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Paulo Cannabrava | Jornalismo é um serviço público em extinção: os jornais cavaram a própria sepultura

De um lado, temos a ampliação do desemprego e a informação transformada em commodities. De outro, as violações constantes dos direitos dos trabalhadores
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Jornalismo e interesse público me parecem expressões de um mesmo conteúdo. 

Eu aprendi, na escola e no exercício profissional, que jornalismo é serviço público para atender a um direito fundamental da pessoa humana, que é o direito de ser informado. E aprendi também que para ser ético é preciso conhecer e respeitar os direitos dos outros que são nossos próprios direitos. 

Entendo que ética e cidadania também são expressões de um mesmo conteúdo.   Portanto, se interesse público se confunde com cidadania o jornalismo ético é o que está a serviço da construção da cidadania. Sendo o interesse público o foco principal do jornalismo, a reflexão que se suscita é sobre como ser ético servindo ao poder do Estado ou ao poder privado.

Eu diria que o busilis da conjuntura, para nós, comunicadores, é como construir caminhos alternativos para tornar possível um jornalismo ético.

Característica do capitalismo na atualidade: concentração cada vez maior do capital e da propriedade e a convergência tecnológica. Essa realidade tem provocado efeitos perversos nos meios de comunicação. De um lado, a precarização do mercado de trabalho, ampliação do desemprego e a informação transformada em commodities. De outro lado, as violações constantes dos direitos dos trabalhadores sob o eufemismo de flexibilização, sinergia, e produtividade. 

Outro efeito da conjuntura, que se arrasta por mais de 40 anos, é o aprofundamento do individualismo aliado ao consumismo: a tal Lei de Gerson, aquela de levar vantagem se sobrepondo à ética. Até o trabalho escravo voltou a ser moral.

Vê-se como consequência a contínua ocupação predatória do território, as práticas genocidas e ecocidas. 

Nos grandes centros urbanos vê-se outra cidade, que não só desenvolve uma economia paralela para sobreviver como também está desenvolvendo outra cultura. 

Essa outra cidade dos excluídos já é bem maior que a cidade dos excludentes. Estes cada vez mais ricos e excluídos da realidade de seu próprio país, vivendo em guetos ou em verdadeiras fortalezas, movendo-se em carros blindados, disseminando a cultura do medo e da violência.

Às megacorporações interessa o retorno rápido do capital e a maximização do lucro. 

A crise já não é só econômica ou financeira: é alimentar, energética, climática, ecológica, moral, hoje agravadas pela crise sanitária provocada pela pandemia da Covid 19. Uma tragédia que já nos levou meio milhão de vidas. 

Como já dizia o antropólogo e educador Darcy Ribeiro, a crise é civilizatória. A humanidade tem que repensar-se. Temos que recriar o Estado.

A escola, em todos os níveis e de uma maneira geral, está formando reprodutores do status quo. O pensamento único imposto pelo capital financeiro acabou por impor-se sobre o pensamento crítico e os meios de comunicação em uníssono são porta-vozes desse pensamento único.

De um lado, temos a ampliação do desemprego e a informação transformada em commodities. De outro, as violações constantes dos direitos dos trabalhadores

Reprodução: Twitter
Os velhos jornais de papel receberam novas versões digitais

Esse status quo perverso não dá espaço para a construção do futuro. 

Noam Chomsky constatou, com muita propriedade, que o funcionamento da universidade não difere muito do dos meios de comunicação. 

Dependem dos alunos ricos, das corporações e do governo, grupos que compartem os mesmos interesses. Ambos, se não servem a esses interesses, quebram. Talvez por isso em nenhuma universidade se estude o que realmente está a ocorrer no mundo.

Meio milhão de mortos que poderão chegar a 800 mil até o final do ano. Por que não houve um engajamento pleno dos meios de comunicação e das escolas na emergência provocada pela pandemia? Será que cabe só ao governo a culpa pela mortandade?

O governo de ocupação, governo das forças armadas, fez sua parte, tem que ser julgado e condenado. 

Foi preciso transcorrer um ano de pandemia e bater o recorde de mortes para que os meios percebessem o desgoverno. E boa parte da sociedade ainda não percebeu, julga que é um bom governo.

Quando eu iniciei no jornalismo, qualquer jornal diário rodava pelo menos 100 mil exemplares. Nunca tivemos no Brasil um jornal de grande circulação nacional como um Tokyo Shimbun, por exemplo, com mais de um milhão de exemplares. 

Os jornais para as elites, propriedade de oligarcas, sempre foram de pequenas tiragens e de âmbito local ou regional. Da mesmo forma são os jornais que assumiram a defesa da democracia e do progressismo.

O jornal O Estado de S. Paulo, de quarta-feira (23), publica matéria vangloriando estar entre os grandes jornais de maior tiragem do país: É uma vergonha. É o retrato de um país em que 70% da população é analfabeta funcional. 

Os dois maiores jornais de São Paulo, o Estadão e a Folha, somados, rodam quando muito 130 mil jornais. A capital tem 10 milhões de habitantes e a Grande São Paulo, 22. Se dizem de circulação nacional, o que torna ainda mais irrisória a quantidade de jornais.

O Globo, que já foi também um jornal de grande circulação e de âmbito nacional, imprime 72 mil exemplares. Zero Hora e Correio do Povo, de Porto Alegre, 50 mil e 30 mil, respectivamente; Correio Brasiliense, o mais importante de Brasília, a capital federal, onde os salários são os mais altos, não passa de 50 mil exemplares.

Eu não creio que essas tiragens ridículas sejam por conta unicamente da convergência tecnológica e o surgimento de múltiplas publicações multimídias. Isso se deve a que os jornais perderam o sentido, deixaram de ser prestadores de serviço para servir unicamente ao capital, ser cúmplices de golpes de Estado, apoiar políticas excludentes, não aceitar o pensamento divergente. 

Novas plataformas

A rádio foi, por muito tempo, o principal meio para informação do brasileiro. A televisão se somou ao rádio e, no seu auge, 90% dos domicílios com receptores de TV ainda continuavam dividindo audiência com o rádio.

A internet e a convergência tecnológica vieram mudar esse panorama. Na realidade, inauguraram uma Revolução Industrial que ainda não chegou a seu clímax. 

Hoje, o poder multimídia está nas mãos de qualquer cidadão: a tão sonhada comunicação horizontal, dialógica ao alcance dos interessados. Mas está também ao alcance dos grandes monopólios a exigir, portanto, regulamentação para garantir que sobreviva como meio democrático. 

As ondas hertzianas, como de rádios e televisões, assim como os cabos de internet deveriam ser públicos. Rádio e TV são concessões, a internet também deveria ser.

Queda na circulação

Em 2013, por exemplo, 50% das pessoas entrevistadas diziam ter nos jornais impressos sua principal fonte de informação. Já era assustador. Em 2019, baixou para 23% e continuou caindo, chegando hoje a 12%. Nesse andar, daqui há pouco ninguém mais vai querer se informar pelos meios impressos. Em 2013, 73% dos consultados diziam ter a TV como principal meio de informação; em 2019 baixou para 67% e hoje está em 63%, e ao que tudo indica manterá em queda.

Quem substitui a TV como principal fonte de informação foram os meios online, os próprios jornalões e meios alternativos, incluindo os audiovisuais. Assim mesmo houve queda de interesse, de 87% em 2019 caiu para 83% em 2021.

Muitos meios impressos desistiram. Grandes jornais e revistas hoje existem apenas virtualmente.

Vejamos aonde as pessoas se informam. Pesquisa do site YouGov, divulgada pelo site Poder 360.

Meio 2019 (%) 2021 (%)
Facebook 54 47
WhatsApp 49 43
YouTube 45 39
Instagram 30 30
Twitter 17 12
Messenger 13 11
Televisão 67 63
Online 87 83
Impresso 23 12
Paga para ver online 27
17

 

É um quadro assustador, posto que os meios online informam, na sua maioria, apenas o fato, descontextualizado tudo para ser consumido no mais curto espaço de tempo possível. Uma enxurrada de informações impossível de ser digerida. 

A leitura desses dados mostra a pior das tragédias do subdesenvolvimento dependente.

Mostra que há entre 20% e 30% de gente que lê e entende e que, assim mesmo, é mal informada e, ainda por cima, por uma mídia que exalta o consumismo e é porta-voz do pensamento único, uma sociedade muito bem descrita em livros de intelectuais como Jean Baudrillard e Zigmunt Bauman, entre outros. Nós mesmos, aqui na Diálogos do Sul temos vários textos de críticas aos meios.

É um problema muito grave que os arautos do neoliberalismo façam questão de agravar e a sociedade não está preparada para enfrentar, e mudar.

Como dizia Darcy Ribeiro, a má escola faz parte do projeto de dominação. Por isso, é preciso muito mais que derrubar esse governo espúrio e reconquistar o Estado. 

Por isso, como dizia outro mestre educador, Paulo Freire, o patrono da educação, só uma verdadeira Revolução há de colocar todas as crianças nas escolas, escolas de tempo integral, de qualidade, para formar gerações com capacidade de olhar crítica e criativamente a realidade.

É necessária uma Revolução Cultural. É o desafio e a tarefa para as novas gerações. Começa com entender que a luta é de Libertação Nacional.

Libertar do jugo colonial perpetuado pelas oligarquias; libertar do jugo do imperialismo que através das transnacionais desnacionalizou a economia impedindo o desenvolvimento; libertar da servidão intelectual, a pior das servidões. Enfim, ser livre para poder construir um país livre e soberano, com projeto de dignificação da pessoa humana e sua integração respeitosa com a natureza. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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