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Orçamento 2021 condena ciência brasileira a “estado vegetativo”

Brasil tem um orçamento de pesquisa cada vez menor, para atender a uma população de pesquisadores cada vez maior — em plena pandemia
Herton Escobar
Jornal da USP
São Paulo (SP)

Tradução:

A ciência brasileira começa 2021 com um prognóstico angustiante. Não por causa da pandemia, mas de um novo corte orçamentário que promete enviá-la de vez para a UTI do financiamento público. O já diminuto orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), retalhado por uma série de cortes aplicados à pasta nos últimos sete anos, deverá encolher mais 34% neste ano, se a proposta orçamentária do governo federal ano for aprovada sem modificações no Congresso. 

O orçamento total previsto para a pasta é de R$ 10,4 bilhões, sendo que apenas R$ 2,8 bilhões desse valor estarão disponíveis para investimentos em pesquisa (os chamados recursos discricionários, que não incluem gastos com salários, reserva de contingência e outras despesas obrigatórias), comparado a R$ 4,2 bilhões em 2020, segundo uma comparação feita pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), com base em dados da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020 e do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021. 

Isso corresponde, aproximadamente, a um terço do que o MCTI investia em pesquisa dez anos atrás; e pode ser considerado o menor orçamento da história do setor, levando-se em conta que o número de laboratórios e de pesquisadores que dependem desse orçamento para fazer suas pesquisas cresceu de forma substancial nas últimas décadas. Ou seja: temos um orçamento de pesquisa cada vez menor, para atender a uma população de pesquisadores cada vez maior — em plena pandemia.

Execução orçamentária do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) (2000-2018)

O gráfico acima mostra a evolução dos valores executados anualmente pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) no período 2000-2018 (em valores de 2018). A linha azul mostra a evolução das despesas discricionárias, que representam investimentos em pesquisa. A reportagem solicitou uma versão atualizada desse gráfico ao MCTI, mas não obteve resposta. Os dados originais do gráfico estão disponíveis neste link.

E isso é só o começo da má notícia. Cerca de metade (49%) desse orçamento de R$ 2,8 bilhões, segundo a SBPC, é composta de “créditos suplementares”, que ainda dependerão de uma aprovação especial do Congresso para serem usados no decorrer do ano, se o governo assim desejar e as condições econômicas (e políticas) do País permitirem. Em outras palavras: são recursos previstos, mas não garantidos, para uso da comunidade científica. O valor garantido no orçamento, de fato, é de apenas R$ 1,6 bilhão.

Essas reduções têm um efeito cascata sobre todo o sistema de ciência e tecnologia brasileiro, já que a maioria das instituições públicas de pesquisa do País (incluindo universidades e institutos vinculados diretamente ao MCTI) depende do orçamento do Ministério para financiar suas atividades. Pesquisadores temem que esse novo corte leve a uma paralisação quase que total da ciência brasileira, já gravemente desidratada de recursos nos últimos anos.

“Vamos entrar em estado vegetativo este ano”, disse ao Jornal da USP o bioquímico Glaucius Oliva, professor do Instituto de Física de São Carlos da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência de fomento à pesquisa do governo federal, vinculada ao MCTI. “São tempos muito difíceis que estamos vivendo.”

O Projeto de Lei Orçamentária costuma ser votado em dezembro, antes do início do novo ano fiscal, mas isso não aconteceu desta vez. O Congresso deve retomar o debate a partir desta segunda-feira, 1º de fevereiro, no retorno do recesso parlamentar.

Brasil tem um orçamento de pesquisa cada vez menor, para atender a uma população de pesquisadores cada vez maior — em plena pandemia

Fotomontagem: Cleber Siquette/ Jornal da USP
A ciência brasileira começa 2021 com um prognóstico angustiante.

APAGÃO DA CIÊNCIA

Valores previstos no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para 2021, comparados ao orçamento do ano passado

OBS: Os percentuais identificados “créditos suplementares” representam valores condicionados à disponibilidade de recursos e aprovação parlamentar para serem utilizados (chamada Regra de Ouro)

Fonte: SBPC, com base em dados oficiais da LOA 2020 e PLOA 2021

CNPq falido

A situação do CNPq é a mais preocupante. O orçamento de fomento da agência, destinado ao financiamento de projetos de pesquisa, é de apenas R$ 22,5 milhões, dos quais R$ 12,1 milhões (53%) estão condicionados à liberação de créditos suplementares. Ou seja: garantido mesmo no orçamento, são apenas R$ 10,4 milhões — uma quantia irrisória para o financiamento de pesquisas em todo o Brasil. Para se ter uma ideia, não faz muito tempo, em 2014, esse orçamento chegou a ultrapassar R$ 600 milhões, e a agência chegava a distribuir R$ 50 milhões em um único edital (a tradicional Chamada Universal, importantíssima para o financiamento de pequenos projetos de pesquisa em todo o Brasil, e que já deixou de ser realizada nos últimos anos, por falta de recursos). Numa comparação mais esdrúxula, porém simbólica, R$ 20 milhões e R$ 10 milhões são os valores que o governo federal gastou comprando leite condensado e bombons no ano passado, segundo dados divulgados recentemente pela imprensa.

O valor reservado para bolsas de pesquisa também preocupa: são R$ 944 milhões, dos quais 60% (R$ 565 milhões) dependem da aprovação de créditos suplementares — que poderão, ou não, ser liberados pelo Congresso no decorrer do ano. Os recursos garantidos, de fato, no orçamento (R$ 378 milhões) são suficientes para pagar apenas quatro meses de bolsas, pelos cálculos da SBPC. Nos últimos dois anos o CNPq já enfrentou sérias dificuldades para honrar o pagamento integral de suas bolsas até dezembro, e este ano poderá ser ainda pior.

“O Brasil está andando para trás”, lamenta Alvaro Prata, professor e ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, e ex-secretário-executivo do MCTI. “Não faz nenhum sentido, diante da relevância que a ciência e tecnologia têm no mundo hoje, cortar recursos desse setor.” Dados internacionais mostram que os países desenvolvidos investem mais em ciência e tecnologia em momentos de crise, e não menos.

Cota de importação

Não bastasse o corte orçamentário, o governo também reduziu em quase 70% a cota do CNPq para importação de insumos de pesquisa livres de impostos. Essa cota funciona como um limite de cartão de crédito: é o valor máximo de produtos que o CNPq pode isentar de impostos para importação num determinado ano. Em 2020, esse valor foi de US$ 300 milhões; e agora, em 2021, será de apenas US$ 93 milhões, segundo informações do jornal Folha de S. Paulo. A diretoria do CNPq informou em nota que já está trabalhando numa solução com o MCTI e o Ministério da Economia.

Assim como o corte orçamentário, a redução da cota de importação tem um efeito cascata dramático sobre todo o sistema de ciência e tecnologia nacional, já que todas as isenções de impostos precisam ser aprovadas pelo CNPq, mesmo que as pesquisas não sejam financiadas por ele — incluindo os insumos necessários para a produção de vacinas no Instituto Butantan e na Fiocruz, por exemplo. 

“Isso é tão grave que vai paralisar toda a pesquisa em biologia molecular no Brasil; simples assim”, diz o bioquímico Hernan Chaimovich, professor do Instituto de Química (IQ) da USP e também ex-presidente do CNPq. Química e biologia são duas áreas que dependem quase que totalmente de insumos importados para suas pesquisas, incluindo equipamentos e reagentes básicos de laboratório. “Eu estava muito relutante em ver intenção nesse movimento todo contra a ciência no Brasil”, disse Chaimovich ao Jornal da USP. “Cada vez mais, porém, o que acontece na prática me leva a concluir nessa direção: que existe uma intenção de acabar com a ciência no Brasil.”

“É realmente de chorar”, diz a pesquisadora Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenadora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), que recentemente desenvolveu um teste de detecção do novo coronavírus pela saliva. “Felizmente ainda temos a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] aqui para nos ajudar, se não ia ter que vender brigadeiro na esquina.”

Diante da falência dos órgãos de fomento federais, a Fapesp é hoje a principal (e muitas vezes, única) fonte de recursos para pesquisa no Estado de São Paulo, que contribui com cerca de metade da produção científica nacional. A Fapesp recebe, por lei, 1% de toda a receita tributária do Estado de São Paulo, e investe atualmente mais de R$ 1,2 bilhão por ano em bolsas e projetos de pesquisa (mesmo valor do orçamento total do CNPq previsto para este ano). 

Especialistas ressaltam, porém, que os cortes no orçamento federal têm forte impacto também sobre a Fapesp, aumentando a demanda por recursos da fundação — que não tem condições de bancar toda a ciência paulista sozinha. Além disso, a redução da cota de importações do CNPq, se mantida, também afetará as pesquisas financiadas pela fundação.

“O pessoal está fazendo das tripas coração para produzir alguma coisa, porque os cientistas são muito apaixonados pelo que fazem”, diz Mayana. “Mas se você comparar com o que está acontecendo lá fora, é muito triste mesmo. Vamos esperar a próxima pandemia, porque nessa parece que não aprenderam nada.”

Esperança no FNDCT

As chances de conseguir fazer mudanças significativas na proposta orçamentária do governo são pequenas. Por causa do Teto de Gastos, para aumentar o orçamento do MCTI será necessário tirar recursos de algum outro lugar. 

A principal aposta da comunidade científica para salvar o setor da falência este ano, portanto, recai sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que coleta royalties de empresas que exploram recursos naturais e outros bens da União para serem reinvestidos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico desses mesmos setores. A arrecadação prevista do FNDCT para 2021 é de R$ 5,3 bilhões, mas a proposta orçamentária do governo coloca 90% desse valor em “reserva de contingência” — ou seja, indisponível para uso. No fim das contas, apenas R$ 510 milhões desse bolo multibilionário poderão ser usados, de fato, para investimento em pesquisa.

O Congresso aprovou em dezembro, por ampla maioria, em ambas as casas, um projeto de lei que proibia as reservas de contingência no FNDCT. Esse dispositivo, porém, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro no início de janeiro. A comunidade científica reagiu com o lançamento de uma campanha que pede aos congressistas que derrubem o veto do presidente — restaurando, assim, o projeto original da lei, que eles mesmos aprovaram em dezembro.

“Essa é uma decisão catastrófica para o País, ainda mais em um momento de grave crise sanitária, econômica e social, e que caminha na direção oposta ao que fazem os países desenvolvidos”, diz um abaixo-assinado lançado pela Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), com quase 23 mil assinaturas. 

“O país continuará a ser privado de um recurso essencial para apoiar as universidades, institutos federais e instituições de pesquisa, para manter e expandir laboratórios de pesquisa e para fomentar projetos inovadores, em particular em pequenas e médias empresas, imprescindíveis para a recuperação econômica do País. A liberação dos recursos do FNDCT é também fundamental para apoiar a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico no combate ao novo coronavírus.”

O professor Chaimovich, por sua vez, chama atenção para um ponto importante: mesmo que os recursos do FNDCT sejam descontingenciados, isso não resolverá o problema do CNPq, visto que os recursos do fundo são geridos por uma outra agência de fomento (a Finep), com regras e finalidades distintas das do CNPq. 



As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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