Pesquisar
Pesquisar

O pensamento cristão é fonte de violências contra meninas e mulheres, diz teóloga

A violência sexual cometida contra meninas no âmbito familiar é mais frequente do que as famílias brasileiras querem admitir e é uma violência abrangente
Lusmarina Campos Garcia
Catarinas
Florianópolis (SC)

Tradução:

Uma menina de dez anos engravidou do tio que a estuprava desde os seis anos de idade. A justiça do Espírito Santo autorizou o aborto. Interrupção de gravidez derivada de estupro é um dos casos admitidos pela lei brasileira.

A autorização judicial foi necessária pelo fato de a menina ser menor e, portanto, tratar-se de estupro de vulnerável. Não há dúvida de que este abortamento precisava ser feito, com a máxima urgência. Além da gravidez resultar de crime, ainda representava um risco para a vida da menina.

A violência sexual cometida contra meninas no âmbito da casa é mais frequente do que as famílias brasileiras querem admitir. É uma violência abrangente, posto que praticada contra mulheres de todas as idades.

A gravidez de uma menina de dez anos que é estuprada pelo tio desde os seis é algo chocante, repugnante, é uma monstruosidade.

A violência sexual cometida contra meninas no âmbito familiar é mais frequente do que as famílias brasileiras querem admitir e é uma violência abrangente

Foto: Alexandre Campbell/Agência Pública
Lusmarina Campos Garcia é teóloga, pastora evangélica e pesquisadora em direito

No entanto, pergunto: e se a menina tivesse doze anos, seria ainda muito chocante? E se tivesse quatorze ou dezesseis? O mecanismo de justificação do estupro é posto em moção quando se trata de estupro de mulheres adolescentes, jovens e adultas.

Mas o princípio gerador da violência contra mulheres de outras idades é o mesmo que possibilita a violência contra uma menina de dez ou mesmo de seis anos. A violência sexual contra as mulheres não tem idade. E ela só existe porque há correntes de pensamento e instituições que a justificam, e mais do que isso, que a produzem.

O pensamento ocidental cristão é uma das fontes produtoras de violência contra as mulheres. Na medida em que utiliza uma hermenêutica bíblica a-crítica e constrói teologias de subalternização das mulheres, abre uma fonte abundante de produção de violência.

A luta por manter o aborto criminalizado é só um dos jorros desta fonte de violências abertas. Seguindo a tradição patriarcal-misógina do pensamento filosófico ocidental, os pais da Igreja identificaram a mulher como “a porta da entrada do diabo no mundo” (Tertuliano), “a representante da sexualidade e da carnalidade, o que a coloca num estado inferior e negativo” (Orígenes), “o animal mais daninho” (São Cristóvão), “uma besta insegura e instável” (Santo Agostinho).

A sua “redenção” foi operada pela maternidade. Esta é a base da teologia patriarcal que até hoje mantém as suas garras sobre a vida e os corpos das mulheres cerceando-lhes a autonomia e a liberdade de serem quem são e de viverem a partir das suas próprias escolhas.

Com as mudanças sociais ocorridas a partir dos processos revolucionários dos séculos 18 e 19 as mulheres tornaram-se sujeito de direito assim como força de trabalho relevante nas diferentes sociedades. Educaram-se e passaram a incidir sobre a vida social e profissional nos mais diversos âmbitos. Tornaram-se pessoas e cidadãs autônomas.

No entanto, esta autonomia é rejeitada e combatida pela mentalidade patriarcal que ainda operacionaliza as relações sociais, profissionais, religiosas e familiares. A autonomia das mulheres é percebida como ameaça para esta mentalidade que quer assegurar-lhes o lugar de reprodutoras, geradoras de filhos para os homens e de trabalhadores e consumidores para o mercado.

A menina grávida de dez anos que é estuprada desde os seis deve nos envergonhar como nação, e não pode permanecer como um caso isolado, porque não o é.

Quantas meninas e quantos meninos de seis anos são estuprados nos lares brasileiros, cotidianamente, e nós não ficamos sabendo?

Este caso precisa nos confrontar com as razões sociais, culturais e religiosas que permitem que ele exista e que continue se repetindo. Precisa igualmente gerar a responsabilização não só do homem que cometeu o crime, mas de todas as instituições, instâncias governamentais e grupos sociais que agem para que as fontes de violência contra as mulheres continuem abertas.

Lusmarina Campos Garcia é teóloga, pastora evangélica e pesquisadora em direito.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Lusmarina Campos Garcia

LEIA tAMBÉM

Trump, passado e futuro do inferno que vivem as pessoas trans nos Estados Unidos
Embora minoria, população trans vira grande alvo da cruzada reacionária de Trump
Abuso sexual e recrutamento forçado violência rouba infâncias no Haiti
Abuso sexual e recrutamento forçado: violência rouba infâncias no Haiti
Jornalista brasileiro denuncia perseguição por agentes da Ucrânia no Brasil
Jornalista brasileiro denuncia perseguição por agentes da Ucrânia no Brasil
Crianças migrantes exploradas nos EUA entenda como Biden facilitou abusos e tráfico infantil (1)
Crianças migrantes exploradas nos EUA: entenda como Biden facilitou abusos e tráfico infantil