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O Mistério da Obra Literária

Redação Diálogos do Sul

Tradução:

Araken Vaz Galvão*

banner-300-300-290x290. [downloaded with 1stBrowser]Durante muito tempo em minha vida não sabia, e demorei muito a descobrir, que a obra literária nasce de duas vertentes principais, quiçá fundamentais e, muitas vezes, antagônicas. E ainda que hoje penso que não se deve descartar a possibilidade de que possa haver mil outras vertentes.

Mas, para o que me interessa – e interessa nesse exato momento – ela nasce daquilo que sai da mente, via coração (ou da alma, como queiram, que eu não titubearia em chamar de emoção) do artista da palavra e daquilo que é acrescido pelo entendimento (seja ele por meio do coração ou pelo da alma, repito) daquele que a lê. Cabe enfatizar que nunca aquilo que é escrito é completamente assimilado, em toda sua complexidade, pelo leitor, e jamais poderia sê-lo porque se trata – autor e leitor – de seres diferentes e, portanto, donos sempre de sensibilidades perceptivas diversas, daí o caráter eclético de toda obra de arte, cujo mistério – já o disse algum importante sábio – nunca será completamente revelado; sendo assim, sua diversidade nasce dessa dicotomia: de quem transmite e de quem recebe. No entanto se quem transmite permanece, de certo modo, imutável – já que o momento de determinada criação não muda, porque não pode voltar, mesmo que o agente criador sofra e receba mudanças através dos tempos, sejam elas, as mudanças nascidas em forma de amadurecimento, sejam simplesmente porque o criador passe a sentir o mundo e suas armadilhas de forma distinta, o momento de sua criação não se repete. Portanto, toda a sua possível maturidade, e consequente mudança de modo de pensar e ver o mundo, só poderá ser revelada em uma nova obra, jamais na obra já escrita, salvo no caso especialíssimo de ele, o autor, a reescrever ou fizer como o fez o escritor português Miguel Torga, com o seu Senhor Ventura.
Aliás, sobre minha óbvia descoberta relacionada com o manancial por onde brota a obra literária, devo dizer que não conhecia ainda aquela máxima, a qual – grosso modo –, afirma que “o mistério da obra literária jamais será (seria), em nenhuma época, por alguém desvendado”, citada acima. Por outro lado, tendo em vista a expressão artista da palavra, sabendo que há quem diga que nós, os escritores, em particular os de ficção, incluindo aí os poetas, somos esse tipo de artistas, declaro que não ambiciono tanto, ficarei feliz se for classificado como artesão da palavra, um tosco escrevinhador. Pois me limito a tentar, juntando as palavras, formar – à moda do pedreiro da canção de Chico Buarque – um desenho mágico, ainda que, na maioria das ocasiões, consiga uma construção desesperada, uma espécie próxima da arquitetura de Piranesi, ou seja, escadas que formam labirintos que não levam a nenhuma parte e, na maioria das vezes, voltam sobre si mesmos, retornando a lugares de onde sequer partiram e dos quais eu mesmo sequer imagino existir.
Porém, esse desvio muda de assunto. A obra literária – dizia – nasce de duas vertentes principais, quiçá fundamentais e, muitas vezes, antagônicas, e morre (ou pode morrer) nas muitas tentativas acadêmicas de interpretação. Não que os acadêmicos sejam obtusos – que todos nós temos nossos graus (maiores ou menores) de obtusidades –, mas porque a forma do ofício dos acadêmicos (quando não existe também um pouco de pretensão, e pedantismo, os quais podem existir bastante em suas almas) leva-os a imaginar que seus trabalhos, ao analisarem as obras alheias, encerram – podem encerrar – a descoberta única, não vista antes por quem quer que seja, como se uma obra literária (ou quaisquer outras criações artísticas) tivesse somente um lado ou comportasse apenas uma leitura. Em outras palavras, que encerrasse tão-somente e transmitisse um só tipo de emoção. Emoção que chegaria de forma padronizada a todas as pessoas.
Sempre imaginei – digamos assim – que as nuances da obra literária possuíssem algo similar ao mistério (ou fatalidade) contido nos cromossomos. Em particular naquilo em que – sempre fazendo uso de raciocínios simples – um combina ou encaixa no outro, tornando o resultado harmônico, até mesmo quando essa harmonia seja anômala. Mas, no caso específico da obra literária, o casamento genético (a união cromossômica) pode ocorrer – e quase sempre ocorre – de forma sui generis, não no mesmo ser, porém no contato entre dois seres completamente diferentes – autor e leitor – que formam uma espiral única (quando não ocorrer de esse casamento suceder com uma grande defasagem de épocas), criando a magia de que, se o criador será sempre um determinado autor, a união com cada leitor dar-se-á de forma peculiar e, portanto, vária (mesmo em épocas diferentes), resultando, por sua vez, quase sempre em uma nova obra.
Pode até ocorrer que essa nova obra porventura vá sofrendo modificações, através dos tempos, e, ainda que seja lida pelo mesmo leitor, resulte em uma nova criação a cada momento de sua vida. Não raro, pode suceder o mesmo em relação ao autor, caso lhe fosse facultado continuar reescrevendo-a também através dos tempos. Se o leitor de 20 anos não será nunca o mesmo ao chegar aos 40 anos, pode suceder que também o autor, da mesma forma, não seja o mesmo, porém se a obra já está escrita, tudo estará consumado. Ou, em linguagem arcaica, culta ou rebuscada, consummatum est.
Porém, como essa prática não é corriqueira – salvo o ardil da revisão e correção –, a obra da juventude continuará a mesma, ainda que o seu autor passe a vê-la – mesmo no segredo de sua privacidade – de forma diferente. Talvez fosse mister voltar a citar, como exemplo nítido, o caso da obra de Miguel Torga – “O Senhor Ventura” –, que o autor, em sua última edição, confessou tê-la reescrito. Porém, esse, justamente por ser exceção, não serve de regra e, ademais, confirma o que digo. Ou melhor, que volto a dizer.
No entanto, a comparação genética, feita algures, neste texto, talvez não seja a mais apropriada – até mesmo porque me falta conhecimento mais apurado nessa área –, por isso, até mesmo porque a insistência nesse tipo de comparação pode fazer-se impertinente, sou obrigado a considerar que melhor fosse usar de outros elementos, mais acessíveis, para construir a metáfora.
Dessa forma, pensei no pólen e no estame, porém com essa opção esbarro no problema de que a junção dos dois resulta sempre em um fruto da mesma espécie e com pequenas variações na qualidade, o que não ocorre com a obra literária, recriada a cada contato com um novo leitor e, muitas vezes, com novos leitores através dos tempos. Desta forma, pode ser considerada fraca, no início, e uma obra-prima com o passar do tempo. Otto Maria Carpeaux declarou, mais ou menos, em entrevista que, certa feita, em Viena, ao entrar na livraria de um amigo, indagando sobre as possíveis novidades literárias do momento, ouviu desse que nada de novo tinha surgido, havia um verdadeiro marasmo criativo. Tendo conversado um pouco, ao sair, o amigo mostrou-lhe uma pilha de livros, bem próximo à porta. Veja, é de um autor novo. Não vendi um exemplar sequer. Pegue um e leve. Ou melhor, pode levar quantos exemplares quiser.
Carpeaux olhou o livro, o título era “A Metamorfose”, o autor era um nome, para ele, completamente desconhecido, Franz Kafka. Depois de examiná-lo rapidamente, jogou o livro de volta ao lugar, perdendo, daquela forma – segundo suas palavras – a oportunidade de possuir um raríssimo exemplar da primeira edição de quem viria a ser um dos escritores mais importantes da literatura mundial do século XX, quiçá de todos os tempos.
Mas, voltando à comparação tirada da botânica, essa opção seria válida somente se o estame (escritor) entrasse em contato com um mesmo tipo de pólen (leitor), que gerasse diferentes tipos de frutos, ainda que frutificados na mesma árvore. E essa metáfora canhestra leva-me a um poema de Castro Alves, ao falar em algo assim como: “São duas flores unidas/ São duas rosas nascidas/ Talvez do mesmo arrebol,/ Vivendo, no mesmo galho,/ Da mesma gota de orvalho,/ Do mesmo raio de sol./ Unidas, bem como as penas/ das duas asas pequenas/ De um passarinho do céu…/ Como um casal de rolinhas,/ Como a tribo de andorinhas/ Da tarde no frouxo véu./ Unidas, bem como os prantos,/ Que em parelha descem tantos/ Das profundezas do olhar…/ Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto,/ Como as estrelas do mar…”
Se fosse possível esse milagre, o de que da nova obra surgisse, de uma simbiose perfeita do ponto de vista da criação artística, uma árvore que produzisse sempre frutos diferentes, é que a sugestão de metáfora estame e pólen seria válida.
Toda essa especulação, porém, não exclui a consideração de que a criação literária é – sempre será – única, o que não impede que ela, ao contato com várias personalidades dos diferentes leitores, se multiplique em várias. Com o pormenor de que, quanto maior for a sensibilidade desse leitor, sua capacidade de usufruir beleza estética, mais importante tornar-se-á a obra literária (ou artística) e, dessa forma, manter-se-á ao longo dos tempos.
Se excluirmos, porém, a insígnia e a inveja, comuns ao coração de muitos críticos – e de todos os comuns mortais –, e pudermos nos ater de certa forma apenas às mudanças porventura havidas na alma do leitor sincero, explicar-se-ia, talvez, porque uma obra seja recebida com indiferença ao ser lançada e, com o passar do tempo – seu contato com novos leitores de sensibilidade mais aguçada ou de mentalidade mais aberta –, seja consagrada como obra-prima. Não podemos esquecer que o gênio nunca (ou raramente) é perfeitamente compreendido por sua época. Poder-se-ia citar, entre tantos, o caso de Kafka ou mesmo o de Van Gogh, na pintura e muitos outros. Entre nós, o caso mais expressivo, seria o da obra de José Cândido de Carvalho, “O Coronel e o Lobisomem”, que só foi reconhecida – e isso timidamente – depois que o mundo disse que o livro “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez era uma obra-prima, apesar daquele ter sido lançado três anos antes.
Por isso é que vejo sempre com alguma desconfiança as análises feitas hoje sobre a genialidade de obras completamente consagradas. Vejo essas análises como uma nova descoberta da pólvora. Quando não se assemelham – se me é permitida uma galhofa – com a constatação da quadratura do círculo. Da mesma forma ponho-me em guarda ao ver os louros cantados sobre as obras dos amigos ou de pessoas com grande exposição na mídia.
Naturalmente que não se possa excluir alguma observação (ainda que tardia) aguda de obras antigas, e antigas no sentido de terem sido escritas em épocas pretéritas, em que o estudioso descubra nuances até então ignoradas. Ainda que o desenvolvimento das ciências, em particular as ligadas ao comportamento humano, aporte novos elementos de análise ou de comparação, que possibilitem um novo olhar. Porém, esse fenômeno jamais será uma ocorrência comum ou corriqueira.
Contudo, todas essas ressalvas, não anulam, de nenhum modo, a afirmação básica dessas considerações: A obra literária que nasce na “mente, via coração (ou da alma, como queiram) do artista da palavra” jamais será igual àquela que surge depois de reciclada “pelo entendimento (ou pelo coração ou pela alma) daquele que a lê”. Porque aquilo que é escrito nunca será “completamente assimilado, em toda sua complexidade, pelo leitor – jamais poderia sê-lo porque se tratará sempre – autor e leitor – de seres diferentes e, portanto, de sensibilidades perceptivas diversas”, o que não se exclui de que a assimilação, através dos tempos, torne a obra bem mais densa, bem mais complexa. Repito.
Chegado a esse ponto, poder-se-ia citar novamente, ainda que não de forma textual, o que disse o sábio espanhol Dámaso Alonso y Fernández de las Redondas: “O mistério de uma obra de arte jamais será totalmente explicado”, quiçá cabal e, sem blague, redondamente compreendido.
Araken Vaz Galvão é escritor, membro da Academia de Letras de Valença, BA e colabora com Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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