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O povo Argentino e suas bandeiras

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

O povo Argentino e suas bandeiras a um mês de “Cambiemos”

Adolfo Pérez Esquivel*

Adolfo Pérez Esquivel1Os direitos humanos e a democracia são valores indivisíveis, por isso nossos presidentes costumam assumir no dia 10 de dezembro, dia em que se comemora o Dia Universal dos Direitos Humanos.

Foi uma lástima que o Presidente da nova administração do Poder Executivo não tenha mencionado os direitos humanos – entre outros esquecimentos intencionados – nem uma só vez em seu discurso e só tenha mencionado o humano como “recursos”.

A frente de partidos que deixa o governo teve, em três gestões, uma grande oportunidade para desmontar a herança neoliberal e, embora tenha avançado em alguns aspectos, não soube, ou não pode ou não quis segundo os casos, desmontar essa herança e avançar em um processo de emancipação nacional e social como aconteceu em outros países da região. Seu discurso muitas vezes contrastava com seus atos e alianças (corporações mineiras, do agro, petroleiras e financeiras), enquanto consolidava um estilo de confronto e polarização que foi reduzindo o apoio que tinha em certos setores sociais, culminando com a derrota nas eleições.

Depois disso, apesar de ter perdido, a FPV não ternou pública nenhuma autocrítica de porque aconteceu o que aconteceu. Paradoxalmente, não haver reconhecido nenhum erro em 12 anos pode ter muito a ver com este desenlace: que pela primeira vez uma coalizão de direito assuma o poder através de eleições livres e abertas.

O povo avaliará as decisões tomadas com base nas promessas de campanha, em seus direitos, necessidades e o que vá mostrando a realidade. Enquanto isso, o que vemos neste primeiro mês, são iniciativas muito preocupantes que atentam contra os trabalhadores, as instituições e direitos básicos para qualquer democracia.

Durante a campanha, a coalizão eleita “Cambiemos” colocou ênfase no respeito às instituições e à república. No entanto, em menos de uma semana pisoteou seu próprio relato republicano com uma enxurrada de Decretos de Necessidade e Urgência que nada têm de necessários nem de urgentes, com a finalidade de evitar o debate de nossos representantes no Congresso, sabendo que podem ser convocadas sessões extraordinárias.
Não apenas interveio e dissolveu organismos criados por lei, mas quer forçar a destituição da Procuradora Geral da Nação, cujo mandato outorgado pelo Senado ainda está vigente, e já lhe retirou funções que representavam um avanço institucional.

Fatos que se somam a uma medida autoritária inédita: a nomeação por decreto de dois juízes na Corte Suprema de Justiça. Os juízes nomeados por um presidente são juízes do Presidente, sem importar seus currículos. A Venezuela bolivariana que o “Cambiemos” tanto critica nunca fez algo assim, seus juízes sempre foram aprovados pela Assembleia Nacional.

É indispensável iniciar um processo amplo e participativo de democratização da justiça e seleção de magistrados de cara à sociedade.

Em matéria de segurança e direitos humanos, paradoxalmente, no único momento em que o Presidente Macri assumiu o papel de “defensor dos Direitos Humanos” foi em sua primeira apresentação no MERCOSUL e não teve nada a ver com a Argentina. Mostrando seu alinhamento intervencionista defendeu aqueles que estão presos por terem queimado edifícios na Venezuela para derrocar um governo democraticamente eleito.

Enquanto isso, na Argentina já há mais de 6.843 casos de torturas em cárceres no ano de 2014, que o novo governo tem que assumir, visibilizar e investigar com base nos relatórios que elaboramos entre a Comissão pela Memória da Província de Buenos Aires, a Procuradoria Penitenciária da Nação e o GESPYDH do Instituto Gino Germani da UBA.

Dentro o país, o Pro quer subordinar a questão social às políticas de segurança que, nessa perspectiva, operam como reprodutoras das desigualdades. As declarações de emergência em matéria de segurança e questão penitenciária não apontam para a promoção de uma mudança do paradigma punitivo do Estado, nem para atacar o delito complexo, mas mantêm o viés classista, de efeito e seletivo do último elo da cadeia, enquanto pretendem legalizar contratações diretas invés de fazê-las com licitação.

A coalizão eleita também falou muito de deixar de perseguir o outro por pensar de forma diferente, e a primeira coisa que fez é desmantelar a Lei de Meios, com a intenção de priorizar a liberdade de empresa sobre a liberdade de imprensa.

A Lei de Meios, não é uma lei K (de Kirchner), é de todos os argentinos porque foi ampla e longamente debatida por nossa sociedade, e porque substituiu a lei de fato da última ditadura. Quando fui apoiá-la nas audiências nacionais do Congresso, reivindicamos o objetivo de desmonopolizar os meios e democratizar a palavra. Poder-se-á objetar a forma de instrumentação da lei, mas de modo algum se pode aceitar a volta atrás com o direito à livre expressão. Por isso sempre vou defender a Lei de Meios e sua correta aplicação. Em vez de censurar, nós, argentinos, necessitamos mais vozes, porque a paz se constrói no respeito à diversidade e aceitando críticas.

Outra das bandeiras de campanha da atual frente de governo foi a de Pobreza Zero, porque ainda persistem graves desigualdades a ser resolvidas como os problemas de acesso à terra e a uma moradia digna, e ao trabalho. Mas as medidas tomadas neste pouco tempo foram em sentido totalmente contrário. Entre elas, desvalorizaram-se os salários em 45%, foram consentidos aumentos em bens primários, suspenderam-se as paritárias e a publicação de estatísticas, baixaram os impostos aos que mais têm e despediram em massa milhares e milhares de funcionários públicos – o que pode ser imitado pelo setor privado – para impor o medo. E enquanto reprimem os que protestam, o Ministro de Economia se pronuncia extorsivamente dizendo aos trabalhadores e sindicatos que devem avaliar se preferem pedir aumentos ou manter fontes de trabalho. O neoliberalismo acarretou a perda da soberania nacional, privilegiou a entrega do patrimônio nacional às grandes corporações estrangeiras, enquanto aumentava na população a marginalidade e a fome, por meio da impunidade política e jurídica de seus artífices. A história argentina e do mundo inteiro nos ensina que não é possível conciliar a política “da derrama” com os direitos e as necessidades do povo.

A nova administração – com seus gerentes de corporações ou CEOs – deve respeitar as instituições democráticas do Estado e assumir que sua primeira obrigação é defender e promover os Direitos Humanos e do Povo. Não deve cair na “embriaguez do poder” que afasta a muitos funcionários do caminho que devem seguir. Os governos passam e os povos ficam. Os governantes devem cumprir suas funções como Servidores do Povo, e não servir-se do povo para seus interesses partidários e pessoais.

Devemos usar a memória para que nos ilumine o presente. O povo argentino passou por etapas dolorosas entre luzes e sombras, e assumiu a resistência e a luta popular para recuperar a democracia, a Verdade e a Justiça. Muitos de nós arriscamos a vida em defesa das liberdades civis e dos direitos do povo. Não podemos renunciar às bandeiras que nasceram do povo e a ele pertencem. Nós, que lutamos desde sempre, não estamos dispostos a dar um passo atrás.

Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz.

*Fonte original: http://www.adolfoperezesquivel.org/?p=3843


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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