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O Dia em que Dorival Encarou a Guarda

João Baptista Pimentel Neto

Tradução:

Pimentel nos Açores1“Todo homem tem seu limite, e Dorival resolve enfrentar a tudo e a todos para conseguir o que quer. A história da luta desigual de um homem contra um sistema sem lógica e sem humanidade”.

João Baptista Pimentel Neto*
O Dia em que Dorival Encarou a Guarda é um clássico do cinema de curta-metragem brasileiro. Dirigido pelos gaúchos Jorge Furtado e José Pedro Goulart, a obra é uma adaptação do oitavo episódio do livro O Amor de Pedro por João, de Tabajara Ruas. Lançado em 1986 o filme alcançou várias premiações e foi de exibição obrigatória pelos cineclubes brasileiros.

A ditadura imposta pelo golpe 1964 estava oficialmente sepultada desde o começo de 1985. Mas, com o Brasil ainda não vivendo plenamente em uma democracia em 1986, vociferar em um filme pesados palavrões contra militares de diferentes patentes era uma dupla provocação: colocava a plateia diante de uma sessão de catarse coletiva e também corria o possível risco de despertar fantasmas da repressão. Não houve, porém, maiores sobressaltos fora das salas de exibição, e o curta-metragem O Dia em que Dorival Encarou a Guarda cumpriu sua trajetória como um dos marcos do cinema brasileiro.

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Crítica:
Sem título-1
Em uma prisão militar, o detento Dorival tenta convencer os militares que compõe a guarda do quartel a permitir que ele tome um banho. Mas o preso esbarra na negativa dos militares, embora estes não consigam justificar para Dorival a razão que o impede de tomar o banho. Até que Dorival decide enfrenta-los e acaba apanhando muito, o general ordena então que o levassem para o banheiro e dessem um bom banho nele, e foi assim que ele tomou seu primeiro banho.
O filme é uma mera narrativa sem a presença de qualquer discurso crítico explícito. Todavia, as cenas são suficientes para se intuir a essência real de instituições do nosso cotidiano, as quais, num primeiro momento, julgamos necessárias e benéficas, mas cuja natureza é bem mais sombria do que faz crer sua aparência. A burocracia é caracterizada pela sua estrutura hierarquizada e pela rigidez das normas. Tanta inflexibilidade decorre da suposta “racionalidade burocrática”: sendo racional, não há que se contestar qualquer procedimento, qualquer regra, pois a razão fatalmente conduz ao bem de todos.
Mas será de fato assim? Nosso personagem principal, Dorival, sofre com o calor na sua cela e com a falta de direito a um banho há muitos dias. Sem tolerar o incômodo, chama a sentinela e pede, educadamente, uma ducha rápida. “Não pode” foi a resposta. “Não pode por quê? Tô derretendo aqui dentro” apelou o preso. E eis que o guarda faz uma resposta reveladora do caráter alienante e autocrático da burocracia: “São ordens”. Calmo, Dorival insiste no seu pedido mas, diante de nova negativa, perde a paciência, disparando palavrões contra o guarda. Pressionado pelo prisioneiro, que reclama a presença da autoridade que proíbe o banho, o soldado apela ao seu superior hierárquico, isto é, ao cabo.
E a dinâmica se repete. O cabo nega a ducha refrescante e Dorival protesta tanto que outro superior hierárquico é chamado: o sargento. O sargento também sai derrotado e só resta o tenente. Este último, após muita confusão, é alvo de uma cusparada de Dorival. Estava irremediavelmente armada a confusão. As sutis faces do poder estão expostas. Em tese, cada um dos requeridos pelo preso possuía suficiente competência para solução do imbróglio. Todavia, não o fizeram por estarem acuados e por ignorarem a origem e os motivos da proibição.
É desconcertante notar que basta a autoridade para que se acate passivamente a uma ordem ou crie-se um direito. No filme, obedece-se a uma ordem sem se saber sua fonte e fundamentos. A “ideologia burocrática” não consegue ir além de si mesma, esgotando-se e mostrando sua verdadeira natureza: ofendido, o chefe dos guardas ordena a abertura da cela e, com a chegada de reforços, espanca o prisioneiro. Bastante machucado, Dorival acaba sob o chuveiro, a fim de limpar o sangue. Triste ironia: o prisioneiro tem seu pedido tragicamente atendido! Vemos, quando encurralada, a “ideologia burocrática” mostrar seu autoritarismo e violência. A truculência, no filme, é escancarada.
No entanto, quantas vezes a violência burocrática não se faz dissimulada? Quantas vezes um simples requerimento numa repartição pública é submetido a tramitações intermináveis e obscuras? Bem certo que não se trata de uma violência tão brutal quanto a que ocorre no filme, mas não deixa de ser uma forma de violência. A negativa do Estado na prestação da dignidade humana (seja uma simples ducha refrescante, como no curta metragem) é uma violência travestida de “racionalidade burocrática”

Assista ao Curta:

 

 

O Dia em que Dorival Encarou a Guarda

poster02Gênero: Ficção
Subgênero: Adaptação Literária
Diretor: Jorge Furtado, José Pedro Goulart
Elenco: João Acaiabe, Pedro Santos, Zé Adão Barbosa
Duração: 14 min     Ano: 1986     Formato: 35mm
País: Brasil     Local de Produção: RS
Cor: Colorido
Ficha Técnica
Produção: Gisele Hilt, Henrique F. Lima
Fotografia: Christian Lessage
Roteiro: Ana Luiza Azevedo, Giba Assis Brasil, Jorge Furtado, José P. Goulart
Edição: Giba Assis Brasil
Direção de Arte: Fiapo Barth, Lordsir Peninha
Trilha original: Augusto Licks

Prêmios

Melhor Ator no Festival de Gramado em 1986

Melhor Curta no Festival de Gramado em 1986

Melhor Curta no Festival de Havana em 1986

Melhor Filme no Festival de Huelva em 1986

Melhor Filme – Crítica no Festival de Gramado em 1986

Melhor Filme – Crítica no Festival de Huelva em 1986

Melhor Filme – Júri Popular no Festival de Gramado em 1986
 
 *João Baptista Pimentel Neto é jornalista e redator da Diálogos do Sul.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Baptista Pimentel Neto Jornalista e editor da Diálogos Do Sul.

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