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O enfoque internacional se dissipa e reaparece o nacional

Roberto Sávio

Tradução:

Um sinal dos tempos atuais é que Alemanha organiza uma revolta contra o presidente da Comissão europeia, Jean-Claude Juncker, a quem a chanceler (chefe de governo) alemã, Angela Merkel impôs em 2014, depois de forte confrontação com David Cameron, então o poderoso primeiro ministro britânico.

Roberto Savio*
Roberto_SavioAlém disso, o grupo de Visegrád, formado pela Polônia, Hungria, Eslováquia e República Checa, que ressurgiu das cinzas para opor-se a Bruxelas, sede da Comissão Europeia, solicitou que este órgão volte a ficar sob a autoridade dos estados membros da União Europeia – UE.
Quando Merkel organizou uma reunião dos seis países fundadores da UE em Berlim, convidou Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, mas não a Juncker. E foi o ministro da Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, quem lançou a proposta: “é hora de que Bruxelas volte a ficar sob o controle dos estados”.
globoÉ curioso que o debate sobre o Brexit ignore completamente a paulatina iniciativa de germinar com o caráter supranacional da UE. O que está em processo é, de fato, algo de extrema importância: o fim do internacionalismo e o regresso ao âmbito do nacional, um dos frutos da globalização… e Japão, China e Rússia estão no ápice do nacionalismo.
A globalização não é um conceito neutro. A globalização que se impôs após a queda do Muro de Berlim  (1989) foi uma camisa de força tão forte como as ideologias acusadas de propiciar a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e os 50 anos de Guerra Fria.
Essa globalização foi apresentada ao mercado como a única base da sociedade, com a eliminação das barreiras nacionais para a livre circulação de capitais e o comercio, e rechaçou por obsoletos os valores de justiça social, instituições sociais (como o bem-estar), e o Estado passou a ser visto como um impedimento e um problema e não como uma solução.
Os novos valores foram, por exemplo, o êxito individual por cima dos valores comunitários. Ronald Reagan e Margaret Thatcher mudaram o rumo do mundo. A primeira ministra britânica (1979-1990) disse: “não existe a sociedade, só há indivíduos”. O presidente estadunidense (1981-1989), por sua vez, originalmente queria liquidar com o Ministério da Educação.
Agora, os jornalistas descobrem que o Brexit e (o precandidato republicano estadunidense) Donald Trump são resultado da revolta das vítimas dessa globalização. É importante assinalar que estas soem inclinar-se à direita, salvo poucas exceções como Podemos, na Espanha, ou o (precandidato democrata) Bernie Sanders, nos Estados Unidos.
Sanders denuncia que “nos últimos 15 anos, quase 60 mil fábricas e mais de 4,8 milhões de postos de trabalho operário bem remunerados desapareceram pelos desastrosos acordos comerciais que estimularam as corporações a se mudarem para países com baixos salários”. Inclusive foi contra um tabu que nem as elites nem os principais economistas discutem: o livre comercio é um motor do crescimento e as estatísticas o comprovam.
O problema, continua Sanders, “é que a media do trabalhador  ganha 726 dólares menos que em 1973, e a media da trabalhadora 1.154 dólares menos que em 2007. E quase 47 milhões de estadunidenses são pobres. Enquanto a décima parte do um por cento dos estadunidenses mais ricos ganha tanto como 90 por cento dos mais pobres. As 62 pessoas mais ricas do planeta concentram tanta riqueza como a metade mais pobre da população, uns 3 bilhões e 600 milhões de pessoas”.
Sanders nos coloca diante de um dilema: “a mudança derivará da demagogia, do fanatismo e do sentimento contra os imigrantes, a xenofobia e o populismo, a menos que o novo presidente estadunidense apoie de forma contundente a cooperação internacional, que aproxima os povos do mundo, reduz o hipernacionalismo e diminui as possibilidades de guerra e, acima de tudo, protegerá os e as trabalhadores, e não só a elite”.
O problema não é que a globalização fomente o crescimento, mas que o Estado deixou um mercado sem regulamentação e sem redistribuição. Por que votariam pela sabedoria convencional do sistema aqueles que ficaram à margem, quando são as vítimas?
O motor do crescimento foi a cobiça. O medo que Sanders evoca está bem instalado na Europa. As migrações o alimentam, em meio a temores de diversas índoles, desde o terrorismo até a mudança climática, e desde a má alimentação até a deterioração dos serviços sociais. É fácil avançar com medo e ressentimento, e Europa o sabe bem, ocorreu nos anos da década de 1930, e Hitler deixou um continente destruído.
Uma série de referendos agora precipitam o desaparecimento da democracia.
Na consulta popular pelo Brexit votou 70 por cento das pessoas habilitadas, ou seja, que 36 por cento representou a maioria, um de cada três cidadãos.
Segundo o Conselho Europeu de Relações Exteriores, há 32 referendos convocados em 18 países da UE e há 47 partidos políticos que compartilham visões antieuropeias. Um de cada três dos 28 membros do bloco, esses agrupamentos integram as colisões de governo e sua possível saída é uma pressão que obriga os partidos tradicionais a adotar algumas dessas posições.
As consultas populares se assemelham a um veto. A UE deverá afrontar um duro desafio com esse processo de “votocracia”, cuja vítima também será a ideia de internacionalismo.
A ideia por traz do internacionalismo, e mais exatamente do direito internacional, se funda na aceitação do princípio e dos valores sob os quais a cidadania se sente parte de uma comunidade e participa. É sobre essa base que as entidades nacionais concordaram com ceder parte de sua soberania. Sentem que se expande o consenso nacional sobre os tratados e os acordos, que projetam suas visões e interesses em um mundo de cooperação internacional.
O direito internacional e a cooperação foram as novas ideias que emergiram das cinzas da Segunda Guerra Mundial. A Organização das Naçoes Unidas foi o instrumento sem precedentes para conseguir a cooperação e a paz durável. Pouco depois apareceu a ideia de que a UE, como entidade supranacional, e não só como uma organização intergovernamental, como é a ONU.
Foi sob o amparo do foro mundial que se pode controlar os perigos da Guerra Fria e que se dirigiu o processo de descolonização. A ONU foi o marco para as relações Norte-Sul, e fez do desenvolvimento sua filosofia, compartilhando o direito internacional como instrumento para o diálogo, e a justiça social, a participação e a democracia, sobre a base do diálogo e da cooperação, para converter a paz durável e o desenvolvimento humano em novas conquistas da humanidade.
Tudo andou bem até 1981, na Cúpula de Cancun, quando Reagan e Thatcher emergiram a ideia de que a democracia universal era uma injusta ilusão. O então presidente estadunidense perguntou aos demais chefes de Estado reunidos para debater como promover a cooperação, por que o seu país deveria ter os mesmos direitos que San Marinho; e propôs regressar a uma política em que os países pudessem defender seus interesses sem estar atados a acordos e princípios gerais.
Desde então, a ONU perdeu sua primazia. As grandes potencias retiraram o comercio, um dos motores da globalização; o outro, as finanças, nunca esteve em Nova York, sim em Washington. O foro mundial ficou só com as questões sociais, cada vez mais irrelevantes. E quando o secretario geral Boutros Boutros Ghali (1992-1996) tratou de recuperar algo do poder para a secretaria, Estados Unidos vetou sua reeleição.
O mesmo mecanismo que ocorre agora com Juncker, Boutros Ghali se converteu em bode expiatório do então presidente estadunidense Bill Clinton (1993-2001), em plena campanha eleitoral. A ONU organizou a invasão da Somália para instalar a paz e levar alimentos a pedido de Estados Unidos, sobe seu comando e controle.
Porém a invasão fracassou, com soldados estadunidenses mortos e arrastados pelas ruas por uma multidão negra. De imediato, responsabilizou Boutros Ghali, e Estados Unidos ficou como a vítima da ONU. Agora Juncker aparece como o responsável pelo Brexit, apontado pela Alemanha, cuja política fiscal e imposição de medidas de austeridade desencantou a muitas das pessoas que agora votam por ir-se da Europa.
O mundo post ideologias, que acompanhou a globalização, transformou os partidos políticos em máquinas de opinião pública, voltados para resolver problemas administrativos.
A cidadania, deserta de instituições, sem visão, onde os dirigentes políticos parecem mais interessados em perpetuar-se nos cargos, e as ferramentas do mercado e das pesquisas substituíram o diálogo entre os cidadãos. Os valores desapareceram do debate político. Os assuntos globais converteram os parlamentos em assembleias cada vez mais irrelevantes.
Não houve resposta global em matéria de finanças, com quatro bilhões de dólares em paraísos fiscais, sem um órgão mundial de regulamentação e movimentando 40 vezes mais dinheiro que a economia real de produção e serviços. Uma resposta excepcional foi a que se deu à mudança climática, uma verdadeira ameaça para a sobrevivência da humanidades, mas, claramente insuficiente.
Os partidos tradicionais trataram de frear seu declínio adotando as bandeiras dos novos partidos. O melhor exemplo é a Áustria, onde os dois agrupamentos tradicionais mudaram suas posições em relação com a imigração com o argumento de que não deixariam essa bandeira com o populismo. O resultado foi a legitimação da xenofobia. A extrema direita perdeu no último referendo por 36 mil votos e pode ser que na nova consulta popular para as eleições presidenciais, que se reconvocou por irregularidades, saia vitoriosa.
Deve ficar claro que em todos esses anos se levou adiante um jogo irresponsável. Quando as coisas saiam mal, era culpa da UE, quando saiam bem, era graças as políticas nacionais.
Porém como qualquer pessoa informada sabe, é o Conselho Europeu, onde estão representados os Estados membros, o que toma as decisões sobre estratégias e políticas. A Comissão Europeia é basicamente o executivo; só o Banco Central Europeu, com grande pesar para a Alemanha, e o Tribunal de Justiça da UE, da que Cameron anunciou que seu país queria abandonar ainda antes do Brexit, tem certo poder supranacional. Todos os esforços dos países se concentraram em recuperar a maior soberania possível. E agora estamos obrigados a escrever uma defesa de Juncker. Se sai será por razões equivocadas.
De toda maneira, depois dele, aparecerá outro homem débil como já ocorreu.
Na ONU, a principal candidata para ocupar a secretaria geral é Irina Bokova, a diretora geral que sai da UNESCO, muito menos impressionante que as outras mulheres na disputa.
Então, para ver o momento em que estamos com a deterioração do internacionalismo. Estados Unidos se comprometeria a financiar 25 por cento do orçamento regular da ONU, como fez no momento de sua fundação? Aprovaria a Declaração Universal dos Direitos Humanos?
E, finalmente, seria possível subscrever o Tratado de Roma, de 1947, quando se provou de forma unânime a visão de uma Europa unida? Os governos teriam dificuldades para responder, imagine-se os povos.
 
*Jornalista ítalo-argentino. Co-fundador e ex diretor geral de Inter Press Service – IPS. Nos últimos anos também fundou Other News, um serviço que proporciona “informação que os mercados eliminam”…
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Roberto Sávio

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