Pesquisar
Pesquisar

O Mensalão em três atos – Mensalão II: A Conquista

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

(Foto: Flickr/Hianna)

Victor Mendonça Neiva*

Quando ingressei na faculdade em 1994 e comecei as minhas lições introdutórias, era repetido reiteradamente que, estudando em Brasília, era inadmissível que não fosse assistir às seções do Supremo. Colegas passavam horas a relatar os debates e as artimanhas dos julgamentos naquela corte. Estudantes de todo o país faziam excursões à Brasília para conhecê-lo. Enfim, o STF era, e certamente ainda é, o grande tema dos estudantes da Universidade de Brasília.

Pois bem, e lá fui eu, já atrasado, cumprir com a minha obrigação cívico acadêmica de assistir a sessão do pleno de nossa mais alta corte. Levei minha irmã, à época secundarista e hoje procuradora federal, eis que já ressabiado com as pegadinhas que os veteranos faziam com os calouros, era melhor não ir sozinho. Deparei-me com o julgamento de uma das ações penais em que o réu era o Collor. Não era a primeira, que teve grande comoção, e, por isso, havia muitos espaços livres na sala.

À medida que se desenrolava o julgamento, passei a me imbuir da certeza  de que iam pegá-lo. Era relatado com tamanho detalhamento de provas as vantagens obtidas pelo réu e os benefícios da empreiteira que era impossível no meu entendimento de garoto inocentá-lo. E eis, que veio a surpresa: entendendo que não estava cabalmente provada a relação entre as vantagens recebidas por aquele servidor público e o favorecimento da empresa, não se poderia condenar por presunção. Improcedência da denúncia.

Saí de lá profundamente decepcionado e, minha irmã, aos prantos. Neste dia descobri que o juridiquês era um instrumento de pacificação do povo. De fato, se dito em linguagem clara e coloquial aquilo que a tonelada de brocardos latinos  e termos técnicos obscureciam, seguramente teríamos a nossa queda da Bastilha.

Depois passei a perceber que não era só a linguagem a ajudar a letargia do cidadão. Toda a parafernalha de requisitos, desde o terno e grava ou a saia até os adereços dos prédios do Judiciário, com os mármores, as estátuas de bronze e a indumentária serviam para auxiliar a letargia do cidadão, estimulando um certo acanhamento e timidez diante de tanto poder e autoridade a indicar um pretenso conhecimento superior.

Por exemplo: o propalado ato de ofício, meus senhores, nada mais é do que a exigência de um “contrato de corrupção”. Ou seja, não bastava à acusação provar que o servidor recebeu uma vantagem indevida e que quem entregou teve uma pretensão atendida do órgão. Era necessária uma prova inequívoca da ligação entre ambos.

Assim, a discussão que pela imprensa pareceu ser apenas da existência ou não de prova, na verdade, era secundária à primeira, que ficava maliciosamente escondida: o que era necessário provar. Obviamente, como estes acordos de vontades entre corrupto e corruptor normalmente se dá a portas fechadas e com intermediários obscuros (os chamados testa-de-ferro), inúmeros bandidos não puderam ser apanhados pela Justiça. Graças a tal jurisprudência do ato de ofício.

O fato é que a sociedade brasileira, passados cerca de 20 anos, amadureceu. Os meios de comunicação e o acesso à informação se tornou mais livre da sociedade. Assim, o julgamento que só poderia ser visto por quem fosse à seção ou tivesse a disposição para ler os enfadonhos e enormes acórdãos, agora é acompanhado da sala de casa. E mais, uma parte bem maior da população já tem condições de melhor deglutir o indigesto vocabulário e entender, ao menos em parte, os fatos em discussão.

Daí a evolução naquilo que espero ser a morte da jurisprudência do ato de ofício e, mais do que isso, vermos em um julgamento do Supremo contrário a toda a sua jurisprudência, mas em favor da sociedade.

Já aconteceram inúmeras vezes de o STF em um caso particular modificar o entendimento reiterado em sua jurisprudência, mas, do que me recordo, eram todas em prejuízo do cidadão ou da sociedade. Como exemplo cito a libertação do Paulo Maluf em processo relatado por Carlos Vellozo, a soltura de Salvatore Cacciola, da relatoria de Marco Aurélio e, mais recentemente, o espantoso habeas corpus de Daniel Dantas relatado por Gilmar Mendes e a assustadora súmula vinculante das algemas. Além disso, houve os casos cíveis, como o conhecimento da matéria relativa aos expurgos inflacionários do FGTS, que reduziu sobremaneira o que o governo devia aos cidadão, a greve dos petroleiros no governo FHC, a concessão de auxílio-moradia por liminar pelo então Ministro Nelson Jobim e a própria contribuição previdenciária de inativos.

Certamente, não fosse o amadurecimento da cidadania de nossa ainda infante democracia (tem apenas 24 anos se contada da Constituição de 1988), provavelmente não se veria uma alteração de jurisprudência tão significativa para a nação.

A dispensa de prova do ato de ofício é mais importante que a própria Lei da Ficha Limpa para a sociedade, pois possibilitará que criminosos antes inatingíveis pelo sistema judiciário, tenham a sua ficha sujada pela dispensa de uma exigência para a condenação que, na maioria das vezes, é inviável.

Apesar disso, ao contrário da Ficha Limpa, é cedo para dizer que esta evolução veio para ficar. Como já vimos da história do STF, nem sempre a Justiça foi a sua aliada e, utilizando o termo de um atual ministro da corte de quando Advogado Geral da União, o que temos está mais para um “manicômio judiciário” que para um Poder da República.

*Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Revista Diálogos do Sul

LEIA tAMBÉM

Genocídio e genocidas um tema do presente, passado e futuro
Genocídio e genocidas: um tema do presente, passado e futuro
Dina Boluarte - desqualificada para governar, expert em obstruir a justiça
Dina Boluarte: desqualificada para governar, expert em obstruir a justiça
Chile processa general que “facilitou” crimes de policiais durante protestos de 2019
Chile processa general que “facilitou” crimes de policiais durante protestos de 2019
Espanha deve pedir perdão ao México e abandonar desmemoria, afirma historiador
“Espanha deve pedir perdão ao México e abandonar desmemória”, afirma historiador