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Para José Martí, a verdadeira revolução é conquistada pelo povo e para o povo

No final da década de 1880, Martí assumiu que esse era o problema fundamental da revolução liberal democrática
Guillermo Castro Herrera
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“Ah! Verdadeiramente, a revolução de Cuba,
coroa e garantia de nossa América,
encontrará em seu momento grandes sulcos.
Não se perderá pela terra. Não cairá no mar.
Será amada por um continente. Já é saudada pela hosana comovida dos homens”.
José Martí, 1892[1]

O conceito de revolução ocupa um importante lugar no pensamento político de José Martí. Isto já é evidente em sua juventude, sobretudo a partir de sua ida para o México em 1875, depois de cumprir pena de exílio na Espanha, imposta pelas autoridades coloniais deste país em Cuba, devido a sua precoce participação na luta pela independência de seu país.

A data tem sua importância. Nossa América começava a emergir das guerras civis que seguiram-se a suas revoluções liberais de independência, que desembocavam na criação de Estados que se reconheciam como liberais e tinham um nítido caráter oligárquico. Entre 1876 e 1881, Martí – já então um jovem intelectual e político liberal – conheceu de perto os resultados dessa criação no México, com a chegada ao poder de Porfirio Díaz, e na Guatemala e Venezuela, com as ditaduras de Justo Rufino Barrios e Antonio Guzmán Blanco, este conhecido como o Autocrata Ilustrado.

No final da década de 1880, Martí assumiu que esse era o problema fundamental da revolução liberal democrática

Picryl 
José Martí foi para o México em 1875, depois de cumprir pena de exílio na Espanha devido a sua participação na revolução cubana

Tais experiências levaram Martí a repudiar a organização oligárquica do estado liberal, e o uso da repressão política e da corrupção como meios de governo, considerando-as um desvio no processo histórico da independência. “Porque oligarquia houve em nossos países,” disse em 1884, e foi ela que estimulou e dirigiu nossa revolução de independência; mas não para seu proveito, e sim para o público; e não para manter em cepo e grilhões a alma luminosa, e sim para imprimir com Nariño os “direitos do homem”. E agora acontece que os filhos daqueles próceres gloriosos não encontram outra maneira de honrá-los senão ingerindo de novo em sua pátria os servis respeitos e vergonhosas doutrinas que puseram abaixo, acompanhadas de suas cabeças, seus progenitores!”

Daí, também, que dissesse que em nossa América ainda era necessária uma revolução: “para que não haja Presidente a seu caudilho, a revolução contra todas as revoluções: o levantamento de todos os homens pacíficos, uma vez soldados, para que nem eles nem ninguém voltem a vê-lo [ser? gc] jamais.”

Na época, o termo revolução designava simplesmente a captura do poder mediante o uso da força. No caso de Cuba, cuja luta pela independência ingressava em uma etapa de esgotamento político que se prolongaria até o final da década de 1880, o termo tinha contudo uma complexidade de outra ordem, que obrigava a entender que era necessário não “só a revolução da cólera”, e sim “a revolução da reflexão.” Tratava-se, dizia Martí, da “conversão prudente a um objeto útil e honroso, de elementos inextinguíveis, inquietos e ativos que, se não forem considerados, nos levarão seguramente a grave desassossego permanente, e a soluções coalhadas de ameaças.”

Em meados da década de 1880, essa reflexão já levava a entender que a luta pela independência devia incluir a tarefa de evitar um desvio liberal oligárquico na formação da nova república. Os meios para tanto ainda não existiam, e deviam ser criados. Esse problema está por trás do conflito entre Martí e os caudilhos militares da primeira guerra de independência, que aquele encarou mediante uma carta em que expunha ao general Máximo Gómez: quando nos trabalhos preparativos de uma revolução mais delicada e complexa que qualquer outra não se mostra o desejo sincero de conhecer e conciliar todas as tarefas, vontades e elementos que hão de tornar possível a luta armada, mera forma do espírito de independência, mas sim a intenção […] de fazer servir todos os recursos de fé e de guerra que levante o espírito aos propósitos cautelosos e pessoais dos chefes justamente afamados que se apresentam para capitanear a guerra, que garantias pode haver de que as liberdades públicas, único objeto digno de levar um país à luta, sejam mais respeitadas amanhã?”

A partir dali, a reflexão sobre o problema ganha em riqueza e complexidade, e leva-o a expor desde sua própria formação e experiência que a revolução “não é mais, na ciência política verdadeira, do que uma forma da evolução, indispensável às vezes, pela diferença ou oposição dos fatores que se desenvolvem em comum, para que o desenvolvimento se consuma”.

Essa mesma linha de pensamento o levaria a dizer, três anos depois, que “a política científica” não consistia “em aplicar a um povo, ainda que com boa vontade, instituições nascidas de outros antecedentes e natureza, e desacreditadas por ineficazes onde pareciam mais salvadoras; e sim em dirigir em direção ao possível o país com seus elementos reais.”

Assim, no final da década de 1880 Martí assumiu que o problema fundamental da revolução liberal democrática consistia em fazer do próprio povo o protagonista tanto da conquista da independência como da construção da república que surgisse dela. Desta perspectiva, compreendeu ainda que a ferramenta adequada para este propósito era a organização do próprio povo em um partido político, entendido a partir do fato de que “não é a política mais, ou não há de ser, que a arte de guiar, com sacrifício próprio, os fatores diversos ou opostos de um país de modo que, sem indevido favor à impaciência de uns nem negação culpável da necessidade da ordem nas sociedades […] vivam sem choque, e em liberdade de aspirar ou de resistir, na paz contínua do direito reconhecido, os elementos vários que na pátria têm título igual à representação e à felicidade.

A esta tarefa dedicou-se Martí, com uma disciplina cujo rigor era sustentado por um pensamento claro e preciso. Em 1892 nascia o Partido Revolucionário Cubano, concebido e construído como uma organização capaz de assumir “responsabilidades sumas nos instantes de decomposição do país, nascida do empenho de um povo esclarecido, que pelo mesmo Partido proclama, antes da república, sua redenção dos vícios que enfeiam o nascer da vida republicana. Nasceu uno, de todas os lados ao mesmo tempo. E erraria, de fora ou de dentro, quem o acreditasse extinguível ou desprezível. O que um grupo ambiciona, cai. O Partido Revolucionário Cubano é o povo cubano.

“Somos um exército de luz, e nada prevalecerá contra nós”: assim definiu Martí o Partido criado para libertar Cuba e Porto Rico da colonização espanhola, e prevenir a expansão do nascente imperialismo norte-americano pelo Caribe e América Central. Tal é a riqueza do pensar político que iluminou o momento martiano do andar de nossa América. Isso, também, é o que reclamam nossos tempos, que são, outra vez, de mudança e de incerteza.

Alto Boquete, Panamá, 2 de dezembro de 2022
Guillermo Castro Herrera | Visite meu blog martianodigital.com
Tradução: Ana Corbisier.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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