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O dia em que eu soube que não era pobre

João Baptista Pimentel Neto

Tradução:

Eram os primeiros dias da década de noventa e a Ciudad Peronia começava a encher-se de migrantes, de gente que chegava de outros arrabaldes e do ocidente do país a invadir o setor que agora é conhecido como El Mirador.

Ilka Oliva Corado*

Ilka-Oliva-Corado2Aquilo era um matagal,  ruas de terra e um mercado ao ar livre, um terreiro onde os vendedores espalhavam sacos e caixas de papelão para servir de mesa para expor suas mercadorias.

Um ponto de ônibus com dois ou três pontos, uma grande área às margens do lixão do barranco do mercado que com o tempo foi convertida à custa de muitas boladas no campo de futebol do arrabalde. Ciudad Peronia era o rosto vivo da miséria e do esquecimento. Colindava com a aldeia La Selva e o Calvário; mais para cima ao pé das montanhas verde-garrafa instalou-se uma base militar, soldados em sua maioria do ocidente do país, que mal falavam espanhol, crianças brincalhonas das quais nunca tivemos medo. Meninos aos que com o passar dos anos íamos vender sorvetes, torresmos, atoles e doces de banana que nos pagavam no fim do mês.

Martes-santo-Jesús-anuncia-la-traición-de-judasPor essa época começamos a vender sorvetes no mercado, nas escolas, nas aldeias, no destacamento, em qualquer lugar. Mal tínhamos o que comer: tortilha com sal e caldo de feijão todos os dias; os feijões não eram tocados porque havia que fervê-los e colocar água para o dia seguinte.

Em dias de sorte, papai chegava com um pouco de dinheiro extra e eu ia com ele à Terminal para comprar vísceras de vaca. O caldo de patas era o manjar daqueles anos. Mas eram raridades, acontecia só de vez em quando.

Nossa casa era um caixote de blocos, com uma cortina que dividia nosso quarto da cozinha. Em uma cama de metal, que tinha um pé quebrado, dormíamos os 4 filhos da Lila e do Guayo. Lá pelas três da madrugada quando nos levantamos para fazer o serviço de casa e preparar a venda, nós já tínhamos ensopado de xixi os lençóis e a roupa. As portas e janelas eram cobertas com pedaços de papelão.

O chão era de terra onde andavam cabras, galinhas, patos, cachorros e aí mesmo era onde engatinhavam os bebês. Uma mesa de pinho e um fogareiro de três bocas era tudo quanto tínhamos na cozinha. Duas ou três panelas. Do lado de fora um meio tonel servia de forno onde mamãe cozinhava as tortilhas e começava a nos ensinar a fazê-las. Que quando as tortilhas nos saiam parecidas a uma sola de sapato (como dizia minha mamãe) ela as tirava meio cozidas e as juntava de novo à massa para que nós tornássemos a fazer até sair como ela queria. Tudo era a nossa cara, dizia ela.

Os recém-nascidos pareciam pintinhos peludos, brancos como o leite e nós íamos à aldeia às quatro da manhã para comprar um litro de leite de vaca, recém ordenhado, só para eles. Não dava para mais ninguém.

Uma tarde chegou um ônibus com pessoas que diziam vir por parte do governo e que tínhamos que ir até uma casa na rua Usumacinta para fazer o registro para que nos dessem comida, uma cesta básica. Nós, sem avisar minha mãe, fomos ao lugar e nos registramos, dissemos quantos membros eram na família, no que trabalhava meu pai. A comida era racionada dependendo dos membros da família e se trabalhavam mãe e pai, ou só um.

Naquela tarde chegamos em casa emocionadas, com um pacote de milho amarelo, uma lata de presunto, uma lata de queijo amarelo e um pacote de leite em pó. Quando minha mãe nos viu chegar com tudo isso, perguntou de onde havíamos tirado essas coisas e nós explicamos emocionadas; minha mãe ficou tão furiosa, pegou o pau de vassoura e gritou: Filhas de uma grande puta, vocês não são pobres, não têm necessidade, têm trabalho; há gente que necessita isso, de verdade! Vão já devolver essa comida se não quiserem que eu encha vocês de paulada!

Sem tempo para reagir corremos de volta e num segundo já estávamos no lugar devolvendo a comida. Iam nos dar aquela ração uma vez por mês, mas aí mesmo fizemos que nos tirassem da lista. Eram filas e filas de gente que chegava, esperando que lhes dessem os alimentos.

Naquela tarde, eu soube que a carência em que vivíamos não era pobreza, era só escassez. Que eu não era pobre, que havia gente vivendo na miséria, gente realmente necessitada daqueles pacotes de alimentos.

E eu aprendi desde criança, minha mamãe me ensinou com o pau de vassoura na mão. Ela me ensinou a olhar ao meu redor. E nunca me esqueci.

*Colaboradora de Diálogos do Sul, do território dos Estados Unidos


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Baptista Pimentel Neto Jornalista e editor da Diálogos Do Sul.

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