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O que “O Conto da Aia” tem para nos ensinar sobre a realidade brasileira atual

O romance escrito em 1985 foi adaptado para série e já ganhou inúmeros artigos e interpretações por retratar exatamente o período em que estamos vivendo
Laura Gontijo
Desacato
Santa Catarina

Tradução:

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, no original em inglês), o romance de Margaret Atwood, escrito em 1985, foi adaptado para a série de mesmo nome; vencedora de onze prêmios Emmy, como melhor série dramática, melhor roteiro, melhor atriz (Elizabeth Moss, no papel de June) e melhor atriz coadjuvante (Ann Dowd, no papel de Tia Lydia). O romance foi popular desde que publicado pela primeira vez tendo vendido mais de 8 milhões de cópias em todo o mundo. Atwood prepara uma continuação, que se chamará “The testaments”.

O romance e a série já ganharam inúmeros artigos e interpretações e é popular porque retrata exatamente o período que estamos vivendo hoje. Especialmente, os fatos que se desenrolam nesse exato momento no Brasil.

Para realizar o romance, Atwood afirma que se baseou em fatos reais. Talvez por isso a identificação com a realidade atual é tão imediata. Afinal, estamos vendo novamente o surgimento do fascismo com todas suas implicações para todos os segmentos da população, e especialmente para as mulheres, alvo primordial.

O romance escrito em 1985 foi adaptado para série e já ganhou inúmeros artigos e interpretações por retratar exatamente o período em que estamos vivendo

Divulgação
A personagem June passa por "treinamento" para se tornar uma aia, que envolve todo tipo de tortura e abuso contra ela e as demais mulheres

Atwood, em 1985, prevê que o “futuro” da Inglaterra é se transformar em um Estado totalitário, denominado Gilead. Na série, é o futuro dos EUA. Um determinado agrupamento social religioso toma o poder do Estado e começa a implantar leis extremamente severas. A punição com a perda de um membro do corpo, enforcamentos, torturas…nada muito diferente da Idade Média, por exemplo, ou do próprio nazismo.

Atwood retrata no romance diferentes épocas que ocorreram na história nos quais as mulheres não tinham quaisquer direitos. Em Gilead, resultado de uma degradação ambiental que levou à infertilidade, às mulheres restam posições de inferioridade, os papéis de esposa, mãe, empregada doméstica e procriadora. Revistas, livros e toda publicação imprensa são proibidos. Às mulheres é proibido ler inclusive a bíblia. A queima de livros pelos nazistas é retratada na série na reconstituição dos fatos que levaram à instauração de Gilead, uma ditadura fascista.

As aias são um segmento das mulheres, aquelas que são férteis, que são obrigadas a serem entregues para determinadas famílias, daqueles que governam Gilead, para serem estupradas pelos homens que mandam nessa sociedade em um ritual sinistro com a presença das suas esposas.

É a partir daí que acompanhamos, na série, o suplício de Offred, quem conta a história para o espectador. Offred, cujo nome verdadeiro é June, é transformada em uma extensão do homem que comanda a casa na qual ela vive, cujo nome é Fred. Toda aia ganha o nome de seu novo “dono” agregado ao prefixo “Off”. June é é separada de seu marido e sua filha e transformada em uma aia e vive todo tipo de sofrimento a partir daí, junto com suas colegas também transformadas em aias.

Em diversos momentos, a sua vida em Gilead é contrastada com suas lembranças da sua vida anterior. É quando assistimos como houve uma transformação de uma realidade a outra. Transformação relativamente gradual que não é percebida pela personagem. Começam a ocorrer diversos fatos, que mostram a iminência de uma ditadura fascista, mas June, seu esposo, Luke, e sua amiga Moira, não percebem isso. Só quando os fascistas já estão no poder e começam a transição para a ditadura propriamente dita que eles tentam fugir acabam capturados.

Essa é uma das principais lições da série. O quanto não perceber a mudança do Estado democrático para a ditadura fascista é perigoso. É o que estamos vivendo hoje. A eleição de Bolsonaro é um desses sinais, que muitos ignoram. O golpe de 2016 foi outro sinal. A crise dentro dos segmentos do próprio governo é outro, a comemoração oficial do golpe de 1964 é outro ainda mais sintomático. São todos sinais de que a crise só pode ser resolvida ou com uma grande mobilização popular nas ruas que coloque freio a essa ofensiva ou com um fechamento do regime.

Com afirma a autora do romance: “Tendo nascido em 1939 (…) eu sabia que a ordem estabelecida podia desaparecer da noite para o dia. Mudanças podem ser rápidas como um relâmpago. Não podemos confiar na impressão de que ‘Não vai acontecer aqui’’. Infelizmente, muitos seguem tendo essa visão hoje.

Na série, observamos como em vários momentos June vê com estranheza os fatos que começam a se suceder, mas não toma consciência do que de fato está prestes a ocorrer. June é surpreendida com o novo regime, do qual sequer fazia ideia que estava prestes a se precipitar. É como um brasileiro que viu a ascensão de Bolsonaro ao poder e até hoje não consegue compreender como isso foi possível.

June passa por uma espécie de treinamento para se tornar uma aia que envolve todo tipo de tortura e abuso contra ela e as demais mulheres. O treinamento é uma forma de moldá-las para uma nova realidade, na qual todos os direitos conquistados caíram por terra e elas precisam voltar a serem submissas, aceitarem castigos e punições corporais, serem subjugadas ao poder de um homem para servirem como meras reprodutoras, em seguida passarem para a submissão a outro homem e assim por diante.

Outro grande ensinamento da série e do romance é que as mulheres são um dos alvos preferenciais. Se tem um segmento que vai sofrer o pão que o diabo amassou numa ditadura fascista são as mulheres. Por que é preciso que um setor seja totalmente subjugado a outro e por que não fazer isso com aquele que é mais numeroso, representa metade da população, e que historicamente vem sendo oprimido? A ideia da mulher filha-mãe-esposa-procriadora-empregada é uma ideia típica do fascismo, regime que prega a volta das mulheres ao lar. Exatamente o que nossa ministra “da mulher” defendeu quando disse “Costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade. Mas, não é possível. Temos que ir para o mercado de trabalho” e ainda “mulher nasce para ser mãe”.

É como se estivéssemos em Gilead, onde o papel da mulher se reduziu ao cuidado do marido, do filho e da casa. Ao contrário do que diz a ministra, o retorno ao lar não tem nada de cor de rosa. É uma escravidão a retirada da mulher do debate e espaço público, onde ela pode se desenvolver e desenvolver o seu país ou lutar por suas ideais. É o que nos mostra a série quando Offred convence Serena Joy – uma das ideólogas do novo regime fascista, que não conseguiu ascender ao poder justamente por ser mulher – a tentar mudar o regime por dentro.

Ela decide apresentar uma reivindicação junto com as demais esposas, que são a casta de mulheres mais privilegiadas, ao conselho da ditadura. A reivindicação é de que as mulheres possam ler a bíblia. Serena Joy percebe que o regime que ela mesmo construiu é uma verdadeira escravidão para as mulheres. Por pedir para que as mulheres leiam a bíblia ela é punida com um dedo decepado.

Outra característica do fascismo retratada na série são os uniformes que identificam as castas no novo regime. Como era feito com os judeus, comunistas, homossexuais no nazismo. Entre os fatos reais nos quais se espelha o romance estão também as ditaduras latino-americanas, nas quais bebês eram sequestrados e entregues para os torturadores. Exatamente o que ocorre com as aias, cujos filhos são entregues aos seus estupradores, os comandantes do regime fascista.

Por que a série e o romance são fundamentais para compreender a realidade mundial hoje? Porque há uma ofensiva fascista em todo o mundo cujo principal alvo são justamente as mulheres. Então, começam a ser discutidas propostas de restrição do aborto, como propôs nossa “ministra da mulher” com o projeto do “bolsa-estupro”, que visa convencer a mulher a manter uma gestação fruto de um estupro; como a proposta de um deputado recentemente de proibir a pílula anticoncepcional, que sabemos proporcionou autonomia reprodutiva às mulheres; ou como a oposição do governo fascista de Bolsonaro à inclusão de menções a favor da universalização de serviços de saúde reprodutiva e sexual, em debata na Comissão das Nações Unidas Sobre os Direitos da Mulher.

As mulheres são as inimigas principais dos fascistas e estão decididos a nos calar e nos fazer voltar à Idade Média. Esse é o principal ensinamento da série e do romance. Levemos o que é dito pelos fascistas a sério, nos organizemos para combatê-los da forma mais decidida possível, caso contrário farão de nós Aias.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Laura Gontijo

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