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O PANAMA POR TRÁS DOS PANAMA PAPERS

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

“Casablanca sem heróis”, sentenciou um dia John Le Carré quando lhe perguntaram sobre o Panamá. O escritor tinha visitado o istmo durante a rodagem do filme.

Julio Valdeón*

_DSF0714Ainda que a alta burguesia local o acolhera como a um marajá, não se deixou enganar. Nem as festas, nem as lisonjas eclipsaram seu olhar de raios X.

Embora convenha assinalar, tal como me explica o economista Julio Manduley, presidente do Centro de Estudos Estratégicos, aqui as coisas tomam forma elegante. Diferentemente das costumeiras carnificinas do vizinho colombiano, que esparrama sangue, manchando o Panamá, para além da inexpugnável selva do Darién, refúgio histórico da águia harpia, as últimas onças, as tarântulas vermelhas e as guerrilhas paramilitares, e os traficantes de seres humanos, cocaína e esmeraldas. Olhe, assevera Manduley, “em Panamá podem lhe dar um pé na bunda. Na Colômbia amanhece com a boca cheia de moscas”.

Um país de 100 famílias

Panamá. Marca registrada obrigatória no branqueamento de capitais de âmbito mundial. Uma orgia de arranha-céus, concessionarias de automóveis de luxo, cassinos, barracos entrando pelo mar, centros comerciais dignos de Dubai. Onde o dinheiro parece alienado por seus próprios jogos de magia e onde apenas 100 famílias, desde tempos imemoriais, repartem a propriedade da terra. Onde a compra e venda de sociedades “offshore”, a engenharia financeira, a sofisticação administrativa e os berloques para esconder centenas de milhões alcança níveis mais que perfeitos. O grupo Mossack & Fonseca, que uma investigação jornalística vazou milhões de documentos, tem escritórios em 40 países. Supostamente tinha ajudado a esconder ingentes quantidades de dinheiro, reciclados através das celebres sociedades em outros paraísos fiscais. O fato é que esse escritório criou mais de 240 mil empresas.
“Quando alguém chega para criar uma sociedade”, diz meu personagem, banqueiro que chamaremos Andy, “em teoria esses escritórios deveriam emitir comprovantes, a lei obriga isso, porém, aqui as leis são muito bonitas mas ninguém as cumpre, a ninguém importa e o nível de impunidade é imenso”. Estamos numa cafeteria, no centro de Panamá, a cidade do Pacífico alvoroçada pela atualidade de uns papéis bombásticos. Meu interlocutor saboreia uma fatia de filé. Entre um bocado e outro cita passagens bíblicas. “Mateus 5:15, mais ou menos: “Ninguém acendo uma lamparina e a cobre com um vasilhame ou a põe debaixo de uma mesa”.

Sem problemas com os gringos

Procura entre um montão de livros um, a autobiografia do ex-diretor do diário La Prensa, Fernando Berguido. Com deleite, recriando-se, lê um parágrafo. O que relata uma conversação entre Berguido e o ex-presidente do Panamá, Ricardo Martinelli, quando este ainda exercia o cargo. “Me disse”, escreve Berguido, que tinha decidido “não ter em seu governo nenhum problema com os gringos” e desde o início o que os gringos pedem eu lhes dou. Assim me contou que um desses dias, os estadunidenses andavam procurando a um capo colombiano que estava no Panamá. “Acabara de entrar em Tocumen e o haviam identificado, e eu lhes disse, levem-no assim mesmo, nada de recursos formais nem ordens judiciais”, ele me assegurou. “Eles agarraram o tipo e o colocaram num avião e já deve estar numa prisão gringa”. Na atualidade, Martinelli, que reside em Miami, está processado pelo Tribunal Supremo do Panamá por seis supostos delitos. Há outras três denúncias pendentes de admissão. Dois dos nove juízes do Supremo foram nomeados por Martinelli. 15 de seus ministros estão neste momento sendo processados ou julgados.
“Claro que o economista Manduley tem razão quando diz que Panamá é uma mafiocracia”, diz Andy. Manduley também fala de Estado delinquente. Refere-se às elites que dominam o país como lumpem-burguesia. Andy, que chegou a este segundo encontro carregado de papéis e livros, abre uma pasta. “Olhe, olhe o que tem aqui”. Alcança outro maço de papel. “São as atas da sessão parlamentar de 2001, quando se discutia a lei de Transparência. “Sabe que artigo suprimiram antes da votação final? O número 11. Por quê? Elementar: obrigava que os cargos eletivos apresentassem uma declaração de patrimônio abarcando os dois anos prévios a ascensão ao cargo, o tempo que estivessem na função e os dois anos posteriores”.

Mossack y Fonseca

Andy sabe muito bem do que se trata. Estrangeiro, estabelecido no Panamá há décadas, profissional da indústria bancária com cargos de altíssima responsabilidade, conhece Jürgen Mossack e Ramón Fonseca. “Jürgen é muito tosco e trabalha muito. Está pelo terceiro matrimônio. É de origem alemã. Dizem que seu pai pertenceu às SS, mas não sei. Numa entrevista ao The New York Times, ele diz que o negócio não acabou. Bom. O negócio para essas sociedades não se acabará, mas o seu sim”. Ramón, por outro lado, tem uma veia intelectual. Sua mãe é costarriquenha e já se sabe que em Costa Rica todos são poetas. De fato, ele já publicou várias novelas algumas premiadas. É certo. Por mais surrealista que pareça, Fonseca escreveu vários livros de ficção que exploram as perplexidades, lavagens e corrupções de uma economia e um país acusado de ser a formosa lavanderia do dinheiro. Uma sofisticada plataforma para comprar sociedades, por uns mil dólares (impostos incluídos), que logo mudam a outros paraísos, como é o caso das Ilhas Virgens, de onde eles operam.
“Convença-se”, me diz Andy, “Para se fazer um negócio lícito ninguém necessita de uma sociedade ‘offshore’. São criadas para fazer trapaças”. Eles trabalham por sua conta há quarenta anos, e elevaram o nível técnico de tal forma o negócio de criação de sociedades que perderam completamente o controle de qualidade.
Quem são seus clientes? Em demasiadas ocasiões são procurados pelo mercado ativo. Você procura por eles. Desde logo o tema das sociedades é dos escritórios maiores, porém o grande escritório, diversificado, do Panamá, é o de Morgan & Morgan. Esse é o que Fonseca e companhia aspiram ser. O pior é que há muitos outros escritórios, menores, honrados, que são os que realmente sofrerão devido ao risco de reputação”.

Tijolos de coca

Fazemos uma pausa. Pergunta por minhas primeiras impressões sobre o país. Estou aqui há apenas dois dias. Falo da viagem em um táxi, do aeroporto à cidade. O contrate é brutal, monumental, selvagem, entre as torres de aço e concreto invadindo mar, cor marrom, invadido de lama, e os conglomerados de barracos. Especialmente um, paralelo à autopista, que aparece entre escombros, gruas, betoneiras, restos apodrecidos da antiga selva tropical, hoje arrasada. Urbanizações batizadas de Versalles, monstros de dezenas de andares com os vidros pintados, palmeiras. Trata-se de um antigo porto de pescadores. Um conjunto de casas em condições lamentáveis, incitados pela especulação imobiliária. Meu táxi virou à direita. Paramos num semáforo, em frente a uma concessionária da Ferrari.
Quando o enviado especial do The New Yorker, Jon Lee Anderson, visitou Panamá em fins dos anos 1990, perguntou a um morador local, amigo, sobre a origem do capital movendo aquela febre construtiva. “Lavagem de dinheiro”, respondeu sem se alterar.
Manduley me explicou algo como isso. “Para a lavagem de dinheiro o primordial é salvar o patrimônio. Se tenho dinheiro, em vez de metros e metros cúbicos de papel escondido num porão, prefiro trocar por concreto. Se logo posso alugar ou vender esses andares, fantástico, mas tampouco será problema se não vendemos. Ou seja, tem que investir, construir, mesmo que no início não seja rentável. Porque o que o narcotráfico  quer não é uma taxa de lucro, mas sim manter o patrimônio. Isso explica o porquê de mais de 50% dos apartamentos de luxo que temos aqui estarem desabitados”.
Andy sorri. É um homem elegante, educadíssimo, culto, viajado. A esta altura do filme de horror já quase nada o surpreende. Fez da luta pela transparência o motor ético de sua vida, mas sabe que não há o que fazer.
Saímos da cafeteria. Iniciamos um passeio em automóvel. Estacionamos às margens da via marítima. Mostra um edifício. “Vê isso?” Foi erguido por espanhóis. Quando vocês tinham muito dinheiro para a construção. Antes da crise. A intenção era eludir o fisco espanhol, claro. Pois bem, foi concluído há pouco tempo. Continua vazio, completamente vazio. Ali não vive ninguém’. Pouco antes, em meio do coração financeiro da cidade, mostrou outro arranha-céu: “foi pago pelo narcotráfico colombiano, através dos judeus de Bogotá, que são alguns dos que movem o dinheiro deles”.
A esta altura minha retina é uma centrífuga de ostentação superpostas em infinitas camadas. Um mosaico de riqueza fantasmagórica que convive sem se despentear com imagens como a da garota que bem próximo de meu hotel, encostada na jardineira no meio da Via Argentina, mostrava um imenso cartaz. Em vez do habitual “Compro ouro”, dizia “Massagens. Só para homens”.
Demos de braçadas, a duras penas, pelo endemoniado trânsito da cidade em horário de pico. E isso porque é sábado e muitos de seus habitantes escaparam para as praias. “Aqui no Panamá há duas comunidades judias bem diferenciadas. Uma, honradíssima, de profundas raízes sefarditas. A outra, que chegou no transcurso do século XX, tem muito poder, e alguns de seus integrantes, além de estar por traz dos chamados edifícios fantasmas, ou seja, erguidos com capital possivelmente criminoso, como fórmula infalível para lavar o dinheiro da droga”.
“Veja isto. Somos o país das sociedades e, não obstante, apenas um punhado de sociedades realmente panamenhas têm funcionamento real”. Aqui tudo é fumaça. Espelhos de Alice através dos quais você embarca em viagem e se vê nos Mares do Sul sonhados por Stevenson e seus primos irmãos em Delaware (EUA), no Reino Unido, os atos de corais quase inabitados, minúsculos, com milhares de sociedades de fachada.
A esta altura Andy já é uma locomotiva em marcha. “Eu diria, e não o faço aproximadamente, isso é fruto de conhecer bem o negócio:  aproximadamente 8% do capital mundial flui nos paraísos ‘offshore’.  Atenção, não se trata de dinheiro obtido de forma ilícita, fruto de contrabando ou terrorismo, mas de fortunas e capitais que querem se esconder do olhar do fisco, que preferem não deixar rasto. Para lubrificar esses mecanismos funcionam complexos como os do Panamá. Ainda que na realidade sejamos simplesmente intermediários. Aqui você assina os papeis, vendemos pra você a sociedade, com a antiguidade necessária, e depois já a leva para outro lugar, um paraíso livre de impostos. Como aqui não gera dinheiro e lá não se paga imposto, perfeito”.
“Porém”, acrescenta, “o narcotráfico não opera dessa maneira. Os paraísos ‘offshore’, em geral, não são os favoritos para o narco. Os traficantes preferem investir em posses reais, tangíveis, que liberem seu dinheiro de forma asseada. O resultado é o que você está vendo aqui”.
O resultado? Filas e filas de ciclopes com os luminosos de néon ao vento e as luzes apagadas quando cai a noite. O resultado, naqueles apartamentos que sim estão habitados, os poucos, com decorações suntuosas, com chaminés importadas da Áustria, cortinas italianas, louça de porcelana, enquanto as esposas dos grandes intermediários percorrem os centros comerciais como o Multiplaza, que parece tirado da Arábia Saudita, com todas as grandes marcas e boutiques de luxo, uma atrás da outra.
Não é possível compreender a dramática história panamenha sem os Estados Unidos. Os habitantes locais gostam de contar quantas vezes foram invadidos pelos gringos. Vinte em um século. A última, a que acabou com Manuel Noriega numa prisão de segurança máxima ao norte do Rio Grande. As notícias de vazamento colocaram o país à beira de um colapso nervoso. As televisões são um verdadeiro “multicine” em sessão contínua com mensagens patrióticas. Estamos sendo atacados. Atacam à Pátria. Querem nos tirar do mapa. Isto é obra dos americanos que desejam acabar com a concorrência a seus próprios paraísos fiscais. O certo é que a legislação panamenha é cópia da de Delaware.

Prestígio água abaixo

O país acordou chamuscado por uma terrível ressaca. A farra dos últimos anos terminou com manchetes por todo o mundo e o prestígio por água abaixo. Ninguém sabe bem o que fazer para remediar a situação. Como redimir-se. Muitos dizem ter claro quem são os inimigos e repartem a culpa entre os estadunidenses e os franceses. “Porém os franceses não gostam que se burlem deles”, diz Andy, “e tiraram Panamá da lista negra, depois do país ter feito montões de promessas, e eles enviaram um questionário com mais de trinta perguntas relacionadas com algumas sociedades, etc., e casualmente não foram respondidas duas das perguntas mais importantes”.
O que há de certo nas reclamações de Mossack e Fonseca, que asseguram que foram rackeados? Nada impossível. Isso é trabalho de um insider. Diria que alguns dos empregados suíços que ali trabalham. Seguramente lhe prometeram tudo. Como não cumpriram começou a gravar. A baixar tudo. E saiu dali com duas malas cheias de materiais”.
 
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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