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O marxismo de José Antonio Arze, fundador do Partido de la Izquierda Revolucionaria

Sociólogo, educador, deputado, foi autor de um dos primeiros ensaios de interpretação marxista da realidade boliviana
Marcos Vinicius Pansardi
Dicionário Marxismo na América
São Paulo (SP)

Tradução:

ARZE, José Antonio (boliviano; Cochabamba, 1904 – Cochabamba, 1955)

1 – Vida e práxis política

José Antonio Arze y Arze nasceu no início do século XX, filho de José Tristán Arze, pequeno empresário e arrendatário de terras, em uma família de classe média sem fortuna. Estudou direito e ciências políticas na Universidad Mayor de San Simón (UMSS, Cochabamba), graduando-se em 1926. Foi diretor da biblioteca e professor de Direito Público nesta universidade; e, mais tarde, professor de Sociologia e de Direito Indianista na Universidad Mayor de San Andrés (UMSA, La Paz).

Ainda bem moço, em 1921, fundou o Instituto Superior de Artesanos (ou Inst. Municipal Nocturno de Obreros), um estabelecimento educativo destinado a levar a cultura e as ideias socialistas ao proletariado. Ainda neste ano, ascendeu à diretoria da revista Arte y Trabajo, importante periódico fundado por Cesáreo Capriles, figura do nascente movimento radical boliviano. Esta revista, na qual Arze escrevia sob o pseudônimo de León Martel, teve um papel central ao dar publicidade a estudantes que viriam a ter relevante participação na política boliviana. Logo começou a editar sua própria revista literária, El Paladín, que teve três números.

Em 1923, Arze viajou para Argentina, Uruguai e Chile, a cargo do Conselho Municipal de Cochabamba, para estudar os institutos de formação profissional para trabalhadores. Na Argentina, teve a oportunidade de vivenciar o clima da Reforma Universitária de 1918, tema pelo qual vai se interessar ao longo de toda a sua vida. Ainda neste ano, liderou um grupo de alunos da Faculdade de Direito, chegando a controlar a federação estudantil (seu grupo era conhecido como os “sovietistas”).

Em 1928, durante o Congreso Nacional de Estudiantes Universitarios, foi criada a Federación Universitaria Boliviana (FUB), que tinha por missão impulsionar a reforma universitária. Naquela ocasião, Arze e Ricardo Anaya assinaram juntos um documento considerado o primeiro ensaio de interpretação marxista da realidade boliviana.

Por volta de 1928, tentou-se pela primeira vez fundar um partido comunista na Bolívia. Nessa empreitada estavam dois outros personagens fundamentais da futura história boliviana: José Aguirre Gainsborg e Walter Guevara Arze. Este partido ficou conhecido na historiografia com o nome de Partido Comunista clandestino (de sigla PCc). Porém, os delegados da Internacional Comunista (IC) rejeitaram esta organização, dissolveram o PCc e lhe impuseram o formato de Agrupación Comunista (alterando seu estatuto para o de um grupo, em vez de um partido). Em junho de 1929, Arze esteve em Buenos Aires participando da I Conferência dos Partidos Comunistas Latino-Americanos, que se realizou quase imediatamente após a fundação da Confederação Sindical Latino-Americana (CSLA) e do VI Congresso da Internacional Comunista.

A chegada ao poder de Hernando Siles (1925-1930) carregou consigo a esperança do avanço de pautas reformadoras. Na composição do governo, Siles tratou de incluir jovens radicais universitários. Arze foi um dos que aceitaram o convite, sendo alocado na Comissão para a Reforma Universitária e no Ministério do Fomento (1929-1930). Esta seria a primeira de suas várias aproximações com setores governistas.

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À época, havia pessimismo quanto à possibilidade de os trabalhadores das cidades e do campo se organizarem autonomamente. Para o autor, a classe trabalhadora boliviana ainda estava em processo de formação e, portanto, não estaria pronta para se tornar um ator político relevante. Tal percepção da realidade nacional não se alterou com o passar dos anos, o que serviu para dotar seus projetos de organização política de um caráter policlassista. Nesta linha, algumas realizações foram alcançadas. A Revolução de 1930, na qual os dirigentes da FUB participaram até militarmente, instituiu a autonomia universitária, bandeira levantada por Arze. Ainda em 1931, o autor tentou criar uma organização política singular: a Confederación de Repúblicas Obreras del Pacífico (CROP) – algo como um partido comunista trinacional, incorporando organizações da Bolívia, Chile e Peru, o que idealizava como um núcleo propagador do internacionalismo proletário para todo o continente. Mas a proposta não chegaria a ganhar corpo.

Em outubro de 1931, Arze viajou para Montevidéu para visitar o Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista, tentando viabilizar a transformação da CROP em uma seção boliviana da IC. Esta tentativa não teve sucesso, pois a IC via nesta organização a tentativa de se fundar uma nova Alianza Popular Revolucionaria Latinoamericana (APRA, partido criado pelo peruano Haya de la Torre), isto é, um projeto reformista de viés pequeno-burguês. Em dezembro de 1931 os cropistas cederam às críticas do Secretariado, dissolveram o grupo e renovaram suas atenções para a criação do PC Boliviano. Com o apoio da CSLA, chegaram a criar um Comitê Central Provisório – para compor um Partido Comunista no país. Contudo, assim como as tentativas anteriores, esta também virou letra morta. Os intentos de Arze esbarravam sempre na IC, ainda que ele tenha se esforçado muito para ser aceito pela organização; por várias vezes tentou criar um Partido Comunista em seu país, chegando mesmo a viajar para Moscou, mas em vão – foi sempre tratado como um intelectual pequeno-burguês e sua participação no movimento comunista nunca foi bem aceita.

A negativa da IC em reconhecer e legitimar os esforços de Arze, a figura mais importante do movimento comunista boliviano do entreguerras, foi uma das principais causas pelas quais não se logrou criar um Partido Comunista na Bolívia antes da década de 1950. A despeito disto, ele se manteve fiel às linhas de atuação programática (e teórica) determinadas pela IC, mesmo sem jamais ter sido um quadro oficial desta organização. O fato de ter muitas vezes privilegiado os interesses da União Soviética – em detrimento de posições dos trabalhadores locais – lhe custaria o posterior ostracismo dentro do movimento trabalhista de seu país.

Os biógrafos tendem a classificar Arze como um “stalinista”, mas isto deve ser relativizado. Certamente, ele demonstrou ter um fascínio pela URSS, e mesmo por Stálin, como ficou expresso no obituário deste líder soviético, escrito pelo boliviano em 1953, no qual o definiu como “o maior personagem da humanidade”. Porém, nunca abdicou de ler autores opositores do stalinismo, nem deixou de criticar os rumos do movimento comunista em nosso continente. Lia Trótski e outros opositores, indicava a leitura destes autores para militantes, e incluía tais livros em seus cursos e palestras. Sua postura independente nunca foi aceita pela IC; por outro lado, o fato de não ser um quadro da IC lhe deu a liberdade que poucos militantes comunistas da América Latina tiveram.

Com a eclosão da Guerra do Chaco (1932-1935), entre Bolívia e Paraguai, Arze, como outros comunistas, recusou-se a lutar e buscou o exílio no Chile, onde ministrou aulas na Universidade do Chile e fez contato com organizações socialistas locais. Com o fim da guerra e a derrota da Bolívia, um terremoto político varreu o país; um golpe de Estado inauguraria a era do chamado “socialismo militar”, período em que vários ex-combatentes dessa guerra assumiram o poder, acenando para reformas socioeconômicas substantivas e se aproximando dos vários agrupamentos de esquerda da época.

Foi nesta conjuntura que Arze, juntamente com outras figuras proeminentes do movimento radical, ascendeu pela segunda vez ao governo. O golpe colocou no poder o general David Toro (1936-1937), sendo Arze alocado no recém-criado Ministério do Trabalho e Previdência Social, presidido por seu amigo Waldo Alvarez, o primeiro trabalhador ministro da Bolívia. Outras figuras importantes da esquerda fizeram parte do governo, como Ricardo Anaya e José Aguirre Gainsborg. Da rápida participação destes militantes no governo, deve-se destacar seu projeto de instituir a sindicalização obrigatória, que deveria ser a base para a transformação da democracia representativa em uma “democracia funcional”, ou seja, uma democracia sindical nos moldes dos sovietes russos.

Os governos do dito “socialismo militar” eram reformistas, mas também anticomunistas (pois, sendo nacionalistas, eram avessos ao internacionalismo socialista); Arze e Aguirre Gainsborg tinham se filiado ao Partido Socialista do general Toro, mas nem isso impediu que o marxista e seus companheiros fossem presos e deportados pelo mesmo governo que os alçou ao poder. Arze retornou então ao Chile, onde logo se incorporou ao Partido Socialista de Marmaduke Grove.

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Em 1939, junto a colegas bolivianos exilados em terras chilenas, Arze ajudou a fundar a Frente de Izquierda Boliviana (FIB), uma tentativa de reproduzir a experiência chilena de uma frente de esquerda. No ano seguinte, o autor foi lançado à candidatura presidencial, aparentemente sem seu consentimento. Mesmo sem partido, sua candidatura foi apoiada pelos estudantes da FUB e das federações universitárias locais, além de ter respaldo de vários agrupamentos socialistas e, oficialmente, da Universidad Mayor de San Andrés, em que trabalhava (podia-se concorrer com o apoio de uma instituição pública ou social). Mesmo sem fazer campanha, e com um regime eleitoral excludente, Arze foi bem votado, obtendo 10 mil votos (de um total de 58 mil), contra o candidato das oligarquias.

Finalmente, em julho de 1940, houve em Oruro um congresso voltado para a criação de um partido que unificasse importantes grupos de esquerda boliviana – que foi denominado Partido de la Izquierda Revolucionaria (PIR). O PIR se definia como marxista, e procuraria demarcar sua diferença com o socialismo militar e nacionalista. Para Arze, estes seriam “pseudo-socialistas”, pois o único verdadeiro socialismo era aquele baseado nas “doutrinas de Marx e Engels”. Assim, o PIR propunha um socialismo marxista adequado às condições dos países semicoloniais e semifeudais. A tarefa no curto prazo era a realização da “revolução democrático-burguesa” que teria um caráter anti-imperialista e agrário. O partido seria policlassista e se limitaria a agir dentro dos marcos legais e democráticos.

Em paralelo, Arze continuava sua carreira de sociólogo acadêmico. Em 1940, criou o Instituto de Sociología Boliviana e, em 1941, editou a primeira revista científica sociológica da Bolívia, em que procurava divulgar o pensamento marxista. Entre 1941 e 1944 esteve atuando nos Estados Unidos (foi professor de Relações Interamericanas no Williams College); em 1948 trabalhou na Europa e em países da América.

Em julho de 1944, Arze sofreu um atentado, sendo baleado por elementos que, segundo alguns historiadores, estavam ligados a uma nebulosa sociedade militar chamada Razón de Patria (Radepa); para outros, teriam agido a mando do próprio presidente Gualberto Villarroel (1943-1946). Ele sobreviveu, mas com sequelas que provavelmente encurtaram sua vida. Neste momento, estava no auge da sua carreira parlamentar, sendo nos anos 1940 eleito senador, depois deputado, chegando a presidente da Câmara dos Deputados em 1947.

A linha política do PIR centrou-se na defesa da URSS e, portanto, acompanhou a linha de Moscou de aliança com os Estados Unidos e de combate primordial ao fascismo. A dificuldade de identificar o inimigo fascista era corrente: o próprio governo militar era visto por algumas facções políticas (mesmo de esquerda) como fascista, ainda que para outras fosse socialista. O PIR também identificou o Movimento Nacional Revolucionário (MNR) como fascista. O próprio PIR, que chegou a propor uma frente política com o presidente Villaroel, irá depois identificá-lo como fascista e apoiar o golpe que levou ao fim de seu governo.

Posteriormente, o PIR integrou a coalizão Frente Democrático Antifascista e a Unión Democrática Boliviana, além de fazer aliança eleitoral com o Partido Liberal – coalizões em que esteve junto com setores representativos da elite conservadora boliviana (conhecida como a “Rosca”). Nestas alianças, defendia a necessidade de consolidar a democracia, garantir avanços sociais para os trabalhadores e, principalmente, combater o avanço do fascismo interno. Aqui novamente o PIR estava de acordo com a política preconizada pela IC: as alianças com os “setores progressistas da burguesia”. O caso boliviano foi similar ao que ocorreu, neste período, com os PCs da Argentina, México, Brasil, Estados Unidos, Chile e tantos outros. O fim desta política de alianças se deu no governo Enrique Hertzog (1947-1949). A repressão violenta às manifestações operárias por forças governamentais produziu um grande trauma no PIR; rompeu-se a aliança, mas a demora nessa decisão não foi perdoada pelo movimento sindical que, a partir daí, transferiu sua lealdade ao MNR.

Em 1950 houve uma cisão dentro do PIR. Arze, Anaya e os militantes veteranos do partido se opuseram à criação do Partido Comunista de Bolívia (PCB). Esta decisão teve uma certa dose de ironia, pois, após tantas tentativas de fundar um Partido Comunista no país, agora que a oportunidade se abria era Arze que criava barreiras. Finalmente, o PCB seria fundado pela ala mais jovem do PIR.

Candidato à presidência novamente em 1951, Arze obteve cerca de metade dos votos que teve em 1940 (5.170 votos), ficando apenas em 6º lugar. A eleição foi vencida por Víctor Paz Estenssoro (com o apoio do PCB), candidato do MNR, com 54.049 votos.

Em julho de 1952, Arze decidiu dissolver o PIR. A maioria de seus militantes transferiu-se para o MNR, que a partir daí converteu-se no maior partido da classe trabalhadora. O protagonismo do marxista declinou, e a Revolução de 1952 foi feita sem ele. Vitoriosa a revolução, Arze colaborou com o novo governo. Em sua última participação na política boliviana, integrou a Comissão da Reforma Educacional (1953-1954) e foi um dos principais autores do Código da Educação Boliviana.

Como sociólogo, Arze organizou o I Congreso Boliviano de Sociología (1952) e foi o primeiro presidente da Sociedad Boliviana de Sociología, que nasceu neste evento. Foi também secretário do III Congreso Indigenista Interamericano (1954).

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Sociólogo, educador, deputado, foi autor de um dos primeiros ensaios de interpretação marxista da realidade boliviana

Arte: Marcelo Guimarães Lima
Para Arze e seus companheiros, era preciso restaurar a pureza da doutrina socialista para se compreender a realidade boliviana

2 – Contribuições ao marxismo

Em Ficha biográfica (1951), escrito autobiográfico, Arze definiu-se antes de tudo como um intelectual voltado a defender os interesses dos oprimidos de sua pátria. Foi um pensador de amplos interesses, atuando nas áreas da história, sociologia, política, pedagogia, direito, linguística, biografia, crítica bibliográfica e literária e, inclusive, ficção política futurista. Era poliglota, lecionou e deu palestras em vários países da América e Europa.

Sua maior frustração foi não ter realizado o principal projeto teórico de sua vida: fazer uma ampla e profunda interpretação da sociedade boliviana. Arze sempre lamentou que a falta de dinheiro, as condições políticas (suas variadas prisões e exílios) e sua própria intensa atividade política o tenham impedido de se dedicar adequadamente aos estudos e à produção intelectual.

Apesar de reconhecer os limites de sua produção, acreditava que sua maior contribuição foi haver “introduzido o marxismo no estudo da realidade boliviana, e tê-lo desenvolvido de um modo original” (não simplesmente “repetindo” leituras de fora).

Voltemos, então, àquela Bolívia dos anos 1920 e 1930, quando começavam as atividades políticas, intelectuais e profissionais de Arze. O ambiente entre os jovens universitários era de revolta e de busca de alternativas ao decadente sistema político do país. Desde os anos 1930, a literatura marxista de Lênin, Bukhárin e Plekhânov era regularmente encontrada nas livrarias bolivianas, em edições populares impressas na Argentina e Chile. Também nas universidades da Bolívia a literatura marxista e socialista era frequentemente encontrada nas bibliotecas e utilizada nas disciplinas.

Nesses anos de “socialismo militar” (nacionalista, pequeno-burguês e reformista), as correntes que reclamavam um “socialismo marxista” tinham como principal preocupação afirmar a importância das ideias de Marx para se compreender a sociedade boliviana. Já seus adversários pregavam a necessidade de uma elaboração exclusivamente nacional, recusando qualquer teoria elaborada a partir de outra realidade.

Para Arze e seus companheiros, era preciso restaurar a pureza da doutrina socialista para se compreender a realidade boliviana, o que só seria possível por meio do uso das categorias marxistas. Em suma, o marxismo teria fórmulas válidas para a compreensão de todas as sociedades humanas – e a Bolívia e a América Latina não seriam exceções. Entretanto, isso não significaria negar as especificidades de cada realidade nacional em cada momento de seu desenvolvimento histórico. No documento da Frente de Izquierda Boliviana, de 1939, propõe-se um socialismo marxista aplicado às condições sociais específicas de países semicoloniais e semifeudais (como a Bolívia), que tinham por característica não ser nem estritamente “proletários” nem “antinacionais”. Cabia, então, colocar como meta a realização de uma revolução “democrático-burguesa” que seria estruturada essencialmente por um caráter anti-imperialista e agrário.

Arze lançou um desafio aos membros de seu partido: “estudar marxisticamente as peculiaridades sociológicas da nação boliviana” (Programa PIR, 1940). O texto exemplar, nesse sentido, foi sua intervenção no debate sobre a caracterização da sociedade incaica (Sociografía del inkario, 1952), seu ensaio mais ambicioso, produto de anos de maturação intelectual sobre as especificidades da realidade boliviana.

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A formulação do esboço de suas principais teses data de 1933, quando Arze havia enviado uma carta à IC contestando a interpretação “indigenista” preconizada para os países de maioria quéchua e aimará. A IC defendia a criação de “repúblicas indígenas”, sobre as bases do “comunismo primitivo” típico dos chamados ayllus – comunidades originárias incaicas (similares aos mir russos). Daí a conclusão de que o moderno comunismo poderia frutificar nos países andinos apoiando-se na experiência da organização da vida comunitária dos ayllus. Arze, no entanto, entendia que daquele modo os comunistas sul-americanos simplesmente transportariam para o contexto de suas nações, de maneira mecânica, o debate russo sobre as nacionalidades (em particular o caso dos mujiques). Tais teses, portanto, nada teriam de marxistas, porque sobrestimavam o papel da “luta de raças”, em detrimento da luta de classes. Ainda na carta, ele definiu a sociedade incaica como “semifeudal”, pois se caracterizava pelo domínio de uma nobreza teocrática inca.

O marxista boliviano voltou ao tema em 1936, em um prólogo para o livro de Georges Rouma, La civilisation des Incas e, logo depois (1939), em outro prólogo para a obra de Louis Baudin, L´empire socialiste des Incas (ambos traduzidos pelo próprio Arze). No prólogo do livro de Rouma, Arze definiu a sociedade incaica como “comunista” – tendo sido, segundo ele mesmo afirma, muito influenciado por sua leitura dos Siete ensaios de Mariátegui e também por Haya de la Torre. Esta interpretação seria abandonada já no prólogo para o livro de Baudin; aqui, Arze vai buscar referências teóricas na obra de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

Partindo da tipologia de Engels, Arze passou então a definir o Império Inca como estando no “estágio médio” da “barbárie”. Assim, identificou a existência de uma avançada estrutura de classes no Império. A elite aristocrática e a casta sacerdotal tinham privilégios da partição de terras; a desigualdade se instalava diretamente na produção econômica; aparentemente, a distribuição de terras era feita em função dos interesses do Estado, mas este não era nada mais do que a expressão política dos interesses econômicos da classe dominante. A desigualdade se refletia também na divisão social do trabalho; para a elite dominante reservavam-se as funções mais altas da administração do Estado (militares, administrativas e sacerdotais); às massas oprimidas só restava executar o trabalho exclusivamente braçal ou servir nas camadas mais baixas do exército. Em resumo, o Estado incaico era um aparelho de dominação de classe, e através dele a elite controlava os meios de produção.

Assim, Arze procurou incorporar na sua análise as manifestações da desigualdade das classes a partir de elementos superestruturais daquela sociedade, como a religião, a educação e mesmo a linguagem. Buscou fugir de uma leitura economicista do marxismo, tão típica daqueles anos; citando a conhecida carta de Engels a Bloch, defendeu a necessidade de se analisar os elementos superestruturais da sociedade, negando enfaticamente a redução do marxismo aos aspectos econômicos e materiais. Sua conclusão seria que a sociedade incaica foi “semi-socialista”. Chegou a esta definição pela forma como interpretou o papel planificador do Estado incaico, e também por verificar aí uma certa visão social, expressa na proteção dos pobres – a quem se garantia o pão, as roupas e a casa –, apesar da limitada distribuição de terras.

3 – Comentário sobre a obra

Da proposta de Arze de interpretar a realidade boliviana através do método marxista, destacamos Sociografía del inkario (La Paz: Ed. Fenix, 1952), sua principal obra teórica, em que procura fazer uma análise marxista do Império Inca, criticando a crença muito difundida de que este império foi uma versão indígena do socialismo.

Na introdução dos Documentos orgánicos y políticos del PIR (La Paz: Trabajo, 1941), propõe fazer a primeira caracterização da sociedade boliviana utilizando o materialismo histórico.

Em Bosquejo sociodialéctico de la historia de Bolivia (Sucre: Revista de la Fac. de Derecho y Ciencias Sociales de la Univ. de Chuquisaca, 1940) buscou fazer uma história marxista da Bolívia, traçando um panorama da sociologia boliviana.

Hacia la unidad de las izquierdas bolivianas (Santiago de Chile: Taller Graf. Gutemberg, 1939) é um texto que formou a base para a criação das diretrizes do PIR (aqui aparece a primeira versão da citada introdução de 1941).

Escreveu muitos textos de análise da conjuntura política boliviana, como Bolivia bajo el terrorismo nazifascista (Lima: Empr. Ed. Peruana, 1945), onde denuncia o caráter fascista do governo de Gualberto Villarroel, defendendo a frente ampla democrática e policlassista representada pela constituição da Unión Democrática Boliviana. E também “Desterrados piristas: Bolivia, una democracia degollada” (Gutemberg Impresores, fev. 1951), uma carta aberta dirigida à ONU, denunciando a ditadura de Mamerto Urriolagoitia, que havia desterrado Arze e seus companheiros do PIR. Neste ano escreveu também um esboço de autobiografia: Ficha biográfica de José Antonio Arze (La Paz: Edição do autor, 1951).

Arze se identificava como um sociólogo e dirigiu muitos dos seus esforços para construir as bases institucionais para a sociologia boliviana; assim, em Hacia la creación de un Instituto Sociográfico de América Latina [ISAL] (La Paz: Ed. Fenix, 1953) reuniu documentos, projetos e também uma proposta para um curso de sociologia latino-americana.

Já “Polémica sobre marxismo” (Revista Jurídica, Cochabamba, 1952) é a reunião de diversos artigos em defesa do marxismo publicados na imprensa em resposta ao filósofo M. Kempff.

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O marxista foi ainda um educador – esteve presente em vários momentos do processo de reforma educacional na Bolívia. Apresentam suas contribuições para a reforma do sistema educacional boliviano os textos: “La autonomía universitaria” (Revista Universitaria, Santiago, set. 1939), mais tarde publicado junto a outros artigos no livro intitulado La autonomía universitaria y outros escritos afines (La Paz: UMSA, 1989), disponível na rede (https://repositorio.umsa.bo</a>); e Proceso de la educación boliviana (La Paz: Ed. Universo, 1947).

O livro Sociología marxista (Oruro: Ed. Universitaria, 1963), publicado postumamente, reúne textos didáticos para suas aulas na Escuela de Ciencias Económicas da UMSA (La Paz), por volta dos anos 1940. Nele, o autor procura as bases para formular uma sociologia marxista e também uma classificação geral das ciências a partir da concepção materialista da história.

Arze era um intelectual de grande erudição e interesses amplos. Em Escritos literarios (La Paz: Ed. Roalva, 1981)publicação também póstuma, apresenta textos que exemplificam sua paixão literária.

Vale mencionar também outras obras que não chegou a publicar em vida: a ficção científica Melsurbo: ensayo de novela futurográfica-marxista, ambientada en un porvenir distante – que se passa numa futura sociedade socialista, sendo “Melsurbo” (nome que reúne as iniciais de Marx, Engels, Lênin e Stálin) uma cidade localizada em algum lugar da URSS, pertencente à única pátria desse mundo futuro, “Panlandia”; e o ensaio político: “Hacia la URSAL (Unión de las Repúblicas Socialistas de América Latina)”.

Arze escreveu diversos panfletos, artigos saídos em revistas e jornais da época, além de conferências, discursos, programas de cursos. Sua bibliografia pode ser encontrada no livro de seu sobrinho, José Roberto Arze, Ensayo de una bibliografía del Doctor José Antonio Arze (Cochabamba: Ed. UMSS, 1968).

4 – Bibliografia de referência

FRANCOVICH, G. El pensamiento boliviano en el siglo XX. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1956.

GARCIA, H. et al. Los partidos de izquierda ante la cuestión indígena (1920-1977). La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2017.

KLEIN, H. Orígenes de la revolución nacional boliviana. Cidade do México: Grijalbo, 1993.

LORA, G. Historia del Movimiento obrero boliviano. La Paz: Editorial Los Amigos del Libro, 1967.

SCHELCHKOV, A.; STEFANONI, P. Historia de la izquierda boliviana. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2016.

STEFANONI, P. Los inconformistas del Centenario. Intelectuales, socialismo y nación en una Bolivia en crisis (1925-1939). Tese de doutorado, UBA, Buenos Aires, 2014.

Notas

* Marcos Vinicius Pansardi é professor do Instituto Federal do Paraná, com pesquisas na área de Pensamento Social Latino-Americano; cientista social (PUC-PR), mestre em Ciências Políticas e doutor em Ciências Sociais (Unicamp). Autor de, entre outras obras: Reinterpretando o Brasil: da revolução burguesa à modernização conservadora (Juruá, 2009).

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes e Pedro Rocha Curado, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário Marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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