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Operação Condor: Um assassinato pouco lembrado

Carlos Russo

Tradução:

Carlos Russo Jr*

evo-1. [downloaded with 1stBrowser]Extraído da Novela “Memória de um Subversivo”, de autoria de Carlos Russo Jr.

Introdução necessária:

As memórias que publicamos neste Espaço Literário não constituem de modo algum reminiscências vividas pelo escritor, mas sim, memórias de um jovem extraordinário a quem me dediquei a narrar a biografia.

Como veremos, os episódios reportados referem-se, quase na sua totalidade aos anos 70 e 80 do século passado, uma época em o sol punha-se tão cedo nesses trópicos e a noite sem luar era tão impenetrável, que era quase impossível, apesar de absolutamente necessário, “falar-se de amor e flores”. Tempo aquele de sombras e crenças fortes, ideias definitivas, doação integral, violências, um tempo sem paz, alias nisso diferindo muito pouco de toda a história dessa velha humanidade.
Mas, que também o foram tempos dos mais intensos e apaixonados, que exigiam daqueles que se incorformavam com a exploração, a miséria e o arbítrio, um arrebatamento total, ah, lá isso o foram; onde a pureza e a ingenuidade seguiam às vezes pela mesma senda da imprevidência, principalmente quando o engajamento ocorria na mais tenra juventude, ah, isso também é uma verdade. Tempos em que as Utopias eram fortes e sempre nos assinalavam o mais além dos sacrifícios, da tortura, da prisão e da morte.
Nosso jovem, cujo nome de batismo é Pedro Alexandrino, apesar de que às vezes eu esbarre na tentação de denominá-lo meu herói, nada possuía de realmente extraordinário. Ele não era em nada grande, apenas um jovem revoltado, no tempo que lhe foi dado para viver, agir e sonhar. Algum leitor poderá perguntar-me por que, dentre tantos jovens que resistiram ao arbítrio, que também foram submetidos à tortura, à prisão e ao exílio, e se comportaram ainda com maior dose de dedicação e altruísmo que meu personagem, eu tenha escolhido justamente Pedro Alexandrino para relatar determinados episódios de sua vida. Esta pergunta é bastante embaraçosa e tudo o que eu posso responder, por enquanto, é que o leitor descubra o porquê por si mesmo, no decorrer de meu narrar.
É verdade que Alexandrino age muitas vezes de maneira estranha, obstinada, sem um objetivo muito claro. Mas não seria demais exigir muita coerência daqueles que queriam construir um Mundo Novo, recém saídos da adolescência e em meio a uma luta de vida ou morte, onde a maldade e o peso de facínoras disfarçados em militares e policiais esperavam apenas o momento propício para os exterminarem?
Que tempos foram aqueles em que viveu meu herói!
Sou, no entanto, obrigado a concordar que Alexandrino, vistos com olhos dos dias de hoje em dia, deva parecer mais que estranho original quem sabe, um tipo de pessoa saído de almanaque, desprovido até mesmo de carne e osso, pois para ele o consumismo, o dinheiro, a posição social, o patrimônio pessoal, possuíam muito pouco valor!
Aliás, o bem estar de um lar, a tranquilidade, a harmonia e o repouso de estar entre familiares e amigos, tudo isso pouco representava para ele e seus companheiros de rota quando afrontados com a urgência da revolta, as necessidades de uma “revolução política”. Afinal, como um antigo cruzado, acreditava-se ser um soldado do bem, em guerra de vida ou morte contra as forças do mal. E, de certa forma, apesar de maniqueísta, não constituía isso uma inverdade absoluta. Eles eram originais, seres diferentes do comum dos jovens, tanto daqueles de ontem como os da grande maioria de hoje em dia, guiados por militantes muito mais experientes, mas com igual fervor de construção de uma nova sociedade.
Um assassinato pouco lembrado da Operação Condor:
Buenos Aires, Argentina. Março de 1976.
A situação política, sob influência norte-americana se definira. A democracia decadente da ex-bailarina Isabelita de Peron, uma das primeiras mulheres a exercer o mando político no mundo, perdido o apoio popular herdado de Peron ( morto em 1974), atolada em desmandos, violência e corrupção, caíra apenas com um berro dado pelos comandantes militares de turno. Em menos de vinte e quatro horas, Isabel de Peron foi pela Junta Militar embarcada para Madrid para um longo exílio dourado, ao lado do parceiro e assassino criador das famigeradas “Triples As”, Lopes Rega.
Os idos de março de 1976 marcaram o início dos tempos mais negros da História Argentina, para sempre tingidos com o sangue de mais de trinta mil argentinos e de centenas de refugiados latino americanos, que se encontravam naquelas terras. As Forças Armadas argentinas, afinal, lograram instaurar “a banalização do terror”, principiada que fora, sob Isabelita, por grupos de “matones” ( milicianos muitas vezes ligados à Polícia Federal e alas sindicais “isabelitas”) e pelas “triples A”.
Por outro lado, a grande maioria dos brasileiros que tinham deixado o Chile de Pinochet rumo à Argentina já haviam, por sorte, partido para o exílio em outros países, principalmente para a Europa. Pedro Alexandrino, entretanto, optara por lá permanecer em sua militância política, e foi partícipe e testemunha do episódio que relatamos.
Um mês antes do golpe militar, Alexandrino conheceu um personagem singular, superior, realmente um homem de coração puro e de índole inabalável. Conheceu-o como Jota Jota. Trazido por um companheiro em comum, Jota Jota já era um senhor, o que contrastava com a juventude da grande maioria dos militantes, mas em toda a força física de seus cinquenta anos. De sua descendência indígena, herdara uma baixa estatura num corpo sólido e forte; sorriso franco e humilde de quem confraterniza com a vida e com os homens, mesmo nas mais difíceis situações. Este senhor era o General Juan José Torres, ex- presidente deposto da Bolívia.
Para falarmos de Torres, precisamos visitar, mesmo que de passagem, os nossos conhecimentos sobre a Bolívia do princípio dos anos 70. Governava então nosso país vizinho o General Ovando, sendo Torres o Comandante em Chefe das Forças Armadas. Ovando alinhava-se, então, a uma geração de generais patriotas e antiimperialistas como o peruano Velasco Alvarado e do Panamá, Omar Torrijos.
Sob a coordenação da CIA e dos interesses das companhias de mineração e petróleo, Ovando, após muitos confrontos sangrentos, foi deposto do poder; no entanto, o General Torres encabeçou uma heróica resistência contra a direita do Exército, venceu-a e assumiu o governo boliviano. Acontece que Torres possuía uma formação popular e um posicionamento à esquerda do próprio General Ovando.
Em suas primeiras determinações convocou uma Assembléia Popular, com representantes dos mineiros, camponeses, militares, professores e estudantes, para legislar em favor do paupérrimo e explorado povo andino. Também consolidou a nacionalização da Golf Oil, iniciada por Ovando.
Bem, nosso objetivo não é falarmos da história boliviana, mas é preciso que se frise que todo o governo popular de Torres sobreviveu apenas dez meses. A direita, tendo à frente o fascista corrupto e fantoche do imperialismo americano, coronel Hugo Banzer, derrubou o governo de Torres e inaugurou uma ditadura terrorista que sobreviveu por nove longos anos.
Torres, com sua família, buscou exílio na democrata Argentina, mas ao contrário de tantos outros, jamais encarou o exílio como ponto final de militância ou de repouso d’armas. Desde 1971 trabalhou na organização da resistência boliviana, formando o Exército de Libertação Nacional, que colocou sob o comando de seu lugar-tenente Major Rubens Sanches, que operou nas selvas da Bolívia até a sua morte.
Quando Jota Jota travou contato com Alexandrino, o incansável lutador trabalhava também na articulação de uma Junta Coordenadora Revolucionária, que deveria abrigar militantes desde o Uruguai até a Bolívia.
Mas as perspectivas desta Junta, naquele momento de avanço incontido das forças mais reacionárias, eram desesperadoras. A última reunião que tiveram Alexandrino e Jota Jota ocorreu no último dia do mês de maio. Pensavam, então, em retornar na clandestinidade a seus países: Alexandrino para o Brasil e o general, para a Bolívia. Havia uma alternativa de iludirem-se os bloqueios fronteiriços, seguindo a rota do contrabando. Enfim, agendaram novo encontro para o dia 3 de junho.
Alexandrino recorda-se como se hoje ainda fosse aquela manhã fria, quando, antes de ir para o trabalho, deveria tomar o café da manhã com Jota Jota. Próximo ao café, localizado na avenida Entre-Rios, comprou como todas as manhãs o fazia, o jornal “La Prensa”. Uma foto do general-ditador argentino encimava a primeira página. Abaixo, a foto de Juan José Torres, sequestrado, torturado e morto a tiros, no dia anterior.
O assassinato do resistente era um favor prestado entre crápulas: do general argentino Videla para o coronel boliviano Banzer, no que viria a ser conhecida como uma ação das primeiras ações coordenadas de extermínio da Operação Condor.
O café estava a dois passos. Alexandrino tinha absoluta certeza de que nada aconteceria se ele entrasse e tomasse seu café, engolindo o sabor amargo que o cálice do destino tantas vezes já lhe trouxera, a perda de mais um amigo, de mais um companheiro. Lembrou-se de do princípio de um verso de Neruda: “Perdemos um de nós neste mundo. Onde estavas?”
Tomou o amargo café e triste, com lágrimas nos olhos que insistiam em se despregar, caminhou até a parada de ônibus mais próxima. Ao acercar-se, atrás de si, dois operários e um deles com “La Prensa” na primeira página, comentava com o amigo: “Mira, tchê, no tiene este tal de Videla una cara de perro hambriento? ”.
Seria um sorriso ou um rito facial que percorreu o rosto triste de Alexandrino? Nunca o saberemos, mas ainda hoje ele diz que naquele momento soube que a ditadura argentina jamais duraria tanto quanto a brasileira.
Nota do biógrafo: Em 1983, o corpo de Jota Jota foi transportado da ala comum do Cemitério de Flores em Buenos Aires para a Bolívia, onde foi enterrado com honras de Chefe de Estado.
*Colaborador de Diálogos do Sul, janeiro 2016


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo

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