicas e as aparentes trapalhadas em que membros do governo e o próprio presidente se envolvem diariamente indicam que a nova gestão “dominou o debate público ao fazer a própria oposição”, diz Roberto Andrés à IHU On-Line. Enquanto isso, pontua, “a situação do país é muito grave”, os índices de desemprego aumentam, as famílias estão endividadas, a economia está estagnada, o governo está “enrolado em casos de corrupção e suspeitas de desvio de dinheiro público, como no caso de candidaturas laranjas patrocinadas pelo partido do presidente, o PSL”, e o que “abunda mesmo no governo são os falsos problemas e as teorias conspiratórias”. Ministros que ocupam áreas importantes, lamenta, “ao invés de cuidarem dos interesses da população, se dedicam a caçar fantasmas como o globalismo, o marxismo cultural, adoutrinação gay nas escolas”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Roberto Andrés afirma que “a grande aposta do bolsonarismo” é a mesma dos governos autoritários do século XXI que investiram na deterioração do debate público: “desgastar as palavras, normalizar os absurdos, tornar as teorias conspiratórias hegemônicas”.
Nos primeiros cem dias, frisa, as “polêmicas toscas” geradas no interior do próprio governo foram “verdadeiras ciladas” para apagar a oposição. “Em um dia, afirma-se que o nazismo é de esquerda. No outro, que não houve ditadura militar no Brasil; que meninos vestem azul e meninas, rosa; que o golden shower dominou o carnaval; que o governo vai dar uma licença para proprietário de terra matar. A oposição fica numa sinuca de bico: se não responder, deixa os absurdos sem contraponto; se responder, fica pautada pelo governo, desgastando sua voz ao ter sempre que se indignar com coisas estapafúrdias”, constata. Por enquanto, menciona, “tenho a impressão de que o movimento mais importante de oposição pode ter ocorrido nesta semana, com os protestos de estudantes contra os cortes nas Universidades Federais. É o primeiro momento desde as eleições que os ventos das ruas começam a soprar em outro sentido. Mas não é ainda uma ventania e não dá para saber se vai chegar a ser”
Roberto Rolim Andrés é professor na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e doutorando em História das Cidades na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU-USP. Atualmente é pesquisador visitante na Universidade de Estudos de Florença, na Itália. É editor da revista Piseagrama, pesquisador do grupo Cosmópolis e escreve quinzenalmente sobre cidades no jornal O Tempo. É revisor do Journal of Public Spaces e membro da Rede de Inovação Política da América Latina. Foi pesquisador da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais e sócio-fundador do Instituto Maria Helena Andrés.
Ricardo Machado | IHU
Roberto Andrés
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avaliação está fazendo dos primeiros meses do governo Bolsonaro? Quais diria que são os erros e acertos dos primeiros 100 dias?
Roberto Andrés – A situação do país é muito grave. A expectativa de recuperação econômica foi rapidamente frustrada. O desemprego, altíssimo, oscila para cima. As filas em busca de emprego são assustadoras. A capacidade produtiva está ociosa; as famílias, endividadas. Não há no horizonte nenhum elemento indutor da recuperação econômica. Os problemas crônicos brasileiros nas áreas de segurança, educação, saúde, mobilidade urbana, poluição etc. seguem sem perspectiva de melhora.
A reforma da Previdência é o principal projeto do governo, que depende dela para não ser rapidamente asfixiado por um quadro fiscal que se agrava a olhos vistos. Depende dela também para segurar o apoio das elites econômicas. O problema é que a reforma proposta é bastante injusta, ao não combater muitos privilégios e penalizar a população mais pobre. Como é um projeto impopular e não gera lacração no Twitter, o presidente se ocupa pouco dele.
Outro projeto que lida com um problema grave do país é o tal pacote anticrime, do ministro Sérgio Moro. Mas tantos especialistas em segurança pública já demonstraram que boa parte das soluções apresentadas no projeto são falhas e perigosas. A licença para policiais matarem pode soar bem a ouvidos raivosos, mas não há referência de local em que isso tenha dado certo, e a tendência é que leve o Brasil para um agravamento do quadro de violência. Por hora, de todo jeito, o projeto nem começou a ser pautado no Congresso.
Mas o que abunda mesmo no governo são os falsos problemas e as teorias conspiratórias. Ministros que ocupam áreas importantes como relações exteriores, educação e direitos humanos, ao invés de cuidarem dos interesses da população, se dedicam a caçar fantasmas como o globalismo, o marxismo cultural, a doutrinação gay nas escolas. Recentemente, acharam por bem perseguir universidades de excelência, cortando seus recursos.
O governo se vê também enrolado em casos de corrupção e suspeitas de desvio de dinheiro público, como no caso de candidaturas laranjaspatrocinadas pelo partido do presidente, o PSL, que derrubou o ex-ministro Gustavo Bebianno e que recai agora sobre o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio. Além disso, vieram à tona recentemente os funcionários fantasmas (pagos com dinheiro público) lotados nos gabinetes dos filhos do presidente, além das profundas relações de Flávio Bolsonaro com mafiosos foragidos da polícia.
Duas tragédias muito simbólicas acometeram o país nestes primeiros meses e o governo não soube dar nenhuma resposta. O crime de Brumadinho, com o rompimento da barragem que tirou centenas de vidas e promoveu uma grande devastação ambiental, e o fuzilamento pelo exército brasileiro, com 80 tiros, de um homem negro que ia com sua família a um chá de bebê. A primeira tragédia evidencia a gravidade do movimento de destruição da legislação e dos órgãos de regulação ambiental pelo atual ministro do Meio Ambiente; a segunda evidencia o quanto é perigosa a retórica do presidente de incentivo às forças policiais para matarem livremente.
Diante disso tudo, o presidente da República passa a maior parte do seu tempo ocupado com polêmicas infrutíferas, fiscalizando comerciais, demitindo gente do terceiro escalão, combatendo inimigos reais ou imaginários, mediando as confusões geradas por seus filhos e seu guru Olavo de Carvalho, que resolveram partir para cima da ala militar do governo. A articulação política é amadora e a base do governo no Congresso é dispersa e confusa.
Em suma, é o caos. Mas um caos que tem sua lógica, na qual o bolsonarismo aposta para levar adiante seu projeto autoritário.
Como você explica o jogo que vem sendo jogado pelo novo governo? Qual é o interesse do governo em “jogar o jogo” tal como está sendo jogado?
Estamos acostumados a ver os times entrarem em campo e, mais ou menos dentro das regras vigentes, disputarem a partida. Se olharmos por essa perspectiva para o governo Bolsonaro, pensaremos que estão jogando mal e perdendo oportunidades preciosas quando jogam em casa.
Acontece que o jogo do bolsonarismo é outro. Sua meta não é tanto fazer gols, mas acabar com o campeonato como ele é. Nos termos do filósofo Marcos Nobre, é o governo do colapso. Ao invés de disputar a partida com as regras vigentes, eles jogam para destruir tudo: tirar a credibilidade do juiz, da organização, incentivar a torcida a linchar os adversários, derrubar as traves, cavar buracos no chão, produzir um clima de paranoia e confusão em que todos caem pelo caminho e só sobram eles no campo. Aí fica fácil mandar a bola para dentro.
Nessa perspectiva, o governo vai bem: dominou o debate público ao fazer a própria oposição, como apontou a Eliane Brum
Mas neste momento o governo não pode viver só de seu movimento destrutivo. Se nada que prometa uma recuperação econômica avançar, a elite brasileira pode perder a paciência e buscar uma troca de comando – o vice, Hamilton Mourão, talvez seja o caso único de suplente que se levantou do banco de reservas no primeiro minuto de partida e começou o aquecimento. O bolsonarismo precisa ao menos fazer um gol no campeonato de 2019, que é aprovar alguma reforma da Previdência, o que geraria a expectativa de retomada econômica e agradaria o tal “mercado”.
Assim, o governo joga duas partidas em paralelo: a da erosão democrática, que é seu foco principal e aquilo que seus jogadores sabem fazer melhor; e a da abertura de mercado (composta pela reforma da Previdência e privatizações), que, se for razoavelmente bem- sucedida, servirá para esticar a pista da primeira.
O que as polêmicas que o próprio governo produz demonstram sobre a nova gestão e o jeito de fazer política de Bolsonaro?
Os governos autoritários do século XXI são muito dependentes da erosão do debate público: desgastar as palavras, normalizar os absurdos, tornar as teorias conspiratórias hegemônicas. Esta é a grande aposta do bolsonarismo: disseminar uma erva daninha que corrói a linguagem e o pensamento, eliminando a lógica, a objetividade e a razoabilidade do debate público.
Domínio do debate público
Para isso, é fundamental dominar o debate com polêmicas toscas, verdadeiras ciladas para a oposição. Em um dia, afirma-se que o nazismo é de esquerda. No outro, que não houve ditadura militar no Brasil; que meninos vestem azul e meninas, rosa; que o golden shower dominou o carnaval; que o governo vai dar uma licença para proprietário de terra matar. A oposição fica numa sinuca de bico: se não responder, deixa os absurdos sem contraponto; se responder, fica pautada pelo governo, desgastando sua voz ao ter sempre que se indignar com coisas estapafúrdias.
Mas como o governo incorporou sua própria oposição, a voz da oposição real é desgastada sem ter projeção. O que tem destaque na mídia é a disputa interna, fazendo com que a verve sanguinária de Olavo Carvalho e do clã Bolsonaro paute as intrigas que ocupam nossas manhãs na leitura dos jornais.
O resultado buscado é a exaustão e a polarização estúpida. Todos se cansam da política e as palavras perdem relevância. A confusão é tanta que ninguém mais escuta o apito do juiz, a torcida confunde os times, não se sabe mais se a bola entrou. Como tudo é absurdo e nada mais o é, fica mais fácil viabilizar verdadeiras aberrações. Talvez já esteja acontecendo: com 4 meses de governo, as propostas toscas causam menos comoção social. A avalanche delas permitirá que algumas avancem.
Quais são os riscos de o governo “falar” apenas para o seu eleitorado?
O governo tem dobrado a aposta na estratégia que funcionou na campanha: falar de forma cada vez mais estridente para seu eleitorado cativo (ainda minoritário), a fim de fazer crescer esta base sem precisar acenar para outras pautas. Tem dado certo. Desde que o projeto presidencial de Jair Bolsonaro foi lançado, após as eleições de 2014, o então candidato foi gradativamente aumentando seu eleitorado, sempre parecendo que atingia um teto que em seguida era superado.
Diferentemente da forma política conhecida, isto foi feito sem a ampliação de bandeiras ou de alianças – com a exceção da incorporação de Paulo Guedes, o Posto Ipiranga do verniz econômico. É um fenômeno novo, típico da crise política e das ferramentas de comunicação que favorecem informações polarizadas. Quando a disputa no Brasil se dava entre PT e PSDB, me lembro que o jornalista Elio Gaspari costumava comentar, com certa ironia, que os tucanos achavam que, se conseguissem que uma pessoa ficasse com o dobro de raiva do PT, isso lhes daria o dobro de votos. O que o jornalista estava dizendo é que bater insistentemente na mesma tecla da indignação raivosa tinha um teto – falava-se para convertidos. Bolsonaro furou esse teto várias vezes sem mudar de discurso. E pretende ir adiante.
Por isso talvez o presidente não esteja tão preocupado com a significativa queda de aprovação nos primeiros três meses, tendo a proeza de ser o presidente com pior avaliação nos 100 dias do primeiro mandato desde a redemocratização – comparando-se com Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Como a queda parece que atingiu um piso de cerca de 30% de aprovação positiva e este piso é bem maior do que aquele que era o teto do então candidato antes da facada nas eleições (cerca de 17%), a situação, por ora, é confortável. Pensando bem, esta é a verdadeira proeza: um governo que entrega muito pouco, que passa os dias criando falsas polêmicas e batendo cabeça com aliados, ter 1/3 da população, achando que está tudo ótimo.
Como tem sido dito, não se trata, para este governo, de buscar dialogar com a maioria, mas de garantir a “melhor minoria” – a mais fidelizada, engajada e barulhenta. O risco maior para a democracia brasileira é o bolsonarismo conseguir, enquanto governo, levar adiante a estratégia de campanha bem-sucedida dos últimos quatro anos e fazer sua minoria barulhenta aumentar, chegando à metade do eleitorado. Hipótese que para muitos parece improvável, mas ainda hoje tenho arrepios quando me lembro dos analistas, em meados de 2016, que diziam que o teto do bolsonarismo estava entre 6 e 8% do eleitorado.
Para manter sua base ouriçada, Bolsonaro precisa realizar entregas recorrentes, ainda que no terreno simbólico ou imaginário. Estas entregas, que buscam propiciar um pequeno gozo cotidiano via tela de celular, devem ser entremeadas pelo surgimento de novos fantasmas a serem combatidos. Assim dá a sensação de que algo está sendo feito, mas que a tarefa é ainda muito maior. Em um mundo dominado por globalistas comunistas que governam desde a ditadura (Sarney e Collor inclusos) e estão infiltrados em todas as instituições, não se mudam as coisas de uma hora para outra.
Como tem salientado o cientista político Miguel Lago, o fenômeno é tecnopolítico: para aumentar sua base fidelizada, o bolsonarismoprecisa de mais gente conectada a ele via redes sociais – de preferência WhatsApp, terreno preferencial do mundo fantasioso. Não espantará se, em algum momento, o governo propuser algum tipo de bolsa-smartphone, a fim de universalizar a hiperconexão no país que já é o segundo no mundo em que as pessoas passam mais tempo na Internet.
Quais são as estratégias políticas do novo governo? Pode nos dar alguns exemplos?
A estratégia é normalizar a truculência, as trombadas, o modo bélico de governar – e chantagear quem não se rende a ele. A briga de Bolsonaro com Rodrigo Maia no primeiro semestre é uma boa ilustração disso. O presidente sabe que depende enormemente do presidente da Câmara para avançar qualquer pauta do governo na casa, quanto mais a reforma da Previdência, o cavalo de batalha do momento. Ainda assim, Bolsonaro fez questão de criar polêmicas gratuitas com Maia, criando a imagem para seu eleitorado de que se contrapõe à “velha política”.
Os elementos da chantagem foram apresentados: desde jogação de lama no adversário via redes sociais, com o uso do exército de robôshumanos e não humanos que compõem a tropa virtual bolsonarista, até o caso gravíssimo de utilizar uma operação da Polícia Federal para prender, com pouquíssimas bases legais, Moreira Franco, que é sogro de Maia. O recado é claro: ou você está conosco e se submete às nossas regras, ou está contra nós – e nossas armas são estas. É a oferta irrecusável de Don Corleone, em O poderoso chefão.
Por que você discorda das análises de que o governo está “batendo cabeça”, fazendo uma série de “trapalhadas”, não tem articulação política? Essas “trapalhadas” fazem parte do jogo? Por quê?
O governo bate cabeça o tempo todo, afinal tem boa parte de seu alto escalão composto por incompetentes, ressentidos e paranoicos. Muitos dos atuais ministros sabem pouco, na prática, sobre os órgãos que deveriam gerir. A articulação política é pífia. A guerra interna cresce a cada dia.
Acontece que, como já disse, governar bem talvez não faça parte dos objetivos do governo. A deterioração democrática é a meta principal e as trombadas diárias ganham atenção da mídia, pautando os assuntos cotidianos. A oposição fica apagada.
Talvez esta seja uma característica dos governos autoritários de novo tipo. Na Itália, as manchetes dos jornais têm se ocupado constantemente da briga entre os dois partidos que compõem o governo: a Liga, de extrema direita, e o Movimento Cinco Estrelas (M5S), que poderia ser posicionado ao centro. Os outros partidos políticos são ofuscados enquanto os holofotes têm sido voltados para as trocas de farpas cotidianas entre Matteo Salvini, da Liga, e Luigi di Maio, do M5S.
De fato, brigas internas parecem produzir pautas mais interessantes para a mídia, já que até outro dia eram eventos mais raros e aparentam ter um poder desestabilizador maior. Talvez haja aí uma reflexão para o jornalismo: se, ao cobrir prioritariamente a briga do governo contra o próprio governo, não está contribuindo para dar uma visibilidade desproporcional a personagens e intrigas de quinta categoria.
Recentemente tem aparecido na mídia uma espécie de disputa entre o presidente, seus filhos e o vice-presidente. Você acredita que essas disputas são reais? O que elas significam?
Durante as eleições, Mourão foi o fiel escudeiro de Bolsonaro. Fez declarações racistas, falou em autogolpe, sugeriu a feitura de uma nova constituição por um grupo de notáveis. Com o governo empossado, passou a residir no Palácio do Jaburu e a ocupar a função de não fazer nada. Decidiu buscar outro papel.
O general que foi chamado de “jumento de carga” por Ciro Gomesdurante a campanha passou a dizer que “o aborto deveria ser uma decisão da mulher”, que a posse de armas não era solução para violência, que o ex-presidente Lula deveria sair da prisão para ir ao enterro do neto. Tem tecido elogios à imprensa (que o presidente tem como inimiga) e aos parlamentares no momento em que o governo declarava guerra à Câmara.
Em seu ócio cotidiano em Brasília, Mourão deve mirar em Itamar Franco e Michel Temer e pensar: “pô, se essa bagunça toda der errado pode sobrar para mim”. E tem buscado se posicionar para isto, posando de moderado, acenando para a esquerda e para aqueles que o bolsonarismo tem como inimigos.
Talvez o vice incomode tanto ao clã bolsonarista porque sua hipótese não é tão improvável: a saída mais fácil, caso o governo não consiga avançar em nenhuma pauta econômica relevante, as ruas se aqueçam e a paciência com a balbúrdia se esgote, pode ser a de um governo comandado pelo vice. É aquela história: a saída é botar o Hamilton, em um grande acordo nacional…
Como os bolsonaristas não têm a menor ideia se vão conseguir avançar com algo no Congresso (pois este não é seu foco e a tática de vale tudo que levam adiante nunca foi testada) já estão trabalhando para destruir as alternativas viáveis. Tenho a impressão de que esta briga está só começando, já que Mourão significa hoje, ainda que com reservas, a alternativa militar. Quanto mais o governo sangrar, mais esta alternativa vai se apresentar – e mais será atacada pelas hordas bolsonaristas.
A história do poder sempre reservou lugares especiais para personagens medíocres. Hamilton Mourão busca o seu.
Alguns analistas apontam uma divisão no governo entre o grupo que apoia as ideias de Olavo de Carvalho e o grupo dos militares. Você concorda com essa análise? Trata-se de um jogo para criar a “própria oposição”?
Hoje vê-se que o projeto bolsonarista é muito distinto daquele dos militares. O bolsonarismo busca violência e destruição democrática, enquanto a alternativa militar seria de um pacto conservador com as elites. Não deixa de ser sintomático do estado atual das coisas que, três décadas depois do fim da ditadura militar brasileira, um governo militar soe como uma possibilidade de moderação e diálogo.
No momento atual, o governo Bolsonaro precisa de três pilares para se manter estável: Paulo Guedes, Sérgio Moro e os militares. Sem um desses pilares, os ventos desestabilizadores começam a soprar mais forte. A aposta bolsonarista é manter esta sustentação mais ou menos controlada, enquanto faz suas estripulias no andar de cima.
Aí está uma imagem deste governo: um pórtico de três pilares – mercado, justiça e forças armadas – que sustenta um frontão em chamas de raiva e alucinação, formado por candidatos a tiranos, ressentidos e paranoicos funcionais. Se um dos pilares quebrar agora, tudo desmorona. Talvez os militares comecem a perceber que o negócio para eles não está nada bom, pois têm perdido apoio social, como apontou José Roberto de Toledo e ainda têm que aguentar chumbo grosso diário.
Embora os bolsonaristas trabalhem para, no longo prazo, não precisar mais (ou reduzir a importância) da colunata, hoje eles não podem simplesmente chutar a pilastra militar. Acontece que os militares passaram a representar a alternativa de ascender ao frontão, caso a coluna do mercado comece a ruir. Por isso o bolsonarismo decidiu atacá-los, com foco especial em Mourão e Santos Cruz. Olavo de Carvalho se presta muito bem a este serviço por dois motivos. O primeiro é que o guru de Richmond representa hoje um vetor de mobilização virtual relevante que, junto aos filhos do presidente, tem capacidade significativa de incomodar perfis de redes sociais e desgastar figuras públicas.
O segundo é que atacar parte do governo é um ótimo negócio para Olavo, que estava em situação difícil desde que Bolsonaro foi eleito. Como bem apontou Denis Burgierman, a retórica do guru do bolsonarismo se baseia na premissa de que os problemas teriam soluções simples, que não são buscadas graças a uma infiltração comunista poderosa e odiosa. Como os problemas deste mundo não são simples e a infiltração comunista não existe, colocar as ideias à prova não faria muito bem ao filósofo. Ter um presidente eleito que se coloca como seu seguidor tem alto risco, porque se nada melhorar, alguém pode começar a desconfiar que suas ideias são meio furadas. Como pontuou a jornalista Malu Gaspar, criar sabotadores perigosos dentro do governo foi um achado para Olavo: se alguma coisa der certo, o mérito é dele; se der errado, a culpa é dos sabotadores, no caso os militares.
O que caracteriza a articulação política do governo?
No entendimento tradicional que temos de articulação política, este governo se caracteriza pelo amadorismo. Osdeputados e senadores do PSL são neófitos, com pouca capacidade de articulação no Congresso. A aliança mais sólida do governo é com o DEM, partido do presidente da Câmara, que no primeiro trimestre foi alvo de ataques do presidente.
No entendimento tradicional que temos de articulação política, este governo se caracteriza pelo amadorismo – Roberto Andrés
O governo deixou que a oposição dominasse o microfone na ida de Paulo Guedes à CCJ; levou uma sova no Congresso ao ver derrubado o decreto que alterava a lei de acesso à informação
A principal aposta de articulação política do bolsonarismo até aqui tem sido outra: ao invés de colocar o seu time jogando bem para vencer a partida, trata-se de atacar, chantagear e exterminar os jogadores que lhe façam frente. Isto certamente será feito via redes sociais quando o governo precisar pressionar parlamentares para pautas de seu interesse. Resta saber se o Partido da Justiça que prendeu Moreira Franco será acionado outras vezes para esta articulação política na base da milícia de Estado – o que significará, de maneira acentuada, a aceleração da destruição democrática em curso.
Nesta semana, o governo avançou em uma alternativa nova: a terceirização da articulação política com o DEM e o centrão, recriando para isto o Ministério das Cidades e atrelando a ele alguns bilhões em verbas que serão liberados para os parlamentares votarem a favor do governo. Bolsonaro quer dar a impressão de que não participa deste velhíssimo toma-lá-dá-cá, e para isto brigas como a do primeiro trimestre servirão de cortina de fumaça, mas é seu governo quem está destinando bilhões de dinheiro público para os parlamentares velhacos manterem seus esquemas.
Quais são os indícios que ilustram a sua afirmação de que o governo “tem trabalhado para tirar credibilidade da imprensa, dos institutos de pesquisa e do judiciário”? Pode dar alguns exemplos?
Para que o projeto autoritário se consolide, é preciso destruir as estatísticas. Afinal, os números oferecem contraponto às “verdades” ditas pelo governante autoritário. O povo pode descobrir que a inflação está alta, que o desemprego cresceu, que a violência aumentou – e querer trocar de governante nas próximas eleições.
Não por acaso, Jair Bolsonaro vem reiteradamente criticando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Chegou a dizer que “é uma coisa que não mede a realidade” e agora pretende cortar 25% do orçamento da pesquisa do Censo de 2020. Não que o valor seja alto para o país, já que o custo total de uma pesquisa que ocorre a cada década não chega 0,1% do orçamento anual do governo. Mas o corte no orçamento prejudicará a pesquisa de 2020 e as políticas públicas que dependem desses dados por uma década.
A lógica bolsonarista sempre foi esta: se os números não lhe são favoráveis, destrua os números. Foi assim durante a campanha eleitoral, quando o presidente afirmou que, se não fosse eleito, era porque as urnas teriam sido fraudadas. Foi assim quando saiu a pesquisa Datafolha mostrando a queda de avaliação do governo e o presidente postou um “kkkkk”. Até Sérgio Moro, que já pretendeu pertencer à elite intelectual, veio a público contestar a pesquisa do Datafolha que mostrava que a maioria da população era contra pontos de seu pacote anticrime.
De fato, se algumas políticas bolsonaristas forem implementadas, os números vão mostrar coisas que não se quer ver. Há evidências empíricas de que maior liberação de armas de fogo para a população gera aumento de crimes e mortes, de que a supressão de radares aumentará acidentes e mortes nas estradas. Evitar que esse tipo de dado seja computado ou que chegue ao público tem sido o esforço de muitos governos autoritários mundo afora.
A situação de crise extrema à qual chegou a Venezuela não tem somente um responsável. A elite local não é benta e o bloqueio econômico americano contribuiu para a aceleração da crise. Mas não restam dúvidas de que os governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro tomaram desde cedo opções autoritárias, cooptando e subjugando poderes que deveriam ser independentes. Pois bem, na Venezuela é impossível saber o tamanho do PIB ou a inflação real, já que o governo há muito maquia ou esconde esses dados. O bolsonarismo tem muito a ver com o lado pior dos governos recentes venezuelanos, assim como o de governos autoritários em países como a Hungria e a Polônia.
Como a esquerda e a oposição em geral tem reagido frente ao novo governo?
Tenho a impressão de que o movimento mais importante de oposição pode ter ocorrido nesta semana, com os protestos de estudantes contra os cortes nas Universidades Federais. É o primeiro momento desde as eleições que os ventos das ruas começam a soprar em outro sentido. Mas não é ainda uma ventania e não dá para saber se vai chegar a ser.
Oposição
Já a esquerda e a oposição partidária seguem em um grande impasse. Se o bolsonarismo é o time da destruição, a oposição não é capaz nem de se identificar enquanto time, quanto mais de escolher o capitão. Fernando Haddad, um político qualificado que teve um bom desempenho no contexto adverso de sua candidatura (com a presidente de seu time chutando várias vezes contra a própria meta), não lidera nem mesmo seu próprio partido. O candidato que teve 45 milhões de votos no segundo turno limita-se hoje, infelizmente, a fazer críticas e deboches do governo no Twitter.
Ciro Gomes busca liderar uma oposição de centro responsável e parece que vai se dedicar, nos próximos anos, a apresentar estudos econômicos e análises de políticas públicas, enquanto tenta oxigenar seu partido. A ver até onde vai, já que, em muitos lugares, os políticos do PDT não são exatamente exemplares e um abismo os separa das novas revelações políticas com quem Ciro tem buscado dialogar. Marina Silva sofreu um grande baque eleitoral e teve de voltar 20 casas. O PSOL cresceu um pouco e se qualificou bastante, mas segue ainda pequeno. O PSB não tem uma liderança nacional.
Neste contexto de tanta fragmentação do campo e com o pêndulo político na extrema direita, o campo progressista teria a oportunidade de se reorganizar e superar práticas hegemonistas que se provaram falidas e contribuíram para chegarmos ao poço sem fundo onde estamos. Seria o caso de assumir propostas como a do movimento Quero Prévias e pensar uma dinâmica pré-eleitoral que unisse esses partidos não a partir do hegemonismo de um, mas de uma prática democrática radical e de agendas comuns.
Não seria difícil encontrar uma agenda comum entre todos esses partidos, com pontos como redução da desigualdade, uma reforma tributária progressiva, a revisão do modelo falido de segurança pública, apreservação ambiental e a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação. Focar nesses pontos em comum poderia abrigar um campo amplo, no estilo da geringonça portuguesa, e permitir a realização de um processo de prévias que resultasse em candidaturas únicas nos pleitos executivos. Mas enquanto as palavras de ordem de uns for “Lula Livre” e a de outros, “Lula está preso, babaca”, é óbvio que nenhuma união é possível.
Vejo duas notícias boas na oposição. A primeira é a atuação da sociedade civil, que se organiza em frentes importantes como a atuação conjunta dos movimentos negros em prol de uma agenda de combate ao racismo e o Pacto pela Democracia, uma coalizão plural que reúne uma centena de organizações e movimentos em prol da defesa da democracia brasileira, que, como pontuamos aqui, corre um sério risco de corrosão.
A outra boa notícia é a atuação das novas parlamentares ligadas a movimentos cidadãos.
Tabata Amaral (PDT) ficou bastante conhecida pelo pito que deu no inoperante ex-ministro da Educação, mas vale muito destacar também a atuação de mulheres como Joênia Wapichana (Rede), primeira deputada indígena no país, e Áurea Carolina (PSOL), que junto ao coletivo Muitas (do qual participo) produz um experimento de mandato coletivo em três esferas, em atuação conjunta com parlamentares na Câmara Municipal de Belo Horizonte (Cida Falabella e Bella Gonçalves) e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (Andreia de Jesus).
Na esfera estadual vale muito destacar o experimento da Bancada Ativista, que ocupa uma vaga na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Alesp com um mandato coletivo e das Juntas, uma reunião de cinco mulheres que compartilham um mandato de deputada estadual em Pernambuco, além das deputadas estaduais em São PauloMarina Helou (Rede), que tem buscado construir seu mandato de forma participativa e muito pedagógica, e Erica Malunguinho (PSOL), a primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na Alesp.
No Rio de Janeiro, três mulheres negras (Monica Francisco, Dani Monteiro e Renata Souza) que foram assessoras da ex-vereadora Marielle Franco (que até hoje não sabemos quem mandou matar) foram eleitas deputadas e realizam uma prática política de conexão com as maiorias sociais e os territórios pobres tão sacrificados naquele Estado.
Minha aposta está numa confluência dessas boas notícias: uma soma generosa entre os movimentos que pululam na sociedade e estes movimentos de ocupação da política cujas práticas apontam para a superação de muitos dos dilemas que vivemos no campo progressista. Não é pequeno o fato de serem, em sua maioria, as mulheres que estão no front da renovação real da política brasileira, mostrando como os princípios feministas de acolhimento, escuta e não competição podem ter muito a ensinar às esquerdas.