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O legado de um grande líder

Ricardo Gaspar

Tradução:

Ricardo Carlos Gaspar*
Hugo Chávez
Talvez o maior legado de Hugo Chávez seja, pela primeira vez na história da Venezuela, a construção de um país independente, com personalidade e interesses próprios no concerto das nações.
Com a afirmação nacional Chávez resgatou as tradições mais caras das lutas de independência da América Latina e fez jus ao epíteto de herdeiro dos grandes mártires nacionalistas do continente. Nesse sentido, é coerente o movimento político que ele liderou autoproclamar-se “bolivariano”. E o criador sobrevive à criatura.
Um balanço justo do período chavista, feito no calor de sua morte, não pode descurar o resgate desse passado histórico e seu significado num país permanentemente assolado pelo monopólio petrolífero nas mãos de uma minoria dissipadora. Sim, pois o modelo econômico baseado na exploração dos hidrocarbonetos pode, com propriedade, ser caracterizado como economia do desperdício. A riqueza petrolífera, nos marcos do regime capitalista, acarreta o que os economistas cunharam como “doença holandesa”(1), isto é, a concentração exclusiva do aparato econômico do país em um único produto de exportação, o petróleo, em prejuízo de todos os demais setores produtivos, e a dependência total das divisas assim geradas para importar praticamente todos os bens necessários ao consumo da população. Celso Furtado escreveu, já em 1947, um pequeno ensaio clássico sobre o caso da Venezuela, intitulado “Subdesenvolvimento com abundância de divisas”.
Alem disso, a apropriação privada desses recursos – com elevada demanda no mercado mundial, haja vista que a subordinação da economia global ao petróleo só começou a ser superada depois da crise dos anos 1970, contudo sem ainda ameaçar a supremacia do “ouro negro” – criou uma camada privilegiada de cidadãos que deram as costas ao país e passaram a viver nababescamente, com níveis elevados de consumo e referências culturais muito mais estadunidenses (da Florida, para sermos mais exatos) que propriamente venezuelanas.
As formas urbanas das grandes cidades refletiram a organização social, fundada na patente desigualdade: imóveis verticalizados, um sistema viário de viadutos e highways para circulação de grandes veículos individuais altamente consumidores de combustível (extremamente barato), transporte coletivo deficiente e vastos segmentos populacionais marginalizados. Caracas é a expressão mais completa dessa morfologia urbana, onde as montanhas que circundam a cidade abrigam centenas de milhares de pessoas vivendo precariamente, como uma multidão de excluídos do “festim” presente no centro moderno da metrópole e em pontos isolados do litoral caribenho.
No restante do país (longe da costa “feérica”), o panorama de estagnação só era rompido temporariamente pela descoberta de novas jazidas de petróleo, as quais, exploradas de forma intensiva, provocavam a afluência de milhares de deserdados em busca das chances subalternas que os assentamentos criavam, no pequeno comércio, nos biscates, na prostituição. Quando esses assentamentos eram abandonados em prol de novas frentes de expansão, permaneciam as “cidades mortas”, como relatado ficcionalmente pelo novelista venezuelano Miguel Otero Silva.
Como corolário dessa situação, a estatal venezuelana do petróleo – a PDVSA – se constituiu num verdadeiro enclave de poder, um “Estado dentro do Estado”, quando não avassalava o próprio poder público em nome dos seus interesses corporativos.
Pois bem, Chávez veio para mudar isso. Galvanizou em torno de sua liderança milhões de pessoas, majoritariamente composta pelos excluídos de sempre. Depois de superar boicotes de toda ordem e de intervir exitosamente na PDVSA, redirecionando-a para servir o país e seu povo, iniciou o projeto “Siembra Petrolera”, pelo qual os recursos do petróleo deveriam servir para diversificar a economia e melhorar a qualidade de vida da população, distribuindo renda.
Como boa parte da receita do Estado venezuelano continua oriunda do petróleo, o projeto tem sido bem sucedido quanto ao atendimento às necessidades básicas da população, principalmente em saúde e educação, mas também em alimentação e moradia. Isto, por si só, é uma virada notável, e a elite conservadora não consegue assimilar a entrada na cena política nacional das massas, agitando consignas de socialismo e revolução.
Por outro lado, no que diz respeito a diversificar a produção, os resultados têm sido bem mais modestos, e mesmo um projeto ambicioso vinculado às novas áreas de exploração de petróleo e gás na bacia do Orenoco e no Estado Sucre (as maiores reservas de petróleo certificadas do mundo) – que inclui reassentamentos populacionais, criação de novas cidades e geração de ocupação produtiva – se apóia em boa dose de voluntarismo e carece de mais apurado conteúdo técnico e econômico. Apesar dos projetos em curso, que incluem internalizar parte da cadeia produtiva do petróleo e integrar economicamente o sul da Venezuela com o Norte do Brasil, seus resultados ainda são modestos, e o país segue muito dependente da importação, inclusive de bens salário que poderiam ser supridos internamente.
Os desafios são imensos, como para qualquer país em via de desenvolvimento. No caso da Venezuela, os problemas são agravados pelo esforço de romper os laços de dependência, amparado num movimento político sem suficiente organicidade e, portanto, lidando com contradições internas difíceis de serem administradas. A grandeza do Presidente Chávez, contudo, está também na capacidade de organizar minimamente as condições de continuidade do projeto político sem seu líder máximo: seu sacrifício pessoal, assim como ocorreu com outras personagens ilustres na história dos ideais libertários latino-americanos, permite antever um chavismo sem Chávez, cujos rumos não podem ser agora determinados.
(1) Fenômeno assim denominado em função da valorização do florim, na Holanda dos anos 1960, decorrente do aumento internacional dos preços do gás, e da consequente queda drástica da exportação dos demais produtos holandeses.
(*) Professor do Departamento de Economia da FEA-PUCSP. Atual Assessor da Secretaria de Governo da Prefeitura de São Paulo. Foi consultor do IPEA na Venezuela nos últimos meses de 2010. Colaborador. Diálogos do Sul
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ricardo Gaspar Professor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP e colaborador de Diálogos do Sul

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