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Paraguaios pressionam Congresso Nacional por justiça para vítimas do massacre de Curuguaty

Ativistas reivindicam a imediata transferência dos 1,748 hectares de Marina Kue às 160 famílias de camponeses que vivem no local
Leonardo Wexell Severo
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Liderados pela Associação de Familiares e Vítimas do Massacre de Curuguaty, os sem-terra voltaram a ocupar o Congresso Nacional do Paraguai, em Assunção, nesta quarta-feira, 3 de fevereiro – data da queda do ditador Alfredo Stroessner -, para reivindicar a imediata transferência dos 1,748 hectares de Marina Kue às 160 famílias de camponeses que vivem no local. Sem definição, a decisão foi postergada para o final do recesso parlamentar, em março.

Aprovado pela Câmara Federal e pelo Senado no final do ano passado, o Projeto de Lei (PL) foi inicialmente saudado como “medida de justiça” pelo presidente Mario Abdo Benítez, que logo o vetou por pressão de pecuaristas, latifundiários, madeireiros e marijuaneros.

O pânico com o reconhecimento a um direito histórico, denunciam os movimentos sociais, é que a presença de trabalhadores rurais na área significa maior presença do Estado, erguendo um forte obstáculo às suas ilegalidades.

“Com o adiamento, ganhamos tempo para ampliar a pressão e acumular os votos necessários entre os congressistas, a fim de rechaçarmos o veto presidencial. Esta é uma decisão que diz respeito aos direitos humanos, à defesa da reforma agrária e do próprio direito ambiental”, afirmou Guillermina Kanonnikoff, do Movimento de Solidariedade aos camponeses de Curuguaty e ex-presa política da ditadura de Stroessner (1954-1989).

Ativistas reivindicam a imediata transferência dos 1,748 hectares de Marina Kue às 160 famílias de camponeses que vivem no local

Leonardo Wexell Severo
Para dar maior visibilidade à reivindicação, a Associação montou recentemente uma “Tenda da Resistência” em frente ao Congresso

Verdade e justiça

Dados oficiais da Comissão de Verdade e da Justiça (CVJ) apontam que para tomar de assalto as terras e redistribuí-las entre os amigos do general, as vítimas da ditadura chegam a 20 mil, sendo milhares de torturados, 3.470 forçados ao exílio, 336 desaparecidos e 59 vítimas de execuções extrajudiciais.

Para o monsenhor Guillermo Steckling, é simbólico o fato de a mobilização ter ocorrido precisamente na data do 32° aniversário da transição democrática e no dia de San Blas, Patrono da Diocese de Cidade do Este e do Paraguai.

“Defendemos que os parlamentares ratifiquem e, consequentemente, ponham em vigência a Lei 6700/2020 em favor das populações camponesas beneficiárias”, assinalou Steckling, frisando que, ao mesmo tempo, é fundamental que o governo “favoreça o desenvolvimento integral dos assentados com políticas públicas em termos de infraestrutura, acompanhamento técnico e apoio financeiro para a produção sustentável, em harmonia com o meio ambiente”.

Em nota de solidariedade aos “irmãos sem-terra”, a Conferência de Religiosos do Paraguai (Conferpar) defendeu que os legisladores resolvam “uma das mais graves injustiças, algo que há anos vêm se arrastando contra esses compatriotas”.

Segundo a presidenta da Associação de Familiares e Vítimas, Martina Paredes, que perdeu dois irmãos no massacre – Fermín e Luis Agustin – tornando-se, ao lado de Dario Acosta, símbolo de resistência dos acampados à fúria dos sucessivos governos neoliberais, é essencial esclarecer os legisladores, a fim de que seja feita justiça.

Para dar maior visibilidade à reivindicação, a Associação montou recentemente uma “Tenda da Resistência” em frente ao Congresso, onde os acampados receberam o apoio da sociedade civil, artistas, intelectuais e religiosos. Martina explicou que “foram oito dias em que enfrentamos a chuva, os riscos da pandemia e uma enxurrada de mosquitos para romper o silêncio imposto pela grande mídia, ganharmos os corações e consciências”.

“O veto nos chamou muito a atenção porque o presidente disse que ia buscar cicatrizar as feridas, trazer paz social, mas nos prejudicou totalmente… Sentimos que fomos traídos, uma facada pelas costas em que as feridas foram reabertas. Não esquecemos as 17 pessoas assassinadas, os 11 camponeses e os seis policiais. Lembramos os policiais, pois também são filhos e irmãos de camponeses, foram pobres contra pobres que morreram. E até hoje não há paz em Marina Kue”, recordou Martina.

De acordo com Dario Acosta, que vive no acampamento ao lado da esposa Maria Elena Chaparro, igualmente batalhadora, e dos nove filhos, “houve uma tremenda decepção com a forma como todos foram destratados pelo presidente e sua assessoria em relação à regularização das terras”. “Infelizmente, ele se rebaixou ao atuar como marionete das entidades de sojeiros e pecuaristas, e os parlamentares terão de corrigir esse erro e garantir justiça”, frisou.

Digitais dos Estados Unidos

O local foi cenário do massacre de 15 de junho de 2012, em um suposto “enfrentamento” com as digitais dos Estados Unidos que colocou de um lado 324 policiais, tropas de elite treinadas pela CIA e pelo Exército dos EUA, fortemente armadas com fuzis, bombas de gás, capacetes, escudos e até helicóptero e de outros 60 trabalhadores rurais, metade deles mulheres, crianças e idosos com garruchas para caça que não chegaram a disparar. O sangrento “conflito” levou à destituição do presidente Fernando Lugo, ocorrida uma semana depois por meio de um golpe jurídico-midiático- parlamentar.

Conforme a historiadora e escritora Margarita Durán Estragó, “o que deve primar é a verdade e a realidade. A verdade é que a presença de camponeses em Marina Kue molesta os plantadores de soja e de marijuana, e os traficantes de madeira. A presença dos acampados incomoda muito naquilo que chamam de ‘reserva’ administrada pelos Riquelme”.

A área de Marina Kue – terras da Marinha, em guarani – foi entregue à Armada pela Industrial Paraguaya (Lipsa), de capital anglo-argentino, em troca da isenção de impostos. Um destacamento militar ocupou o local entre 1967 e 1999, até a família Riquelme avançar, cercar e começar a desflorestar a área.

“Quando a Marinha saiu do local, eles sabiam que não havia título de propriedade e a ocuparam. É a lógica do saque convertida em direito. O fato é que pagaram a um juiz inescrupuloso para que lhes desse usucapião, sem que isso seja possível, pois são terras do Estado. Os que impulsionaram o despejo não tinham título, porque não podiam ter. No Paraguai estamos mergulhados em um sistema feudal, onde quem possui mais terra, maior poder tem. Por isso o massacre ocorrido foi o mais emblemático desde o final da Guerra Grande [com Argentina, Brasil e Uruguai, de dezembro de 1864 a março de 1870]”, denunciou. Ao trazer à tona estes aspectos da história recente do país, o vergonhoso “toma lá, dá cá”, explicou Margarita, crescem as chances para a derrubada do veto presidencial.

Reiterando a importância da mobilização para março, o monsenhor ressaltou que é necessário pôr em prática a encíclica Laudato Si, defendida pelo Papa Francisco aos bispos paraguaios. “Todo camponês tem direito de possuir um lote racional de terra onde possa se estabelecer, trabalhar para a subsistência de sua família e ter segurança existencial. Este direito deve estar garantido para que seu exercício não seja ilusório, mas real. E isso significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de educação técnica, créditos, seguros e comercialização”, concluiu.

Para compreender melhor a situação, veja abaixo o vídeo Desconstruindo Curuguaty, com legendas em português:

Leonardo Wexell Severo colaborador da Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

   

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