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Paraguai: sem atuação do Estado, comunidades são aterrorizadas por grupos paraestatais

Segundo analista política Milda Rivarola, processo de violência só vai piorar, com impacto sobre as eleições gerais de 2023
Romina Cáceres
El Surtidor
Assunção

Tradução:

Duas pessoas morreram e outras cinco ficaram feridas em um ataque de bandidos na noite de domingo 30 de janeiro em um festival de música na cidade de San Bernardino, a cerca de 50 quilômetros da capital do Paraguai. 

Para a analista política Milda Rivarola, este atentado não deve ser tomado como um fato isolado e sim como parte de um processo de violência que só vai piorar. Em uma entrevista coletiva à equipe de El Surtidor, Rivarola detalha o funcionamento dos grupos paraestatais como o narco, assim como suas origens e vínculos com o poder político e empresarial. Também reflete sobre o impacto que isto possa ou não ter sobre as eleições gerais de 2023. E adianta que a disputa pelo poder não é nem de modo algum ideológica, e sim sobre como se divide o saque: um modelo de corrupção centralizada representada pelo cartismo versus um modelo de corrupção feudalizada, adotado pelo presidente Mario Abdo.

El Surtidor- Qual é sua leitura sobre o atentado em San Bernardino?
Milda Rivarola- Para isso seria preciso entender o que acontece no Norte. Ali há, há 15 anos ou mais, pelo menos três grupos “paraestatais”: estão armados, controlam um território, têm um objetivo, estabelecem relações – de proteção ou terror – com a comunidade local, tratam de impor “sua lei”, com conflitos entre eles mesmos: o EPP, as (gangues) organizadas e o comércio da droga e da produção de maconha. Mais tardiamente, soma-se a Força de Trabalho Conjunto. Agem sob o pressuposto de que não há Estado, ou de que é muito fraco, que eles assumirão papeis do Estado. E se expandem. Hoje estão na metade norte da região oriental, mas com tendência a expandir-se, ali onde o Estado não funciona, ou é manipulável com corrupção. Quanto menos funciona o Estado paraguaio, mais facilidade tem o narco para ocupar território, criar e impor sua lei e castigar. Os assassinatos são castigos por desobedecer “a lei” ou opor-se aos interesses destes grupos paraestatais.

Tem a ver com a ausência ou a debilidade do Estado paraguaio, não apenas em políticas sociais ou infraestrutura, mas também em garantir segurança e impor o império da lei. O setor da segurança está muito “penetrado” pelo crime organizado.

Segundo analista política Milda Rivarola, processo de violência só vai piorar, com impacto sobre as eleições gerais de 2023

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De acordo com Milda Rivarola, assassinatos são castigos por desobedecer "a lei" ou opor-se aos interesses destes grupos paraestatais

Por que vem tão a propósito essa debilidade e em que momento começa esta relação entre forças de segurança e “forças ilegais”? É com o Gen. Andrés Rodríguez?
Na realidade, a droga – ou a proteção aos narcos- era o negócio de altos chefes militares desde os anos ‘70, compartilhada com alguns ministros de Stroessner. Era um negócio centralizado em poucas pessoas, mas a transição gera o enfraquecimento político do Exército e o aparecimento de grupos privados, nacionais ou de origem brasileira.

Antes vinham para o Paraguai os nazistas e criminosos procurados pela Interpol, agora chegam os antivaxxer; se estão foragidos, fugindo do controle de outros Estados, chegam aqui e se encontram algum poder estatal, corrompem-no. É a razão pela qual os criminosos brasileiros preferem estar em prisões paraguaias; sabem que, com subornos, aqui podem conseguir tudo. Aqui podem ser protegidos por um prefeito, um governador, o chefe policial, um fiscal ou um juiz. Está se corrompendo praticamente toda a estrutura – centralizada e descentralizada – do Estado.

Em uma de suas últimas intervenções, Galaverna disse que em 2023 disputam-se dois “modelos de vida”, que o inimigo não são os liberais nem a oposição, e sim um modelo que busca a anarquia, a “degeneração sexual”, um discurso similar ao da direita do Brasil e de Trump. Você acredita que esse discurso pode atrair votos em determinada direção?
O primeiro discurso de Cartes, com que ganhou em 2013, era um discurso empresarial tecnocrático. Ficou demonstrado que nem isso era verdade, com toda a corrupção e ineficiência em lavagem de dinheiro, contrabando de fumo, construção de viadutos de má qualidade, do metrobus. Há uns dois ou três anos o cartismo mudou de discurso, adotou um – assessorado por seus técnicos de imagem – mais que espontâneo. Eles têm várias empresas que monitoram a opinião pública e lhes fornecem um discurso apto ao eleitorado. Passaram assim a adotar esse discurso de ultradireitista; onda Trump e Bolsonaro, de “deus, família e propriedade”. É um discurso copiado ou fabricado por seus assessores, que tem impacto na sociedade paraguaia, muito conservadora. 

Devem lembrar-se desse movimento da direita nacionalista gerado pela pintata do Panteão dos Heróis. Mandaram não apenas coroas de flores; até atletas olímpicos foram fazer guarda diante do «sagrado monumento». Sucede agora o caso da queda de duas torres do Palácio de Governo, devido à ineficiência da empresa restauradora. E nem a SNC -Secretaria Nacional de Cultura – mandou investigar que tipos de danos houve, o controle midiático que conseguem é altíssimo. Reage-se a estímulos ideológicos lançados pelo governo, e não agem racionalmente diante de outro tipo de questões graves, que os afetam sendo minimizadas por influencers, bot farms e meios de imprensa afins.

Para você o que está na realidade em disputa em 2023?
No Partido Colorado, algo que tem a ver muito com a (eleição) interna, é a renegociação do anexo C de Itaipu. No Itamarati estavam muito impressionados, porque durante o governo de Lugo nenhuma autoridade paraguaia lhes pediu dinheiro. Porque sabem historicamente que negociar com o Paraguai é de fato subornar, e conseguir o que querem. Esta renegociação vai ocorrer no começo do novo governo, a luta das facções coloradas tem relação com isso: os acordos por baixo da mesa que ocorrerão, em parte porque as mobilizações em defesa da energia paraguaia não são muito intensas em nível local.

Essa “interna” pré-eleitoral colorada é velha e reiterativa. Os modelos que agora se enfrentam são um modelo de corrupção centralizada e da «ordem» imposta pelo capo di tutti capi. A centralização da corrupção implica castigar aqueles que escapam do modelo, é a fração cartista. Para Cartes, o Estado é um negócio infinito e ele sabe como controlá-lo, comprando ou castigando. O outro modelo é o abismo, que ganhou a interna de 2017, de feudalizar, dividir o saque estatal em partes pequenas pelos caciques colorados. Distribuir entre seus grandes contribuintes de campanhas, ou donos de pacotes de votos, «pedaços» do Estado. Dar-lhes a impunidade necessária para que façam o que quiserem em seus respectivos pedaços. A maioria dos colorados se entusiasma com esse modelo, tem assegurado um pedacinho do saque de acordo com os votos ou o dinheiro com que contribuíram antes. Creio que o que se está discutindo não são projetos de Estado, e sim um modelo centralizado ou descentralizado de repartir o saque.

Bem, esta é a análise dos colorados tradicionalistas e cartistas; e o da oposição?
Há dois grupos na oposição que têm definição mais ou menos ideológica. Um deles é a Frente Guasu, que apesar das rivalidades pessoais internas – um senador de extração colorada, como Kencho Rodríguez, defende direitos indígenas –, respeitam relativamente um núcleo mínimo programático, progressista. O outro é Pátria Querida, de clara ideologia conservadora e de direita. 

Com os liberais é mais confuso, sem debate nem discursos programáticos nas últimas décadas. Ali não há nenhum debate ideológico: Efraín acusando o governo de corrupção e seu rival Llano acusando Efraín de ter roubado; parece uma “interninha” colorada tingida de azul.

Você pensa que há uma oportunidade, nesta escalada de violência na capital, para trabalhar por um maior nível de consciência e inclusive mobilização contra a narcopolítica?
No Paraguai, devido à debilidade de seu tecido social, enquanto não aconteça contigo ou com teu grupo, os problemas não importam. A violência do norte: enquanto não acontecia em Assunção e Central, era coisa do norte. Recentemente com o tiroteio em el Ja’umina de San Bernardino viu-se o perigo da narco política em nível nacional. Curioso, nesse lugar havia quase 250 guarda-costas privados e nenhum policial. O sistema de segurança do Estado paraguaio é tão inútil que a segurança está privatizada por aqueles que podem pagar por ela.

Outro tanto sucede com a mudança climática: o que está acontecendo no Chaco é espantoso em termos de desmatamento e ecocídio. Mas como é no Chaco, não importa à região Oriental… até que haja severas secas, incêndios, e sequem rios e arroios desta região, aí então passa a preocupar… e só por um tempo; passados apenas uns dias, tudo é esquecido.                    Momento de pânico na plateia, quando começa o tiroteio: dois mortos e cinco feridos. Foto Reprodução                 

Falar de “narco política”, “narco estado”, pode ter algum tipo de impacto nas eleições?
O eleitor colorado ou liberal passível de cooptação por algum incentivo sabe perfeitamente quem é o ou a candidata em quem vota. Não está mal informado. A estrutura e o dinheiro que corre no dia das eleições e nas semanas anteriores é o que compensa seu voto. O caso de Nenecho, ou o “number two” da Central: as pessoas sabiam perfeitamente em quem estavam votando, e votaram. Os resultados estão aí. 

Seria interessante investigar a magnitude do narcotráfico, da narco política, sua geografia, seus mecanismos de controle dos organismos fiscais ou policiais e seu altíssimo custo em nível social, quanta gente mata. O narco é como os bandidos rurais de um século atrás: certamente matam e castigam, mas também protegem, dão trabalho, distribuem ajuda à gente de sua zona. Não são rejeitados, muito pelo contrário. Ao formar organizações paraestatais, assumem uma espécie de proteção de sua gente e de seu território, complementada com o medo. Porque aos que se opõem, ou os denunciam, matam-nos ou a suas famílias. Hoje, além da palavra “narco estado” ou “narco política”, não há muita informação rigorosa do que é, que amplitude tem, que membros recruta – fora e dentro do Estado –, como atua.

Qual é a cota de responsabilidade da sociedade nesse avanço do crime organizado?
É curioso. Ninguém quer a embaixada na Espanha porque ali há uns 300 ou mais compatriotas presos por narcotráfico, em sua maioria mulheres, que estarão de 25 a 30 anos na cadeia. Para exportar cocaína os narcos utilizam gente pobre e necessitada.

A outra coisa é investigar os caminhos utilizados pelo narcotráfico. Para trazer a matéria-prima de fora continuam a usar aviões pequenos, mas 70 ou 80% da droga dura, cocaína, agora sai por via fluvial, muitas vezes em contêineres de soja. Não é somente uma questão de Estado versus narcotráfico, existem agroexportadores que devem estar metidos nisso. O que ganhava o agiota González Daher é “mita’i recreo” perto do dinheiro que se maneja no negócio da droga.

Esse setor empresarial há muito tempo está vinculado também à pátria contratista; como é que construiu tanto poder e legitimidade sem sequer ter resultados eficientes à vista?
A origem do grande empresariado local é – foi desde os anos ’50 – os negócios com o Estado. O Estado paraguaio cria pobreza em um extremo, e empresariado no outro. Por isso, apesar dos discursos – uma espécie de show midiático – de cada inauguração das Expôs, ou de cada 8 de dezembro, o empresariado está permanentemente ao lado dos governos colorados, foi e é sua fonte de capitalização.

A maior fonte de «arrecadação» do governo, e de enriquecimento de contratistas – além do setor farmacêutico – é o setor de obras públicas. As porcentagens de multa são de 20 a 30% do total do custo. E continua sendo o mais impune, o menos investigado pelas quatro ou cinco instituições anticorrupção do Estado.

A disputa pela terra vai continuar sendo uma de nossas principais disputas?
Durante o estonismo, mudou-se o Código Agrário para legalizar a venda de terras fiscais a não camponeses, especuladores, ministros, militares, parlamentares, parentes ou amigos. Desde 1989, o resto das grandes extensões fiscais estava no Chaco. E os pactos políticos da transição foram «aceitos» por distribuição de terras chaquenhas a políticos e parlamentares, ou a suas famílias. E não só colorados, há opositores beneficiados pelo IBR-Indert em troca de votos no Congresso. Parte do desmatamento selvagem que está sofrendo o Chaco tem a ver com que isso; entrou no mercado especulativo-político.

Reportagem de Romina Cáceres · Edição de Jazmín Acuña · Ilustração de Noako Okamoto e Jazmín Troche · 01·02·22
Tradução de Ana Corbisier


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