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O novo Manifesto Comunista do presidente chinês, Xi Jinping

A ambição inabalável do líder é que o renascimento da China destrua as memórias do "século de humilhação”, de uma vez por todas
Pepe Escobar
Diálogos do Sul
Paris

Tradução:

No final da semana passada em Pequim, o 6º Pleno do Partido Comunista Chinês adotou resolução histórica – a terceira apenas desse tipo, em seus 100 anos de história – detalhando grandes realizações e expondo sua visão para o futuro.

Essencialmente, a resolução parte de três questões. “Como chegamos até aqui? Como alcançamos tanto sucesso? E o que aprendemos, para fazer que esses sucessos sejam duradouros?

Não se deve subestimar a importância dessa resolução. Ela põe em ‘letra de forma’ um fato geopolítico gigante: a China voltou. Em boa hora! E volta a seu modo. Não importa quantas ameaças e maldições o hegemon decadente mobilize contra a China, nada alterará o rumo já traçado.  

A resolução inevitavelmente disparará alguns erros de interpretação. Assim sendo, permitam-me alguma desconstrução, do ponto de vista de um gwailo que passou os últimos 27 anos entre Oriente e Ocidente.

Se comparamos as 31 províncias da China e os 214 estados soberanos que compõem a ‘comunidade internacional’, todas as regiões da China conheceram as mais rápidas ondas de crescimento que houve no mundo.

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No Ocidente, os números da equação que descreve o crescimento notório da China – sem paralelo na história conhecida – assumem, de modo geral, ares do mais insolúvel dos mistérios.

O mote “cruzar o rio sentindo as pedras” do Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping, que traçou a rota para construir o “socialismo com características chinesas” talvez seja a visão mais geral. Mas o diabo sempre mora nos detalhes: o modo como os chineses aplicaram – com um misto de prudência e audácia – cada um e todos os instrumentos que encontraram, para facilitar a transição para uma economia moderna.

O resultado – híbrido – foi definido num delicioso oxímoron: “economia comunista de mercado.” Na verdade, é a perfeita tradução, na prática, do legendário dito de Deng: “Não importa a cor do gato, desde que pegue os ratos”. E esse oxímoro foi, de fato, celebrado na nova resolução aprovada semana passada em Pequim.

A ambição inabalável do líder é que o renascimento da China destrua as memórias do "século de humilhação”, de uma vez por todas

Pool
O presidente chinês, Xi Jinping, deve assumir um terceiro mandato de cinco anos. Pool

Made in China 2025

Mao e Deng têm sido exaustivamente analisados ao longo dos anos. Concentremos nossa atenção aqui, na carta novinha do Papa Xi.

Imediatamente depois de elevado ao posto mais alto do Partido, Xi definiu seu muito claro plano máster: realizar o “sonho chinês” ou o “renascimento” chinês. Nesse caso, em termos de economia política, “renascimento” significa reposicionar a China ao lugar que é seu de pleno direito na história, onde sempre esteve e está há pelo menos três milênios: no centro do mundo, no meio, “Império do Meio”, como se sabe.

Já durante o primeiro mandato, Xi conseguiu firmar um novo quadro ideológico. O Partido – como poder centralizado – deve liderar a economia rumo ao que foi rebatizado “a nova era”. Formulação reducionista seria “O Estado Revida”. De fato, sempre foi muito mais complicado.

Não foi simples reaplicação de padrões da economia conduzida pelo Estado. Nada a ver com uma estrutura maoísta que capture grandes porções da economia. Xi embarcou no que se pode resumir como forma muito original de capitalismo de estado autoritário – na qual o estado é simultaneamente ator e árbitro da vida econômica.

A equipe de Xi, sim, aprendeu muito sobre o Ocidente, sobre usar mecanismos de regulação e supervisão, para controlar, por exemplo, a esfera do banking-sombra. Macroeconomicamente, foi possível conter a expansão da dívida pública na China, e a extensão mais competentemente supervisionada do crédito. Bastaram uns poucos anos para que Pequim se convencesse de que grandes riscos da esfera financeira estavam, sim, sob controle.

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O novo ritmo econômico da China foi de fato anunciado em 2015 via “Made in China 2025”, refletindo a ambição centralizada de reforçar a independência econômica e tecnológica do estado-civilização. Implicaria séria reforma de empresas públicas ainda ineficientes – algumas das quais se haviam tornado estados dentro do estado.  

Em conjunto, houve um redesenho do “papel decisivo do mercado” – com ênfase no fato de que novos ricos terão de estar à disposição do renascimento da China como seus interesses estratégicos – definidos, claro, pelo partido.

Assim sendo, o novo arranjo configurou-se em termos de uma “cultura de resultados” para o setor público, ao mesmo tempo em que se passava a associar a busca de ambição nacional, ao setor privado. Como conseguir esse efeito? Pela facilitação do papel do partido como diretor geral, e estimulando as parcerias público-privadas.

O estado chinês dispõe de meios e recursos imensos bem afinados com suas ambições. Pequim providenciou para que aqueles recursos estivessem ao alcance das empresas que compreendessem perfeitamente que lhes cabia uma missão: contribuir para o advento de uma “nova era”.

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Não há como discordar de que a China sob Xi, em breves oito anos, foi profundamente transformada. Diga e pense o que quiser o Ocidente liberal – incluindo histeria contra algum neo-maoísmo –, tudo será absolutamente irrelevante de um ponto de vista chinês, e não desencaminhará o processo.

O que se tem de compreender, tanto o Norte como o Sul Global, é o quadro conceitual do “sonho chinês”: a inabalável ambição de Xi é que o renascimento da China conseguirá afinal esmagar para sempre, por bem, as lembranças do “século de humilhação”.

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Disciplina partidária – à moda chinesa – é realmente algo a considerar. O PCC é o único partido comunista do planeta que, graças a Deng, descobriu o segredo de juntar riqueza.

E isso nos leva ao papel de Xi, já consagrado para sempre como grande reformador, no mesmo nível conceitual de Mao e Deng. Xi percebeu perfeitamente como o estado e o partido criavam riqueza: o passo seguinte é usar o partido e a riqueza como instrumentos a serem postos a serviço do renascimento da China.

Nada, nem mesmo uma guerra atômica, desviará Xi e a liderança em Pequim, dessa trilha. Já conceberam até um mecanismo – e um slogan – para projetar o novo poder: a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE, ing. Belt and Road Initiative, BRI), originalmente Um Cinturão, Uma Estrada (ing. One Belt, One Road, OBOR).

Uma passagem na montanha ao longo do Corredor Econômico China-Paquistão. Imagem: Facebook 

Em 2017, a ICE foi incorporada nos estatutos do partido. Mesmo considerando que sempre algo se perde na tradução, não há definição linear ocidentalizada para a “Iniciativa”.

A Iniciativa Cinturão e Estrada é montada em muitos estratos, ou níveis superpostos. Começou com uma série de investimentos que facilitavam a oferta, à China, de commodities.

Depois vieram os investimentos em infraestrutura de transportes e conectividade, com todos seus nodos e entroncamentos como Khorgos, na fronteira China-Cazaquistão. O Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), anunciado em 2013, representou a simbiose dessas duas trilhas de investimentos.

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Passo seguinte foi transformar nodos e entroncamentos logísticos em zonas econômicas integradas – por exemplo, como no caso da Hewlett-Packard baseada em Chongqing, que exporta seus produtos para a Holanda, via uma rede ferroviária que é parte da ICE. Depois, vieram as Rotas da Seda Digitais – de 5G a IA – e as Rotas da Seda Sanitárias que operam no combate à Covid.

Certo é que todos esses caminhos levam a Pequim. Trabalham como corredores econômicos e, também como vias para distribuição de soft power, “vendendo” o modo chinês de fazer as coisas especialmente por todo o Sul Global.

Façam Negócios, Não Façam Guerra 

Façam Negócios, Não Façam Guerra: esse pode ser o lema de uma Pax Sinica sob Xi. O aspecto crucialmente decisivo aí é que Pequim não visa substituir a Pax Americana, que sempre dependeu da variante de diplomacia movida a canhão, à moda Pentágono.

Há a declaração sutilmente reforçada de que Pequim não está interessada em se tornar um novo hegemon. O que interessa, acima de tudo, é remover quaisquer possíveis limitações que o mundo exterior possa impor a suas decisões internas e, especialmente, a seu arranjo político sui generis.

O Ocidente pode entrar em surtos de histeria por causa de tudo – do Tibete e Hong Kong a Xinjiang e Taiwan. Nada mudará.

Em termos concisos, eis como o “socialismo com características chinesas” – sistema econômico único, sempre em mutação – chegou à era do tecnofeudalismo associado à pandemia de Covid. Mas ninguém sabe por quanto tempo durará o sistema, e que forma mutante assumirá.

A corrupção, a dívida – que triplicou em dez anos – as lutas políticas internas – nada disso desapareceu na China. Para chegar ao crescimento anual de 5%, a China teria de recuperar crescimento em produtividade comparável ao daqueles frenéticos anos 80s e 90s, mas não acontecerá, porque a queda no crescimento veio acompanhada de queda paralela na produtividade.

Nota final sobre terminologia 

O PCC sempre é extremamente preciso. Os dois antecessores de XI abraçaram “perspectivas” ou “visões”. Deng produziu “teoria”. Mas só Mao recebe créditos por produzir “pensamento”. A “nova era” agora viu Xi, para todas as finalidades práticas, elevado ao mesmo status de Mao, também como produtor de “pensamento” – e como parte da constituição do estado-civilização.

Essa é a razão pela qual a resolução aprovada pelo Partido em Pequim semana passada, pode ser vista como o Novo Manifesto Comunista. E o autor, sem sombra de dúvida, é Xi Jinping. Se o novo manifesto será o mapa ideal de um caminho que leve a sociedade mais rica, mais educada e infinitamente mais complexa do que nos tempos de Deng, ainda não se pode saber. A sorte está lançada.

Pepe Escobar, Asia Times


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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