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Autora de diversos romances, entre eles A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas filhas, pelo qual recebeu o Prêmio Revelação APCA, em 2002, Maria José Silveira lança Pauliceia de mil dentes.
Tensa e profunda, a obra descortina a diversidade e vitalidade que sustentam a capital paulista, com inúmeras personagens, seus diferentes tipos de vida e dramas que se esbarram no incessante movimento da megalópole.
Uma invasão a um famoso escritório de advocacia dá o pontapé inicial desta narrativa intrigante que tem neste ato inesperado, cometido por um jovem de família tradicional que faz a ex-namorada e uma faxineira de reféns, o eixo central do enredo. E é em torno deste incidente que as histórias se cruzam e são apresentados os demais sujeitos que constroem o romance marcado pelos seus tipos distintos de linguagens e vozes.
Uma excelente dica de leitura que traz uma São Paulo plural, vigorosa e frenética como palco para muitas vidas, interconectadas no dia-a-dia da cidade.
Confira a entrevista publicada originalmente no blog Aperte(o)Botão por Tatiana M. Dias:
Tatiana M. Dias: Qual a sua relação com a cidade de São Paulo?
Maria José Silveira – De amor, eu diria: paixão complicada, cheia de conflitos, uma coisa assim. É que esta cidade toda errada ainda é capaz de concentrar uma exuberância fantástica de tipos humanos, riqueza de ideias, vidas, contradições, e através de tudo isso, criar uma energia que é possível sentir no ar que se respira aqui. Desde que você consiga, claro, deixar o monóxido de carbono de fora.
Caldeirão de culturas diferentes: mistura de povos distintos vindos de outras partes do Brasil, imigrantes e suas novas gerações, os turistas….São Paulo tem uma identidade própria?
Justamente essa: ser uma mistura de tudo isso, com seus pontos de contradições, conflitos, e também de enriquecimento. É nisso que ela é a somatória de nossos males e possibilidades: aqui você encontra o que há de riqueza e beleza e o que há de desigualdades e misérias no país.
Metamorfose, a paisagem da capital paulista se reconfigura dia a dia em virtude da expansão econômica do país: obras do metrô, novos centros comerciais surgem, a cidade de verticaliza como nunca. O antigo (muitas vezes, raro, original e belo…) dá lugar ao novo em nome do dinheiro. A cidade é ingrata com seus moradores?
A cidade, não. Seus governantes e administradores. Ela é tão vítima como cada um de seus moradores.
Encontrar uma maneira própria de se relacionar com a cidade é um jeito de escapar da loucura, da solidão? É isso que de algum modo fazem os personagens de Pauliceia de mil dentes para sobreviverem ao caos?
Sem dúvida. A megalópole esmaga. Seus defeitos são inúmeros e declarados: a competitividade, a insegurança, a falta de espaços de lazer comunitário, de contatos genuínos. É urgente encontrar saídas: e o paradoxal é que elas existem, e são muitas. Há uma gama enorme de possibilidades que só encontramos aqui. E o desolador é constatar como é difícil encontrá-las; como nossos governantes não facilitam isso; como o cotidiano aqui pode engolir qualquer um de nós. São duas cidades em uma só: a que acolhe e a que mastiga e cospe.
Aqui a vida pulsa. É esse o elemento atraente da cidade de São Paulo?
A vida pulsa, as coisas acontecem, a energia se concentra, a vida cultural é intensa, as possibilidades são enormes. Esta cidade sabe ser bela; sabe amar e ser amada. Por outro lado, há tudo o que sabemos: violência, desigualdades, trânsito, inúmeras dificuldades por toda parte. As duas caras da megalópole: o que tem de bom e o que tem de perverso. Esperemos que essa pulsão de vida ganhe a parada e seja capaz de se espalhar pela cidade inteira. É nisso que, otimista como sou, ainda acredito.
Qual seu lugar preferido na cidade?
A minha janela que se abre para o vão do Masp e a Paulista.
E o lugar que mais detesta?
Qualquer um onde esteja acontecendo um engarrafamento.
Que presente daria a São Paulo hoje?
Mais espaços públicos bem cuidados: é deles que vem o ar que a cidade respira. Os espaços públicos incluem tudo e é neles que os grandes problemas se manifestam: trânsito infernal, calçadas intransitáveis, praças contadas, árvores abandonadas, escolas e saúde pública cheios de problemas, carência de lugares de lazer onde as pessoas possam se encontrar e exercer sua cidadania. É preciso devolver os espaços públicos à dimensão da cidade que cresceu em volta e que, sem eles, se torna o monstro que pode devorar-nos a todos.
Trocaria Sampa por qual cidade?
Por enquanto, nenhuma. Já morei em Goiânia, Brasília, Nova York, Paris, Lima, Rio, e gostei de todas elas, mas São Paulo é meu lugar de escolha, meu chão no meu país. Como tudo muda, no entanto, e esta cidade tão ameaçada está sempre à beira de algum abismo, não digo que não saio daqui. Digo apenas que ainda acho possível que a parte sã desta “jabuticabeira urbana” (é curioso como as jabuticabeiras ainda sobrevivem por aqui) recupere seu espaço e se amplie.
Qual música retrata mais a Pauliceia de hoje?
Neste momento, não temos uma música como “Sampa”, do Caetano, acolhida por tanto tempo como seu retrato. Ouso dizer que a esquina da Ipiranga com a Av. João já não emociona ninguém. Como o “Trem das Onze”, do Adoniran, que nem existe mais. Atualmente, penso que a melhor “tradução” de uma parte da alma da megalópole são os raps – os Racionais MCs, Rappin Hood, Criolo, essa turma. Digo uma parte, porque, evidentemente, a outra parte dessa alma está bem longe disso. Assim, uma música capaz de identificar a cidade como um todo, sinceramente não conheço. Aquelas cenas urbanas harmoniosas e reconhecíveis por todos na época de Caetano já foram deglutidas: agora é só fragmentação. E suponho que fragmentação não rende boas harmonias.
Sobre a autora:
Maria José Silveira é goiana, de Jaraguá. Mora em São Paulo há muitos anos. Escritora, tradutora e editora, ela foi sócio-fundadora e diretora da Editora Marco Zero. É formada em comunicação (pela Universidade de Brasília), em antropologia (pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos – Lima, Peru) e mestre em Ciências Políticas (pela Universidade de São Paulo). Começou escrevendo para crianças, na Revista do Sítio do Picapau Amarelo, criando histórias com os personagens da Emília, Narizinho e Pedrinho. Tem livros traduzidos na Espanha e no Chile. Pauliceia de mil dentes, seu sexto romance, marca os dez anos de carreira da autora.