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Em 13 de abril se completou um ano da morte de Eduardo Galeano. Diálogos do Sul lhe presta homenagem com esse texto de uma guatemalteca, mestiça de negra e índia que vive indocumentada em território de Estados Unidos.
Ilka Oliva Corado*
Sempre estive convencida de que os seres extraordinários nos deixam em dias funestos, de céu encoberto chorando cântaros de chuva. Eduardo Galeano se foi num dia assim, hoje amanheceu soluçando com a nevoa da primavera estadunidense, despedindo dele desde as primeiras horas da madrugada.
Nós, os párias, os impronunciáveis, os de espinha partida durante séculos de exploração, nós os iletrados, os diaristas. Nós operários, camponeses e eternos proletários ficamos órfãos com a partido de Galeano.
Em total desamparo, sumidos na densa escuridão do desconsolo, foi-se o homem que se atreveu a nos olhar nos olhos, que se atreveu a dar-nos um nome, a caminha conosco e carregar sobre seus ombros nossa atribulação de classe social explorada pelos tiranos.
Partiu um intelectual que sempre se sentiu um peão à pé e essa grandeza humana é o que o torna imortal, ele transcendeu as fronteiras das classes sociais e dos diplomas universitários.
Por Galeano choram nesses momentos os intelectuais, os lutadores sociais, os seres justos e consequentes. Chora o mundo exclusivo dos editoriais, chora a poesia e a boa literatura.
Mas também choramos os invisíveis, os calvários ancorados nos pés dos jornaleiros, choram as mãos da meninas que colhem grãos de café em fazendas alheias, chora o ventre materno que leva em suas entranhas o fruto de uma violação, chora o adolescente encarcerado pelo único delito de ser da periferia. Choram os bandos das periferias, choramos os indocumentados, nós os desamparados. As putas, os homossexuais, os drogados, os revolucionários fedidos de todos os tempos.
Nós, os necessitados de sua luz, de sua consequência e de sua lealdade. De seu pulso firme, de sua palavra justa, e de sua dignidade. Nós, os da enxada e do facão, os da espiga e do fardo. Nós os apaleados, os enganados, os boias-frias, os que moramos nos lixões, os que não temos licença para sonhar. Nós os ninguéns.
Nós os das veias vermelhas e fecundas, os de bons ombros para carregar. Nós do sufoco e da servidão. Os apátridas, os humildes pestilentos. A massa trabalhadora, os camponeses e seus caudais. Nós ficamos sem “o bastião”, sem o ser que nos dignificou.
Como preencher esse enorme vazio? Como sobreviver a tanta solidão? Ao infortúnio, à esterilidade?
Na quimera nos fica o paradigma de um ser imortal, a grata escola, sua fecundidade. Deixa-nos sua semente, sua poesia e sua liberdade. Deixa-nos as ilusões para prosseguir, deixa-nos sua prosperidade.
Deixa-nos com o elixir da loucura, e a alegria de sonhar. Deixa-nos a consequência de um ser cabal. Uma vereda para ser seguida. Deixa-nos a flor da cordilheira, o canto das cigarras, a trova e a ode, deixa-nos as musas das escarpas, deixa-nos sem ponto final. Deixa-nos as veias abertas para nos prevenir. Deixa-nos a porta aberta e sua luz. Deixa-nos o amor profundo da fraternidade, o sentido da solidariedade, nos deixa na eterna luta pela equidade. Deixa-nos sua sinceridade, sua formosura, sua fidelidade.
Se foi e nos despedimos desde as montanhas, das favelas, das grandes cidades, das maquilas, dos campos de cultivos, das casas de barro, das ruas de terra, dos salões da universidade.
Boa viagem mestre, nos vamos sentir saudades.
*Colaboradora de Diálogos do Sul, em território de Estados Unidos.