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Oriente Médio: Israel e Palestina, das origens do conflito até o apartheid sionista

O apartheid configura práticas de discriminação e segregação racial para manter a dominação de um grupo racial sobre outro.
Alessandra Monterastelli
Portal Vermelho

Tradução:

Israel aprovou no último mês de julho a Lei Básica “Estado-Nação”, passando a ser legalmente um estado exclusivo para judeus. Isso em um momento polêmico: Israel tem sido criticado pela imprensa internacional (ainda que timidamente) e pela ONU devido à repressão violenta contra palestinos em Gaza. O conflito que começou no século XX se prolonga. Analistas discutem: existe apartheid em Israel?

Sabrina Fernandes, doutora em Sociologia e Economia Política pela Carleton University do Canadá, pesquisadora e professora na Universidade de Brasília e editora contribuinte da revista socialista norte-americana Jacobin, explicou recentemente em uma série de vídeos para o Youtube a questão essencialmente colonialista de Israel sobre a Palestina. Para tanto, ela se baseou em estudos de pensadores, sociólogos e analistas como Pappé, Noam Chomsky, Domenico Losurdo, Judith Butler, Edward Said, entre outros. Ela lembra, antes de começar o vídeo, que ao contrário do que é dito entre as vozes da opinião pública, ser contra as atitudes do Estado de Israel e criticá-lo não tem nenhuma relação com o antissemitismo, crime condenável de ódio aos judeus.

O apartheid configura práticas de discriminação e segregação racial para manter a dominação de um grupo racial sobre outro.

Portal Vermelho
Ação conjunta pela luta de libertação nacional, por uma administração de um governo de consenso para buscar a solução da ocupação,

Inclusive, muitos judeus habitantes de Israel se opõe as ações do Estado israelense, assim como muitos judeus que vivem em outros países.

“A ideologia sionista gerou um Estado, e este se estabelece sob direitos soberanos dados como pré-existentes” para ilustrar sua fala sobre a origem de Israel, ela cita uma das premissas de sua existência: “terra sem povo para um povo sem terra”, que ignora completamente a existência já anterior de um povo na região- os palestinos.

Agora não há mais confusão sobre isso!” / Charge feita pelo cartunista Carlos Latuff e publicada em suas redes sociais

Sayid Marcos Tenório, ativista da causa palestina, diretor da CEBRAPAZ e secretário-geral do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal), argumenta que a lei aprovada apenas efetivou um apartheid sionista já existente, configurando Israel como um Estado racista. “A Lei não se limita a legislar sobre questões vinculadas à população israelense, que incluiria os 20% da população árabe-israelense, independente da religião, mas estabelece que Israel irá continuar incentivando os assentamentos ilegais nas terras palestinas, o que torna impossível a solução de dois estados”, diz. Segundo Tenorio, com a nova Lei, Israel continuará o “trabalho de limpeza étnica”, só que agora com a proferida “legalidade”. “É bom que se diga que Israel não dispõe de uma Constituição da maneira clássica como os demais países tem. O Knesset legisla de acordo com a conveniência política e militar do Estado de Israel”, conclui.

O apartheid configura práticas de discriminação e segregação racial para manter a dominação de um grupo racial sobre outro. “Não há leis explícitas que discriminam os palestinos de judeus em Israel”, começa Sabrina, mas explica: existem uma série de leis contra as minorias árabes que têm sido aprovadas. Uma delas seria a “Lei de Direito de Retorno”, aplicada somente aos judeus: “Israel nega o mesmo direito aos palestinos pois quer que estes sejam a minoria na região”, já que os palestinos ameaçam o caráter demográfico judeu. Tudo porque Israel é configurado como um Estado étnico, e não plurinacional, como deveria ser, já que existem também árabes no território.

Sabrina lembra que o apartheid já vem ocorrendo desde a criação de Israel, quando ocorreu a Nakba: “o retorno dos palestinos mudaria a relação de forças dentro de Israel”.

A socióloga cita um relatório emitido pela própria ONU, que indica a limitação das plataformas políticas no país: a lei em Israel impede qualquer manifestação partidária que questione a identidade de Israel como Estado essencialmente judeu. Isso quer dizer que partidos palestinos podem fazer campanha para reformas, mas não podem desafiar “o racismo presente na soberania de um Estado que é étnico”.

Do início até aqui: um panorama

No século 19, o vasto Império Turco-Otomano possuía o que hoje conhecemos como a Palestina, região que na época tinha 88% da população composta por muçulmanos e 3% por judeus. Em Jerusalém, a Cidade Santa, conviviam pacificamente povos das 3 principais religiões monoteístas (cristãos, muçulmanos e judeus).

No mesmo século, Theodor Herzl, um jornalista judeu, criou a ideia de o povo judeu deveria ter o seu próprio Estado: daí nasceu o sionismo. Nota-se que o sionismo nasceu como uma ideologia de emancipação dos judeus (na época já perseguidos), mas mais tarde tornou-se um princípio colonialista e racista.

Durante a Primeira Guerra Mundial, os ingleses (grandes imperialistas e colonialistas do século dezenove) fizeram, em segredo, três promessas. Prometeram aos judeus um Estado no território da Palestina; para os franceses, prometeram dividir o território pertencente ao Império Turco-Otomano; e, aos árabes, prometeram auxílio para a criação de uma “grande nação” em troca de apoio na guerra contra o Império Turco-Otomano. Por motivos óbvios, a Inglaterra não conseguiu cumprir nenhuma de suas promessas, todas feitas à revelia da vontade do povo que já habitava naquele território: os palestinos.

Com o fim da Primeira Guerra, os ingleses colonizaram a Palestina, sob o argumento de que a comandariam até que esta não pudesse se governar sozinha; ao mesmo tempo, os ingleses cumpriram metade de uma de suas promessas anteriores: facilitaram a imigração de judeus para a Palestina, população que por consequência cresceu vertiginosamente entre 1920 e 1939; agora, a população judaica configurava 30% daqueles que habitavam na Palestina. Esses judeus, então, começaram a comprar terras.

Com o passar do tempo, o sentimento independentista e de autodeterminação cresce entre os palestinos, que por fim tentaram a independência dos ingleses. Foram brutalmente reprimidos. Percebendo pela segunda vez a saia justa em que estavam, os ingleses decidiram decretar um Estado palestino e judeu dentro da Palestina. Essa decisão irritou os sionistas, já que a imigração judaica passou a ser limitada justo em 1940, momento em que judeus eram brutalmente perseguidos pelos nazistas; e também deixou os palestinos descontentes, já que estes esperaram dez anos e não obtiveram um Estado próprio como fora acordado.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a questão palestina passa a ficar sob responsabilidade da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), em 1947. A instituição dividiu o território palestino em áreas separadas e irregulares, decretando que algumas delas representariam Israel e outras, a Palestina. 

Mais uma vez, a partilha não deu certo. Em 1949 iniciou uma guerra entre os estados árabes e Israel, que venceu e ocupou áreas além daquelas estabelecidas no decreto internacional. Os palestinos foram expulsos de suas casas e tornaram-se refugiados, o que ficou conhecido como Nakba (“Catástrofe”). Para Israel, esse acontecimento marca a data de seu nascimento como Estado.

Charge feita pelo cartunista Carlos Latuff e publicada em suas redes sociais

Em 1967 começa a Guerra dos Seis Dias, e Israel vence novamente, ocupando irregularmente também Gaza, as Colinas de Golã e a Península do Senai. Em 1969 Yasser Arafat torna-se presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e líder do Fatah, partido da OLP, e organiza um movimento de luta pelo Estado da Palestina. No mesmo período, Israel passa a construir com mais intensidade assentamentos ilegais em áreas ocupadas e que originalmente pertenciam à Palestina.

Israel se negava e se nega ainda em reconhecer o Estado da Palestina, argumentando que se não existe Estado, as ocupações não são crime; contudo, essa justificativa contraria as próprias resoluções da ONU, que considera os assentamentos ilegais.

“Perda de território pelos palestinos”. Israel em branco e Palestina em verde.

Em 1987 ocorreu a primeira Intifada, que além de inúmeros protestos da população palestina gerou o bloqueio aos produtos e impostos israelenses. No mesmo ano nasce o Hamas, partido político que possui um braço armado. 

Cisjordânia e Gaza: cerco

Tanto a Cisjordânia quanto Gaza, originalmente territórios pertencentes a Palestina (segundo a partilha da ONU e o direito internacional), hoje possuem diversos assentamentos israelenses. Na Cisjordânia foi construído, inclusive, um muro, parecido com o que Trump pretende fazer na fronteira com o México. Já Gaza vive um cerco militar, com um controle rígido das fronteiras e de seu litoral, tornando-se uma região de acesso restrito. “Imagine que para entrar e sair de seu próprio país você precise da autorização de outro Estado”, exemplifica Sabrina. Além disso, 90% da água não é própria para consumo na região, e 30% da população vive abaixo da linha de pobreza, consequência do cerco e da pressão econômica israelense.

“Os ataques contra Gaza de 2012 e 2014 tiveram nítido caráter de limpeza étnica”, diz Tenório, que lembra os inúmeros crimes de guerra cometidos por Israel durante suas agressões, como o uso de bombas de fósforo branco e outras armas químicas proibidas.

Muro construído por Israel na Cisjordânia, território palestino

Para Tenório, não é possível mais nomear o que acontece nos territórios palestinos de “ocupação israelense”. “Como é possível uma ocupação que já dura 51 anos? Israel colonizou a Palestina. Trata-se de um Estado colonial e, internamente, segregacionista”, argumenta. 

“Se considerarmos o impacto da Lei do ‘Estado-Nação’, podemos afirmar que ela representa uma nova fase na fundação do Estado de Israel. A lei, certamente, não representa uma ruptura, mas ela sistematiza globalmente o que já estava sendo implementado de forma fragmentada”, que o ativista determina como uma “nova fase do projeto colonial sionista”, encabeçado pela extrema-direita israelense.

Os palestinos, portanto, também entram em uma nova fase de luta pela autodeterminação. “Serão os palestinos que têm a cidadania israelense que irão engrossar a luta pelo boicote ao Estado racista de Israel”, conclui Tenorio. 

Jerusalém, a Cidade Santa

A história da Cidade Santa possui mais de 3 mil anos, sendo um local sagrado para as três principais religiões monoteístas. Segundo a nova lei israelense, “Jerusalém Unificada” é a capital de Israel. “Qual será o status de Jerusalém Oriental, que internacionalmente é considerada como ‘ocupada’?” questiona Tenorio. “O que Israel fará com a população palestina de Jerusalém Oriental, majoritariamente de israelenses-árabes?”.

De acordo com a resolução da ONU sobre o status de Jerusalém, a cidade permanece uma área neutra. O Conselho Internacional de Segurança decretou que todas as medidas que alteraram o caráter geográfico, demográfico, histórico e o Estatuto da Cidade Santa são nulas, sem efeito e ineficazes. Palestinos reivindicam Jerusalém Oriental como sua capital, portanto a mudança de seu caráter só seria válida diante de uma negociação e acordo entre Israel e Palestina, que nunca aconteceu.

O investimento militar de Israel

Israel possui as Forças de Defesa de Israel (IDF), também conhecidas como Tzahal. Segundo Sabrina Fernandes, 5,87% do PIB de 2014 do país foi destinado ao exército; o investimento bélico perde apenas para a Arábia Saudita. A socióloga explica que antes de se tornar o IDF, antes mesmo da criação do Estado de Israel, já existia uma milícia chamada Haganah, o que explica o rápido desenvolvimento das forças militares israelenses.

Em 2016, Israel investiu 17,8 bilhões de dólares em gastos militares, o equivalente a 5,8% do seu PIB; um gasto proporcionalmente maior do que os EUA, que gastaram 3,3% do PIB em armamentos. “Os investimentos militares são cada ano maiores e servem ao desenvolvimento de armas por encomenda, principalmente, dos EUA”, que é aliado de Israel, explica Tenório. 

“Israel dispõe de inúmeros laboratórios e fábricas que produzem armas de última geração. E essas armas e munições são testadas ‘no campo de batalha’, ou seja, contra palestinos”, completa. A tecnologia militar israelense serviria também para a disputa contra a Síria e o Hezbollah libanês.

“Quanto mais guerras na região, mais palestinos morrem, maior é o controle étnico-populacional” explica Sabrina, citando o sociólogo norte-americano Noam Chomsky.

Para Tenório, o projeto sionista é destinado a realização de “uma ampla limpeza étnica na Palestina”. “Desde o início da ocupação, em 1948, Israel vem realizando uma limpeza étnica radical. Eles expulsaram milhões de pessoas e destruíram mais de 600 vilas palestinas”. O diretor do Cebrapaz cita o escritor israelense Shlomo Sand, que declarou que historicamente a ideia de regresso do “exílio” à Terra Prometida era estranha ao judaísmo antes do nascimento do sionismo; além disso, os lugares sagrados eram vistos pelos judeus como lugares apenas de peregrinação, não para habitar.

O Hamas e a falsa paridade de forças

Quando as ocupações ilegais israelenses começaram a aumentar nos anos 80 e após a primeira Intifada, nasceu o Hamas. O partido político foi eleito especialmente por representar resistência à Israel; além de ataques armados, foi responsável também por construir escolas, hospitais e clínicas em Gaza. Atualmente, é responsável pela “Grande Marcha do Retorno”, manifestação pacífica realizada todas as sextas-feiras em Gaza, que conta com a participação de milhares de homens, mulheres, crianças e idosos, reivindicando que os palestinos possam voltar à terra natal como um direito inalienável.

O Hamas também foi responsável por ações violentas e muitas vezes exerceu um controle um tanto opressor sobre os civis de Gaza, segundo Sabrina; sobre isso, ela ressalta: “deve-se criticar as ações desumanizadoras do Hamas, mas também abolir a ideia de equidade desse partido com as forças israelenses”.

A sentença da socióloga adverte para uma situação frequente: Israel, que possui um exército fortemente armado e preparado, aproveita-se de ofensivas do Hamas para argumentar uma suposta “equidade” de forças entre ambos.

Charge feita pelo cartunista Carlos Latuff e publicada em suas redes sociais

Atualmente, existe um esforço para a reconciliação entre Hamas (Partido da Resistência Islâmica) e Fatah (Movimento de Libertação da Palestina). O objetivo seria uma ação conjunta pela luta de libertação nacional, por uma administração de um governo de consenso para buscar a solução da ocupação, das violações e da grave crise humanitária, principalmente em Gaza.

Além do Hamas, surgiu também o Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), movimento não-violento que busca a libertação e a autodeterminação da Palestina adotando ofensivas econômicas contra Israel. “O BDS tem se firmado como uma eficiente forma de luta. Foi inspirado no boicote exercido contra o apartheid da África do Sul e não cessa de ganhar adesões e novas frentes, como o boicote acadêmico, cultural e esportivo”, explica Tenório.

Para o secretário-geral do IBRASPAL, apesar da injustiça e da gravidade da nova lei, ocorrerá uma “ampliação do nível de intersecção e de unidade” entre os palestinos que vivem em Israel e os que estão sob o jugo colonial, dando mais gás à luta dos palestinos pela libertação da sua terra, pelo retorno dos refugiados e pelo estabelecimento de um Estado soberano. “O projeto do Estado sionista está com seus anos contados”, declara. 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Alessandra Monterastelli

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