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O que representa a condenação de Morales Bermúdez, ex-ditador peruano?

Gustavo Espinoza M.

Tradução:

A decisão de uma Corte de Roma que sentencia a prisão perpétua a dois ex presidentes latino-americanos, entre eles o ex-ditador peruano Morales Bermúdez, e vários oficiais das forças armadas de diferentes países de Nossa América, alvoroçou o hospício. O argumento de fundo esgrimido pela justiça italiana foi  a Operação Condor com suas especificidades em prejuízo de cidadãos da Itália ou originários.

Gustavo Espinoza M.*
Gustavo-Espinoza-M.-03-150x150Não há dúvida de que se as vítimas tivessem nascido em outra parte, seus casos não teriam chamado a atenção do mundo. Porém hoje sim. “Roma Locuta, causa finita” se repetia sempre em questões religiosas aludindo a infalibilidade do papa e a autoridade do Vaticano. Bem que se poderia agora aproveitar essa sentença para dizer que, em matéria de direitos humanos, a palavra da II Corte de Roma é algo assim como Coisa Julgada.
Nem tanto, porque os especialistas alegam que se pode apelar da decisão desta corte  e assim adquirir, em perspectiva, uma dupla conotação: uma jurídica e outra política.
Corte italiana condena Morales Bermúdez1A jurídica deve responder a questionamentos concretos: Foi um julgamento justo? Se protegeu o devido processo? Foram dadas aos acusados as garantias de defesa requeridas? A pena sentenciada está de acordo com a natureza do delito? E talvez outras que os juristas conhecem.
Porém a Política é mais complexa: O que provocou o delito cometido? Que fatores influíram no ânimo dos acusados? Que poderes se movimentaram para que fossem ditadas as ordens executadas?
Essas interrogatórios nos conduzem ao caso concreto: a Operação Condor, mecanismo assassino criado em Santiago do Chile, em novembro de 1976, com a participação dos comandos militares de Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Seu objetivo era claro: capturar e eliminar os adversários mais precisos das ditaduras militares que governavam o Cone Sul da América naqueles anos.
Sob o influxo do sistema foram concebidos atentados terroristas nas principais avenidas de Washington, como aquela que tirou a vida do ex chanceler chileno Fernando Letelier; ou colocação de explosivos no coração de Buenos Aires, como a que acabou com o general Carlos Pratts e sua esposa; ou nas ruas de Roma, como foi o caso de um destacado político democrata-cristão chileno. Mas houve outros – milhares- executados com as mais variadas técnicas. Em cada país foram realizados horrendos crimes que, em seu momento, foram justificados pela grande imprensa sob o argumento de que tais ações formava parte de uma “estratégia antiterrorista das Forças Armadas” em nosso continente, e orientadas a “pacificar a região”. Em outras palavras, que era indispensável lavar com sangue a farda das unidades militares para “construir a paz”.
Quando caíram essas ditaduras do opróbrio, as autoridades militares pretenderam esconder a documentação secreta gerada nessa circunstância. Contudo uma providência fez com que Martín Almada, professor e jornalista paraguaio, vítima de detenção e tortura em seu país, tivesse o privilégio de encontrar nas imediações de Assunção, o local onde tinham escondido os documento. Sobre eles se fez a luz.
A investigação sobre os documentos permitiu que se conhecesse a estrutura armada, as operações realizadas, às pessoas que foram as vítimas, os centros que funcionavam; e, muitas outras modalidades de atuação, que se descortinaram como quando se abre uma câmara de terror aos olhos dos povos. Então apareceram os casos específicos: na Argentina, as câmaras de tortura, os campos de extermínio, os cárceres clandestinos; No Chile, Villa Grimaldi e muito mais; no Uruguai, o sequestro de crianças, o lançamento de corpos nas profundezas do mar.
Depois, a própria Agência Central de inteligência de EUA, que acompanhava sigilosamente todas essas ações, certificaria que, “a partir de 1978, os governos do Peru e do Equador se somaram” a esse macabro plano.
O que ocorria no Peru nessa circunstância? O governo militar de Morales Bermúdez que, manipulado pela CIA, com a Apra e a oligarquia tinham conseguido depor a Juan Velasco Alvarado e acabar com o processo democrático e antiimperialista iniciado em 1968; enfrentava um vigoroso movimento popular que desde 1977 o repudiava.
Em maio de 1978 ocorreu a Greve Geral contra o regime, que teve muito mais sucesso que a anterior de 19 de julho um ano antes. Estava claro, então, que “os dias da Junta” se tornavam curtos e que cabia idealizar “um jeito novo” de fazer as coisas: mudar tudo para que nada mude. Como no Gato Pardo, de Lampedusa. Antes de tudo, limpar um pouco o terreno, claro.
Morales Bermúdez tinha como seu ajudante próximo o “gaúcho” Cisneros, o general argentino, como era conhecido no nosso meio por ter se formado junto com Videla e outros nas academias militares argentinas. O “gaúcho”, aprontou desde o início. No plano pessoal devo dizer que me encarcerou três vezes: em julho de 1976, março de 1977 e janeiro de 1979. Porém, a Jesús Alberto Paez, dirigente comunitário, foi desaparecido em 1977; o argentino Juan Carlos Maguid, que caiu comigo em março de 1977, foi sequestrado em abril deste ano e entregue às autoridades argentinas que o mataram.
Mas as coisas não pararam por aí. Em junho de 1978, ano da incorporação do governo à Operação Condor, permitiu o ingresso de um Comando Operacional da Inteligência Argentina que capturou e sequestrou a suspeitos de Montoneros, dos quais nunca mais se soube nada, salvo da senhora Noemí Esther Gianetti de Molfino, que de surpresa morreu num hotel na capital espanhola depois de ter estado mais de um mês em mãos de não se sabe quem.
Depois prendeu e deportou a vários peruanos e os enviou à terra de Videla com os mais espúrios propósitos. Um dos que viveu essa aventura, Ricardo  Letts, nos conta:

“Com artimanhas, em segredo, durante o toque de recolher, batendo na gente nos puseram num avião militar de transporte de tropas e nos algemaram nos bancos. No aeroporto “el Cadillal”, em Jujuy, Argentina, no final da pista, a uns três quilômetros da torre de vigilância, nos esperava um pelotão de soldados argentinos apontando  seus fuzis automáticos. Tinha um transporte para os almirantes e o chefe da tropa, e dois caminhões militares para nós e os soldados apontando suas armas. Um coronel do vigésimo Regimento de Infantaria de Montanha presidia a cena. Fomos entregues como delinquentes subversivos e recebidos como tal a gritos.
Os treze éramos combatentes pela causa do povo e a nação peruana. Três integrávamos a Unidade Democrática Popular (UDP) e o partido Vanguarda Revolucionária (VR): Ricardo Letts, Javier Diez Canseco e Ricardo Díaz Chávez. Dois eram conhecidos jornalistas: Humberto Damonte e Alfonso Baella; três militavam na Frente Operário Camponesa Estudantil e Popular(Focep): Genaro Ledesma, Hugo Blanco e Ricardo Napurí; José Luis Alvarado era do Partido Socialista Revolucionário (PSR); Valentín Pacho da Central Geral de Trabalhadores do Peru (CGTP); Justiniano Apaza era de empresa de transporte (atualmente congressista por Gana Peru); e José Arce e Guillermo Faura eram vice almirantes da Marinha”.

O fato foi apresentado no processo ao general peruano na Itália, embora no Peru a justiça tenha se feito de surda e cega.
Algumas vezes, soem dizer, a mão da justiça tarda mas finalmente chega. Porém o tema é mais complexo. Para que se cumpra a sentença o acusado terá que ser detido e posto sob custódia mas isso não ocorrerá. É, portanto, um castigo moral. As novas gerações saberão que houve um presidente peruano que foi condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade, graças à diligência de uma corte europeia. Algo é algo!
*Colaborador de Diálogos do Sul, de Lima Peru


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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