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Proclamação da República, por Benedito Calixto (1853–1927) / Wikipedia

Cannabrava | O que esperar de uma República que começou com um golpe?

O 15 de novembro instaura a República que ficou conhecida como Velha. Não por idade, mas por ser retrógrada, conservadora. Se mantinha pela força das armas e a ignorância do povo
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

* Texto originalmente publicado em

135 anos de República: nada a comemorar.

Sexta-feira, 15 de novembro de 2024, 135 anos do Primeiro Golpe Militar Republicano. Triste República essa nossa que nasce de um golpe de Estado. Mais que um golpe contra a institucionalidade praticado pela necessidade de barrar a revolução liberal.

Nada parecido com o liberalismo econômico dos dias de hoje. Os liberais lutavam contra o absolutismo e por um estado democrático, participativo. Isso ameaçava a hegemonia dos grandes latifundiários escravistas.

O 15 de novembro instaura a República que ficou conhecida como Velha. Não por idade, pois durou meros 40 anos, mas por retrógrada, conservadora. Ficou conhecida também como a República do Café com Leite, posto que o poder era alternado entre as oligarquias das Minas Gerais e de São Paulo. Poder que se mantinha pela força das armas e a ignorância do povo.

A Revolução de 30 se aproveita da ruptura do pacto mineiro-paulista, no bojo da crise econômica mundial de 1929, com apoio dos liberais do sul e do nordeste e mineiros descontentes, e rompe de fato a institucionalidade. O maior feito dos revolucionários de 30 foi semear o país de escolas e criar a infraestrutura necessária para iniciar um ciclo de desenvolvimento fundado na industrialização. O maior feito da restauração oligarca foi fechar escolas, impor a má escola, desindustrializar.

A Nova República também nasce e se impõe pela força das armas. E essa contradição entre a Velha e a Nova República vai conduzir o destino do país por todo o que restava do século 20 e chegar ao século 21 apenas disfarçada de modernidade e plena de alta tecnologia. O que houve de avanço foi propiciado nos períodos em que prevaleceu a hegemonia do Novo, porém, nunca tarda para que o Velho recupere seus espaços. A maior causa dos percalços é a servidão intelectual.

A entrada no século 21 se assemelha à volta de D. João VI (1808). Se não, vejamos. Abertura dos portos para a potência hegemônica, é proibido a manufatura e a indústria no país, vamos ocupar as terras dos indígenas, vamos exportar minérios, comprar trilhos, exportar soja, comprar feijão. É proibido pensar! A imprensa: só a Régia, a do pensamento único. Liberais? Cadeia pra eles. Há um agravante. Agora o que impera é a ditadura do capital financeiro, autodenominado liberalismo econômico.

Em 2015, na avenida Paulista, simbólica de São Paulo, e em Brasília, manifestantes aproveitaram o feriado do dia 15 para pedir o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Estes queriam um golpe de Estado, outros querem a volta dos militares. É. Há coerência nisso.

Na casa dos outros é espetáculo de pirotecnia

A alienação da nossa mídia chega às raias do absurdo. Ainda em 2015, importante para ela eram os fatos ocorridos em Paris, as manifestações do povo francês em choque com os múltiplos atentados de então. Sim, de fato, foram fatos consternadores, não houve como não ficar indignado diante da morte de seres humanos vítimas da imbecilidade das guerras.

Mas o que choca no comportamento de nossos meios de comunicação é a indiferença com que encaram fatos tão ou mais graves que os acontecidos em Paris que ocorrem em nosso território. A catástrofe provocada pelas mineradoras em Minas Gerais em 2015 foi apenas noticiada. É a indiferença com que a mídia encara os quem e os porquês tanto da catástrofe no Brasil como dos atentados na França.

Para os meios de comunicação desse mundo dito ocidental que vive sob a ditadura do capital financeiro, quando o morticínio ocorre longe de casa, é normal, mais que notícia, é espetáculo. No caso do Iraque, para a cidadania estadunidense e francesa, e mesmo a brasileira, foi espetáculo de pirotecnia. Para os iraquianos, gente como nós, foi um país destruído, milhares de mortos cujos parentes até hoje não entendem o porquê. Tamanha destruição que até hoje o país não consegue erguer-se.

Para os franceses, o bombardeamento da Líbia foi um espetáculo propiciado pelos maravilhosos Mirage e Rafalle. Para o povo líbio, para os que sobreviveram na Líbia, foi o fim de uma revolução verdadeira. Liquidaram com a Líbia como Estado nacional. Sobrou nada.

Em ambos os casos, Líbia e Iraque, aos quais se pode acrescentar Síria, Líbano, Palestina, fatos como o de Paris fazem parte de seu cotidiano, são obrigados a conviver diariamente com a barbárie da guerra que lhes é imposta pelos países da Otan. Inclusive no Brasil, onde se comete 108 assassinatos por dia, num cenário de cidade ocupada, as pessoas já convivem com a violência de guerra civil no cotidiano de suas vidas.

Não se pode deixar de mencionar esses fatos para poder situar-se diante do escândalo midiático provocado pelas multidões atentadas na maravilhosa Paris. A população atônita, perplexa diante de seus mortos, a se perguntar: “Por quê?”. A indignar-se, em pânico, sentindo-se indefesa. Aceitando com indiferença a retaliação sobre os outros. Como se sente um palestino diante do terror que lhe é imposto diariamente por Israel com o apoio de seus aliados?

François Hollande, presidente da França, reconheceu que o que ocorreu em Paris, em 2015, foi “um ato de guerra”, de “absoluta barbárie”, acrescentou. Sim, de fato, foi um ato de guerra. Quem começou essa guerra? Só que agora, foi um ato de “barbárie” porque foi em casa. Bom é quando se pode manter a guerra longe das fronteiras domésticas.

Bashar al-Assad, presidente da Síria, esteve então na linha de frente de uma guerra que não foi ele que declarou. Ele não teve dúvida em apontar a própria França como responsável: “as polícias equivocadas dos Estados ocidentais, particularmente a França, em relação aos eventos na região (Oriente Médio) e o apoio de numerosos de seus aliados aos terroristas são as razões que estão por trás da expansão do terrorismo”.

Notícia ao lado informava que os Estados Unidos mataram Jihadi John, um cidadão britânico que se filiou ao Estado Islâmico. Ele foi atacado por um drone, um avião de pequeno porte sem piloto. Navega por controle remoto, como um brinquedinho eletrônico. Mata sem correr o risco de ser morto.

Ao mesmo tempo, a França  intensifica o bombardeio sobre cidades sírias. Diz que Ar-Raqqah é reduto do Estado Islâmico. Qual será o resultado? Quantos civis morreram já por ação desses drones na Síria? Quantos civis estão sob o terror da guerra na Síria? Em que parte do mundo não há islamitas? O que haverá depois disso? Desembarque de tropas bem ao estilo dos tempos do colonialismo? É uma escalada bélica que não tem fim. Como sobreviver com esse sentimento de impotência?

Outra medida, e essa contamina toda a Europa, é de controle rígido, dificultando a vida dos refugiados. Ao longo de 2015, havia quase um milhão de refugiados. Isso sem contar outros vários milhões que vivem confinados nas periferias das grandes cidades. Resultado: mais ódio, mais repressão, mais afogamentos de barcos lotados e… nenhuma solução. Que solução pode haver para barrar o fluxo de refugiados que fogem de situações que não foram eles que criaram?

Diante disso tudo, reúne-se o G-20. Reúnem-se os ricos com a assistência dos remediados para discutir como manter e dar longa vida ao status quo. Vai mudar alguma coisa?

Catástrofe anunciada

Em Minas Gerais, as mineradoras mantêm mais de 900 barragens. No Brasil, são cerca de 15 mil barragens as duas que romperam em Bento Rodrigues, distrito de Mariana. A população denunciou que havia uma terceira barragem trincada e que poderia romper a qualquer momento. Das quase 15 mil barragens como essas existentes, 165 (15%) estavam em situação de risco em 2015. Pior, não há planos para enfrentar situações de emergência. Acidentes como esse, portanto, poderão se repetir ad infinitum — como de fato aconteceu em Brumadinho em 25 de janeiro de 2019.

Em 1997, a Vale foi vendida por R$ 3,3 bilhões, quando o valor estimado era de R$ 92 bilhões. Luis Carlos Mendonça de Barros, originário de empresas financeiras, conduziu esse processo maluco por ordem de Fernando Henrique Cardoso. Houve oposição no Congresso e pelo povo nas ruas. Foram atropelados pelo trator do governo com apoio da mídia.

Não se tratava de uma empresa qualquer. Era a maior mineradora do país, processava ouro, cobre, alumínio, manganês, urânio e, claro, ferro. Tinha a maior frota de navios graneleiros, estradas de ferro, portos e 700 milhões de reais em caixa. Antes de pôr a empresa em leilão, o governo de FHC providenciou a demissão de 12 mil pessoas.

Como avaliar tamanho patrimônio? Difícil. Além das jazidas em exploração, havia o mapeamento dos recursos na geografia nacional feito pela Vale e pelo Ministério das Minas e Energia. Carajás, por exemplo, não foi contabilizado.

Quem comprou e como?

Foi o Consorcio Brasil, formado pela CSN (Companhia Siderúrgica Nacional, histórica, a primeira, patrimônio nacional, nunca deveria ter sido vendida), uma estatal também vendida na bacia das almas, e a Bradespar (Banco Bradesco) e o fundo Previ. O Consorcio arrematou 42,73% das ações por R$3,3 bilhões e, com isso, assumiu o controle da empresa. Rapidamente a companhia se transformou numa multinacional com ações vendidas nas principais bolsas. A partir daí, o único objetivo é o lucro dos acionistas.

Plebiscito realizado em setembro de 2007 com três milhões de brasileiros, 94,5% responderam que a empresa devia ser estatal, reestatizada, portanto. Não é por menos que, em 2015, havia 107 ações na Justiça questionando isso. Fernando Henrique privatizou 70% do patrimônio nacional. Difícil avaliar o valor de tudo isso. Devia estar na cadeia.

Importante levantar esses antecedentes. Enquanto a Vale era empresa pública, gerenciada pelo Estado, desenvolvia alta tecnologia e havia preocupação de apoiar a pesquisa nas universidades e certo cuidado com a nação, vale dizer, as pessoas. A partir da internacionalização e entrada de outras grandes mineradoras transnacionais, de origem australiana, estadunidense, chinesa e europeia, o saqueio está sendo realizado sem controle. É um saqueio a moto-contínuo acompanhado de corrupção, também a moto-contínuo. Pois, que outra coisa que não a corrupção para garantir tanta impunidade? Tanto saqueio? A empresa tem hoje um lucro anual aproximado de 8 bilhões de dólares. É, a empresa vai bem, o resto são sequelas…

Absurdo dos absurdos: vendemos minério para a China. A China processa esse minério e vende trilhos para o Brasil, que por ordem de D. João VI revivido liquidou com o parque industrial nacional. Trilhos para saquear mais minério.

Como se não bastasse, a Fiesp, a federação que já foi dos industriais e hoje é de executivos e gerentes, em 2015 pedia, em anúncio de página inteira, que o Brasil se filiasse ao Pacto do Atlântico, que é o mesmo que pedir que o Brasil integre a Alca, ou o Pacto do Pacífico. É o que querem também os donos dos meios de comunicação. Quem se oporia a isso? Qual o partido que tem um Projeto Nacional?

O Brasil precisa ser repensado. A universidade precisa pensar o Brasil. Os partidos políticos precisam ter projeto para o país. As forças armadas não podem ser guarda pretoriana dos interesses do Império.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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