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"Organizem-se, é em legítima defesa, porque não há mais limite para a violência racista"

“Como disse Bell Hooks, mais do que qualquer grupo de mulheres, as negras têm sido consideradas só corpos sem mente"
Annie Castro
Sul 21
Porto Alegre

Tradução:

Homenageada desta edição da FestiPoa Literária, a filosofa Sueli Carneiro esteve ao lado da colega Djamila Ribeiro no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na noite de segunda-feira (29) para o debate que abriu o evento. Mediado pela escritora Fernanda Bastos, o painel abordou questões como literatura negra, mercado editorial, racismo institucionalizado e o mito da democracia racial. Para Sueli, a homenagem que recebe em Porto Alegre significa “um momento de afirmação e reconhecimento da legitimidade desse lugar de fala, do discurso produzido por lágrimas insubmissas” e da “escrevivência, que não é para adormecer os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonhos injustos, como apontou nossa magistral Conceição Evaristo”.

Em sua fala, Sueli destacou as motivações que guiam sua escrita. Ela contou que começou a escrever motivada pela vontade de falar, mas que não conseguia “pela timidez resultante da deslegitimação histórica da autoridade de fala das mulheres e das mulheres negras, em particular”.

“Como disse Bell Hooks, mais do que qualquer grupo de mulheres, as negras têm sido consideradas só corpos sem mente. E aqui estou eu nesta noite, realizando sonhos não ousados, fruto da generosidade e do acolhimento, não apenas dos meus discursos, mas sobretudo de reconhecimento de realidades e vivências cruéis que pessoas negras experimentam nessa sociedade e contra as quais tem que estar sempre em luta, sempre alerta, em legítima defesa”, afirmou.

Sueli também pontuou que seus escritos são resultantes das dores causadas pelo racismo e pelo sexismo, tanto no passado quanto no presente, e citou questões que considera a “argamassa” de sua literatura: “São produto de algum momento dessa luta permanente, a qual as pessoas negras estão condenadas para assegurar o direito à vida, sempre ameaçado, para alcançar a igualdade de oportunidades de direitos, sempre negados; para ter o direito a uma representação justa e para alcançar reconhecimento e justiça social”. Nesse momento, Sueli leu o poema ‘Mãe Preta’, da anfitriã do evento, Fernanda Bastos. “Nossos passos vêm de longe, e também a indignação que nos impulsiona a escrever, como bem nos mostra esse contundente poema”, disse ao fim da leitura, ovacionada pela platéia.

“Como disse Bell Hooks, mais do que qualquer grupo de mulheres, as negras têm sido consideradas só corpos sem mente"

Foto: Josemar Afrovulto/Di
A abertura do FestiPoa Literária 2019 contou com as escritoras Fernanda Bastos, Sueli Carneiro e Djamlia Ribeiro

Sueli, que é uma das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra, também enfatizou que é a indignação com as injustiças e opressões que move a denúncia, a resistência, a luta e a escrita das populações negras. Ela também pontuou que é necessária a criação de um novo pacto racial e de gênero no Brasil, “que desaloje todas as hierarquias produzidas pelo racismo e pelo sexismo”. “A valorização da diversidade humana torna-se um pré requisito para a reconciliação de todos os seres humanos. Se podemos educar as pessoas para discriminar e oprimir será possível fazê-las aprender a respeitar, acolher e se enriquecer com as diferenças raciais étnicas e culturais. Este é o abcesso do novo pacto racial e de gênero que desejamos. Um país que foi capaz de criar a mais bela fábula de relações raciais, que é o nosso mito da democracia racial, talvez seja também capaz de um dia torná-lo realidade”, afirmou.

Já a também filósofa e escritora Djamila Ribeiro iniciou sua fala narrando sua relação com Sueli, a quem define como “uma mulher autônoma, de coragem, que botou muito a cara pra bater”. Djamila contou que descobriu a existência de Sueli enquanto trabalhava na Biblioteca Carolina Maria de Jesus, na Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos. “Foi ali que eu descobri várias literaturas de mulheres negras. E ali foi um novo mundo que se abriu pra mim e que eu me reconheci, foi de cura também, porque a gente é muito adoecida por narrativas que nos desumanizam”, disse.

Durante um treinamento voltado para mulheres negras é que Djamila conheceu Sueli pessoalmente. “Eu vi a Sueli e fiquei encantada. Fui reencontrá-la anos depois, quando já estava então no mestrado”. Djamila teve Sueli como exemplo para decidir mudar do curso de jornalismo para filosofia. “E ela nem sabia que estava me inspirando tanto”, disse. A filósofa também abordou a importância de que as gerações mais novas reconheçam os avanços conquistados pelas mulheres das gerações anteriores e o trabalho realizado por elas. “Às vezes as gerações mais novas acham que estão inventando a roda, mas é importante a gente reconhecer que muita coisa já foi feita e já foi construída”, afirmou.

Debate geracional

Ao pertencerem a duas gerações diferentes dentro dos movimentos feministas e de luta pelos direitos das populações negras, Sueli e Djamila enfrentaram diferentes contextos políticos e momentos da violência racial no país. Por isso, o evento incluiu na abertura um debate geracional entre as duas escritoras.

Sueli foi a primeira a falar. Ela contou que participou do movimento negro e de mulheres durante o período da ditadura militar no Brasil. Segundo ela, era uma época em que as mulheres negras eram a base dos movimentos, mas ficavam excluídas e serviam como uma “plataforma de viabilização e de promoção” para mulheres brancas e até mesmo para homens negros. “Construir movimentos políticos, independentes e autônomos, que pudessem oferecer voz e autoridade para mulheres negras era uma questão essencial para sairmos desse ciclo perverso, no qual as conquistas das mulheres eram apropriadas pelas mulheres brancas em função do racismo, e as conquistas coletivas dos movimentos negros eram apropriadas pelos homens negros em função do sexismo e machismo”, disse.

A escritora também afirmou que sua geração teve um papel fundamental na desmistificação da democracia racial e em “mostrar que era uma falácia e uma hipocrisia”. Segundo ela, ao fazer isso, sua geração rompeu com o pacto e a etiqueta social que, até então, governava as relações raciais no Brasil. “Havia um combinado na sociedade brasileira. As pessoas brancas racistas nos diziam ‘o Brasil é uma democracia racial, nós vamos dizer isso e vocês negros vão fazer de conta que acreditam. Enquanto esse pacto prevalecer nós não teremos problemas’. E quando a gente nega isso e começa a exigir políticas de ação afirmativa como medidas de correção de redução de desigualdades o pacto se rompe”, afirmou. Sueli usou como exemplo para isso a criação de cotas raciais nas universidades brasileiras. “As cotas tiraram os racistas do armário e os organizaram. Isso também fez emergir toda violência e crueldade que esse racismo tem”.

Milhares de pessoas reuniram-se no salão de Atos da UFRGS para acompanhar o evento. Foto: Josemar Afrovulto/Divulgação 

Segundo Sueli, há uma “absoluta e crescente violência racial, que se manifesta de diferentes formas, e que tem a sua forma mais extrema no genocídio de jovens negros”. De cordo com a filosofa, esse não era o país que sua geração pretendia entregar para as gerações futuras. “Nós até acreditávamos há alguns poucos anos atrás que estávamos adentrando um círculo virtuoso de enfrentamento das desigualdades raciais, que nos permitiria construir uma nação mais justa e mais igualitária. Essa é a promessa que a minha geração fez para a de vocês. Falhamos”, disse.

Djamila discordou do pensamento de Sueli. Para ela, a geração da escritora foi responsável por muitos avanços, inclusive por trazer essas questões para o debate público. “O que falhou na verdade é esse sistema racista, desigual, sexista, classista. Essa é a falha nesse país. Quantos talentos todos os dias se perdem assassinados pela polícia, quantos talentos todos os dias se perdem nesse país pela falta de oportunidades. A falha nesse país já começou na colonização, e essa violência colonial ainda acontece”, disse.

Para exemplificar seu ponto, Djamila trouxe dados como o assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos, a alta taxa de mortalidade materna de mulheres negras e a CPI da Esterilização, que em 1991 investigou a denúncia de que mulheres negras estavam sendo esterilizadas à força. “O Estado brasileiro esterilizava forçadamente. Isso pra mim é uma forma de genocídio e isso só foi a público e foi investigado por conta do movimento de mulheres negras”, disse.

Para Sueli, a geração atual herdou a tarefa de enfrentar as formas mais cruéis e perversas do racismo: “Vai exigir redobrada coragem, consciência e organização política para fazer frente ao racismo que já não tem mais vergonha de se afirmar, que cada vez se aproxima do fascismo e que tem obviamente uma clara intenção de extermínio. Organizem-se, é em legítima defesa, porque não há mais limite para a violência racista”.

Escritoras negras

Temas como exclusão de escritoras negras no mercado editorial também foram abordados pelas convidadas do evento. Para Djamila, é preciso que exista mais espaço para os talentos negros dentro da cultura brasileira, principalmente na representação internacional do país. “Tantos talentos se perdem, e o Brasil nunca consegue se destacar porque não é possível que só um grupo tenha talento. A gente é um povo de maioria negra e indígena e a gente só exporta brancos a vida inteira. Fica sempre esse pacto racista da branquitude”, disse. Sueli citou grandes personalidades negras brasileiras, como Machado de Assis, Cruz e Souza, Carolina Maria de Jesus e Milton Santos, e afirmou que “em condições de absoluta opressão, as formas exemplares de expressão de humanidade são dadas por nós [negros]”.

Ao final do debate, uma das perguntas feitas pela plateia questionou o papel da filosofia e da sociologia no cenário atual do país, quando o presidente Jair Bolsonaro fala em acabar com os recursos públicos para cursos na área. Sueli foi quem respondeu, definindo a filosofia como “o exercício da revolução crítica”, que “em tempos de obscurantismo, precisa ser suprimida”. “É sempre assim. E nesses tempos, a resistência tem que preservá-la. Nós vamos continuar filosofando e ensinando filosofia, problematizando, estudando e estimulando o pensamento crítico da sociedade brasileira. Seja no espaço público, seja no subterrâneo da liberdade”, afirmou.

No final do evento, o público que se dirigia à saída do Salão de Atos foi surpreendido por um grito agudo. Tratava-se de uma apresentação surpresa do coletivo cultural ‘Poetas Vivos’. Durante o espetáculo, três meninos denunciavam, entre diversos temas, o genocídio da população negra pela polícia brasileira e a violência racial. “Desculpe, mas a nossa única opção é o livro na mão ou a bala na cara”, diziam.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Annie Castro

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