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Pelo Dia Nacional da Consciência Negra

Diferente da imagem de que somos um povo pacífico, tudo aqui se fez com muita luta de um povo que ainda não usufrui das vitórias
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Atualizada em 19.11.2019, às 20h59

Dia 20 de novembro, foi decretado Dia Nacional da Consciência Negra. 

Darcy Ribeiro, o antropólogo do Brasil, em seu livro “O povo brasileiro”, reconhece a imensa contribuição dos negros para o fazimento do Brasil. E lembra que mais de 10 milhões de negros foram queimados como lenha nas fornalhas que construíram o país. Apesar disso, os que sobreviveram são a maioria da população brasileira hoje, mas não se lhes reconhece como tal. Por quê? Darcy lembra, por exemplo, que o idioma que falamos, esse português brasileiro, é obra dos negros que pediram emprestado o idioma do capataz para se comunicarem entre eles.

Como desembarcaram aqui de diversas etnias, arrancados a força de suas terras e suas culturas, cada uma com seu idioma, criaram um idioma comum que com o tempo superou o nhenhenhém, a língua geral, falada majoritariamente principalmente no sul e sudeste do país. Esse novo idioma incorporou o nome das coisas dadas pelos indígenas que aqui viviam e algo dos portugueses, como a estrutura da língua. Quando se afirma que aqui se fala um idioma brasileiro, não se pode deixar de mencionar a enorme contribuição dos povos originários para esse novo falar.

A população indígena quase que desapareceu em mais de 5 séculos de matança indiscriminada. Mas a cultura autóctone permanece viva. Bastaria lembrar a sabedoria no uso medicinal da flora, a culinária, a engenharia ou observar o nome da maioria das coisas que nos rodeiam: o nome dos bichos, dos peixes, das árvores, frutas e flores, dos morros e serras, dos rios e das praias e até mesmo nome de Estados (Paraná, Pará, Pernambuco, Sergipe, Maranhão, Goiás, Tocantins) e de grandes cidades. “O Tupi na Geografia Nacional”, de Alcântara Machado é um entre tantos livros sobre esse tema.

A resistência dos indígenas e dos negros à conquista ibérica é uma constante na história de Nossa América. Os quilombos começam com a chegada dos primeiros negros escravizados no Brasil. O mais famoso deles, começou com o acampamento de escravos rebelados na serra da Barriga, na capitania de Pernambuco (hoje Alagoas), transformou-se no Estado livre de Palmares, que suportou uma guerra de 90 anos contra a colônia. O dia 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, homenageia essa gesta que iniciou em 1606 e terminou em 1695 com o martírio coletivo. Ficou a memória de Ganga Zumba e de Zumbi de Palmares, heróis de nosso povo.

Diferente da imagem de que somos um povo pacífico, tudo aqui se fez com muita luta de um povo que ainda não usufrui das vitórias

Mídia Ninja
5º Marcha Nacional da Consciência Negra, em Belo Horizonte (MG), 2014

O Movimento dos Sem Terra começou com a Abolição

A diáspora negra das fazendas para os quilombos é uma constante. Como é constante o caráter bélico da repressão branca. Essa é uma guerra civil que começou em 1500 e ainda não acabou. Quantos negros morrem por dia nos quilombos urbanos brasileiros de hoje? 

Os indígenas que eram milhões agora não ultrapassam 200 mil. Houve uma outra diáspora negra a partir do esgotamento das minas nas Gerais no século XIX. Sem o trabalho forçado nas minas os negros se dispersaram, trabalhando sua roça ou formando comunidades com o objetivo de sobrevivência. Um novo tipo de quilombo com a diferença de que não nascem formados por fugitivos. São milhares as cidades brasileiras, principalmente em Minas Gerais e Rio de Janeiro, que tiveram essa origem. Origem no quilombo. 

Zumbi dos PalmaresZumbi dos Palmares

Ainda no século XXI se pode ver remanescentes desses núcleos humanos. Eles são responsáveis não só pela ocupação do território como pela conservação das tradições: viver em comunidade, músicas, folguedos, danças, crenças, culinária, artesanato, etc., que constituem os fundamentos da cultura brasileira. Outra diáspora, a dos Sem Terra, começa com a Abolição. 

Dispensados, os escravizados nas fazendas, para aonde ir?  A subsistência dessas comunidades vem da terra. E aqui também está a origem de outro eterno conflito: o latifúndio não admite que o quilombola, o posseiro, seja caipira ou caiçara, tenha uma propriedade fundiária. Prevalece a cultura da capitania hereditária e dos capitães de mato. É o grileiro expulsando o posseiro. A avidez por terra e a burrice histórica das oligarquias nativas é responsável pelo não desenvolvimento de uma classe média fundiária e produtora de alimentos, bem como de uma burguesia nacional no país.

Luiza Mahín, líder da Revolta dos Malês.

A tal ponto vai à burrice do especulador imobiliário que acabaram com a pesca artesanal no país, expulsando os caiçaras para construir condomínios e/ou casas de veraneio. Hoje importamos peixe do Alasca. A manutenção de uma cultura de capitanias hereditárias está na raiz da preservação do latifúndio, ou da burrice de não dar terras para os que precisam dela para sobreviver e produzir. Ao impedir o acesso à terra gerou uma outra cidade (dos excluídos) em torno das cidades (dos excludentes) e frustrou a revolução burguesa no país.

Uma infinidade de conflitos que tecem a história da sociedade brasileira tem o mesmo sentido libertário das lutas dos quilombolas. Isso por uma razão muito simples: a maioria da população era e ainda é negra. Há que lembrar da revolta dos negros islâmicos, os Malês na Bahia (1835), ou a Sabinada (1837-1838) também na Bahia, contra o Reino, a dos pobres no Pará, que ficou conhecida como Cabanagem (1835-1840). Inclusive, o Cangaço, em fins do século XIX e começo do XX, não teria existido se não fosse a exploração aviltante dos camponeses do sertão nordestino pelos fazendeiros, a maioria grileiros nessas terras.

Inclusive, a resistência dos indígenas desde os primeiros dias da conquista ibérica tem também esse sentido libertário. Não foi nada pacífica a ocupação territorial no Brasil pelos Europeus e ainda está para ser escrita a saga dos heróis que tombaram defendendo a integridade do território nacional. História de heróis como Cunhambembe, que chefiou a revolta dos tupinambás (Confederação dos Tamoios) onde hoje está o Espírito Santo, que durou de 1554 a 1567; a guerra dos Aimorés, de 1555 a 1673; a saga de Sepé Tiaraju, na guerra guaranítica, hoje santo por vontade popular e tantas outras, precisam ser contadas. Negros e indígenas resistiram à conquista. Os séculos XVI ao XVIII foram tempos de guerra. Guerra contra um inimigo muito poderoso e o resultado foi o aniquilamento dos nossos guerreiros. Isso forjou a característica dominante do establishment brasileiro que é a do Estado contra o povo que se mantém até hoje.

Hoje temos os Quilombos urbanos institucionalizados

Abdias Nascimento, ícone da luta.
Abdias Nascimento, ícone da luta.

O ministro Lewandowski disse em aula na Faculdade de Direito da USP (OESP, 30/9/16) que a cada ciclo de 25 a 30 anos a democracia sofre um tropeço no Brasil. Não é bem assim. Na realidade, é a própria dinâmica do processo histórico que é interrompida com o fim de perpetuar o status quo oligárquico-dependente. E o fazem sempre com violência, seja das armas ou das leis. Com o processo de urbanização acelerado no século 20, mantendo-se a política excludente do poder oligárquico financeiro, surgem as favelas e outros núcleos organizados de maioria negra, como candomblé, capoeira, etc., são, na visão de Abdias do Nascimento, quilombos urbanos institucionalizados.

As favelas, que para as elites são tratadas como problema, para o povo é a solução criativa encontrada para enfrentar a ausência total de políticas públicas, para resolver as questões urbanas e habitacionais, voltadas ao bem estar do povo. Washington Luiz dizia que a questão da marginalidade social era um caso de polícia. Hoje, numerosas favelas estão cercadas ou ocupadas pelas armas de um estado oligárquico que se militarizou para enfrentar os problemas sociais. O que mudou? Há que destacar aqui que as mulheres quase que estão ausentes nesse resumo histórico.

Consequência desse processo oligárquico excludente, machista e misógino, as heroínas de nosso povo foram ignoradas pela historiografia oficial salvo raras o óbvias exceções. É preciso resgatar o protagonismo dessas mulheres, que como Tereza de Benguela e Dandara dos Palmares, guerreiras quilombolas; Luiza Mahin, líder dos Malês na Bahia; Anita Garibaldi da Revolução Farroupilha; ou as que lutaram contra a colônia pela independência, como Maria Quitéria ou Joana Angélica. Há centenas de mulheres que depois destas lutaram pelos direitos sociais. Aquelas que mais recentemente atenderam o chamado à luta contra a ditadura nos anos 1960-70, que são muitas, há o livro do jornalista Luís Maklouf Carvalho: “Mulheres que foram à luta”, Editora Globo, 1998.

abdias-collage

Hoje o movimento negro organizado, em que as mulheres negras estão dando exemplo, se insere nesse contexto, ou seja, são os quilombos do século XXI. Eu imagino toda essa energia criadora transformada em força libertária.

Ninguém segura esse país. Abdias do Nascimento (1914-2011), ativista negro, poeta, teatrólogo, pintor, deputado federal, senador junto com Darcy Ribeiro, foi um grande estudioso das lutas libertárias de nosso povo, apaixonado pela cultura quilombola. Vale registrar que Abdias e sua esposa, Elisa Larkin, participaram das reuniões de fundação de Diálogos do Sul e agora mesmo, oportuna e merecidamente, há uma ocupação no Espaço Cultural Itaú, na avenida Paulista, que resgata a vida e obra dessa grande figura do movimento de libertação. Ele escreveu:

“(…) Onde poderemos encontrar essa vivência de cultura coletiva? Nos quilombos. Quilombo não significa escravo fugido conforme nos ensinam as definições convencionais. Significa reunião fraterna e livre; encontro em solidariedade, convivência, comunhão existencial. A sociedade quilombola ou quilombista representa uma etapa avançada no progresso humano e sócio político em termos de igualitarismo econômico. Os quilombolas dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre aos negros contemporâneos manter e ampliar essa cultura afro-brasileira de resistência e de afirmação da nossa verdade”.

Na Argentina e também no Uruguai, a ocupação territorial se deu com o extermínio dos nativos. Os meios de comunicação, a Igreja de Roma e as escolas tiveram papel fundamental. Era preciso demonizar o habitante original, o conquistado, para justificar o genocídio. Tratava-se de conquistar, de ocupar o “deserto” que não obstante não tinha nada de deserto. No Brasil esse processo de extermínio não termina nunca.

Educação opressora vs Educação libertadora

Há um debate sobre a questão educacional visando despolitizar as escolas, ou melhor, os professores, o que é o mesmo que generalizar as escolas formadoras de robôs, gente sem capacidade de olhar crítica e criativamente a realidade o que é o mesmo que sem condição cidadã. Isso ficou claro na Cúpula Mundial de Arte e Cultura para a Paz, que reuniu gente de todo o continente e do Caribe. Perderam-se no dilema entre educação conservadora e educação renovadora e ganharam percebendo que a educação libertadora deve se impor sobre a educação opressora. É importante porque educação é que constrói a sociedade do presente e do futuro. Abdias do Nascimento e o Teatro Experimental do Negro foram pioneiros em agitar a cultura dos negros no seio da sociedade branca. 

Eles não tinham esse entendimento de que eles eram o povo brasileiro. Mas, sendo, ascender ao conhecimento (acadêmico) e às artes que eles produziam, assumiram um caráter mais libertário que de conciliação com a cultura burguesa como diziam seus críticos. Eles estavam construindo a cultura brasileira, continuando a obra dos quilombolas de sempre. Neste caso, dentro do próprio sistema. A desconstrução da cultura negra é permanente na chamada civilização ocidental e cristã. Não é coisa só de nazistas e fascistas não. Toda a historiografia europeia e nossa, seus herdeiros, é nesse sentido. Como um Egito negro, por exemplo, se transforma num Egito branco? A questão do racismo é latente em todo o processo histórico e sempre suscita muita polêmica. De um lado, os que afirmam que o assimilacionismo dissuadiu o negro da luta de classe. De outro lado, o isolacionismo também. A verdade é que o racismo serve para manter a estrutura social excludente. Como superar o racismo? Democracia racial só existirá com democracia social. Em outras palavras, só com socialismo. Como promover as mudanças necessárias para mudar o sistema? Não há outro caminho que o da luta pela libertação nacional, o que requer uma grande frente formada em torno a esses objetivos.

Nossa história é de guerra permanente

Diferente da imagem de que somos um povo pacífico, tudo aqui se fez com muita luta, muita sangueira. Todas as lutas libertárias exitosas, o foram pela participação das massas. Não obstante as massas, esse povo negro-indígena-branco, apesar de protagonizar as vitórias, pouco ou quase nada delas usufruíram. Triste sina deste povo! Ou, como dizia o velho Karl Marx, não basta tomar o poder, é preciso destruir a estrutura do estado burguês. 

Dizem que a diferença dos vizinhos a independência do Brasil foi pacífica, sem guerra. Será? Na realidade, no 7 de setembro de 1822, ela foi imposta por um grande acordão, um golpe, pois se houvesse guerra o desfecho poderia ser igual ao do Haiti. Esta que foi a primeira grande revolta quilombola vitoriosa, derrotou o exército francês e proclamou a independência, em 1804. A guerra pela independência do Brasil, na Bahia, começou com a resistência dos Aimorés (1555-1573), prosseguiu com a guerra dos Tupinambás (1617-1621) se estendeu até o 2 de julho de 1823, com a derrota das tropas portuguesas, tendo passado pela Revolta do Alfaiates (1798) e pela Revolução Liberal de 1821. Todas elas carregadas de conteúdo antiescravagista, libertário, o mesmo que independentista. 

O século XVIII foi o século das inconfidências. Esses movimentos contra a coroa portuguesa são os mais cultuados porque envolve brancos, brasileiros, mas brancos, embora a população das Minas Gerais fosse 99% negra. Elas começam em 1760 em Curvelo, passa por Mariana, Sabará, se fixa em Vila Rica, atual Ouro Preto. Eram pouco mais de uma centena de sublevados. Controlada a conjura, em 1792,  onze foram condenados à morte, porém, a pena só foi aplicada ao alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, os demais ao degredo perpétuo junto com mais seis, entre os quais o poeta Tomás Antônio Gonzaga. Dois condenados ao exílio de dez anos, um ás galés. 

Claudio Manoel da Costa foi suicidado no cárcere. Há que recordar que 200 anos depois, nos anos 1970, centenas de brasileiros que lutavam pela independência e soberania do país foram banidos, o mesmo que condenados ao degredo perpétuo. O principal líder desse movimento revolucionário que entusiasmou a juventude, Carlos Marighella, era negro, assassinado em 4 de novembro de 1969. Felizmente para alguns desses patriotas modernos houve anistia. A atualidade de Marighella está no objetivo estratégico de criar uma grande frente de libertação nacional.

Darcy RibeiroDarcy Ribeiro, autor de “O Povo Brasileiro”

A tortura fazia parte da prática escravagista e essa mentalidade permeou para a classe média. Ela só gritou contra a tortura quando foi pendurada no pau-de-arara. Direito era privilégio de classe e raça e também de gênero numa sociedade machista e escravagista. Mudou alguma coisa? Sobre isso, Darcy Ribeiro depois de descrever o martírio dos negros e indígenas escravizados vaticina que

“A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária”. (Do livro “O povo brasileiro”, editora Companhia das Letras,1995).

O Atlas da Violência publicado em 2016 registra 59.627 assassinatos no ano de 2014, a maioria (30 mil) de jovens entre 15 e 29 anos e, negros, claro. Esses números (apenas números para a mídia) se repetem todos os anos. Nas ações policiais a mortalidade de negros é pelo menos três vezes maior que a de brancos. Está sendo praticado um verdadeiro genocídio com a matança dos jovens negros e, de fato, isso é nada mais nada menos que a continuidade dessa guerra do Estado contra o povo que parece nunca acabar.

Frustrada a Revolução Liberal

Foi frustrada a real independência e a formação do estado burguês, que era o objetivo da Revolução Liberal. Em outras palavras, mantido o estado oligarca escravagista, a Bahia continuou sendo palco de memoráveis revoltas tendo como protagonista o povo, povo negro logicamente, como as já mencionadas ou a Guerra de Canudos (1896-1897), para falar das mais espetaculares pela violência das represálias. A Revolução Liberal, derrotada no Brasil, é outra história que precisa ser contada, com o resgate do pensamento dos próceres e dos heróis que tombaram. Inspirada, talvez, pela Revolução Liberal do Porto (Portugal 1820), teve sua máxima expressão na figura de José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838). Ficou na história como o “patriarca da independência”, de uma dependência que não era o que perseguia. O que perseguia o patriarca?

“Mas como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país (…) habitado por uma multidão imensa de escravos e brutais inimigos?” indaga. E sua busca por respostas era constante. “…o luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria”. A causa do fenômeno? “A escravidão, senhores, a escravidão”, esclareceu. É que no Brasil de então, “o nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido”, e responsável por “abusos antissociais”, “é o primeiro que se serve de escravos e os acumula para enriquecer (…) e para formar (…) das desgraçadas escravas um harém turco”. Destarte, “Senhores, quando me emprego nestas tristes considerações, quase que perco de todo as esperanças de ver o nosso Brasil um dia regenerado e feliz”.

Além de patriarca um profeta

São muitos os nossos heróis negros que se engajaram na luta abolicionista e pela independência, como o jangadeiro cearense Francisco José do Nascimento (1839-1914), ou o engenheiro baiano André Rebouças (1838-1898), ou o poeta catarinense Cruz e Souza (1861-1898). Joaquim Nabuco (1849-1910), republicano e liberal, foi outro grande subversivo da época. Ele chegou a propor o direito de voto para o negro liberto. Por escrever e pregar contra o “monopólio da terra” e preconizar uma Abolição com reforma agrária, foi tantas vezes acusado de “comunista” por seus contemporâneos como seriam também qualificados mais tarde João Goulart, Leonel Brizola. A frustração da Revolução Liberal deu no “liberalismo” à brasileira, que muitos chamam de neoliberalismo, mas que na realidade é o regime do latifúndio, incompatível com o capitalismo e que resultou nessa ditadura do capital financeiro que temos hoje.

O grande “pacificador” garante do estado oligárquico

A Balaiada, rebelião no Maranhão (1838-1841), pode ser tomada como um marco inicial que se estenderia por todo o país nos anos seguintes, tendo em São Paulo e Minas Gerais líderes como o padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843)  e Teófilo Ottoni (1807-1869), conduzindo revoltas que foram sufocadas pelo hoje patrono do Exército, o comandante Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), o Duque de Caxias, que ficou na história como o “Pacificador”, por ter “pacificado” todas as revoltas do povo brasileiro em sua época. A mais importante revolta liberal se deu no Rio Grande do Sul e ficou conhecida como a Revolução Farroupilha (Guerra dos Farrapos – 1835-1845), na realidade uma revolução liberal e republicana também “pacificada” pelo “duque de ferro” do Império. 

Em Santa Catarina, o quilombo coroou Manoel Congo rei tendo a seu lado a rainha Maria Crioula saquearam e ocuparam inúmeras fazendas até que por volta de 1838 foram “pacificados”. Manoel Congo foi executado com onze companheiros em 1839 e outros 40 trucidados no ano seguinte. Nessa mesma época, em Vassouras, no Rio de Janeiro, os fazendeiros criaram sua própria milícia para combater os quilombolas fora de controle. Não conseguiram, pediram socorro ao imperador que atendeu mandando para lá o grande “pacificador”. Ainda no Rio de Janeiro, ao longo do rio Paraíba e na serra, os quilombos surgiram as centenas, principalmente a partir de 1870 estimulados pelo movimento abolicionista. Curunkango foi rei e guia em Macaé, no norte do estado e foi trucidado por um batalhão do exército.

Abolição ou capitulação do Império?

Mais tarde, em São Paulo, o maior exportador na monocultura do café, dos mais importantes sustentáculos do Império, surge Antônio Bento (1843-1898)  e os Caifazes. A região de Campinas era a capital do escravagismo e também da rebelião dos negros. A ação dos Caifazes estimula a revolta dos negros e desorganiza a produção cafeeira. Vale lembrar nesse episódio a ação solidária dos ferroviários para com a luta dos negros. 

As ferrovias eram importantíssimas pois levavam o café para o porto de exportação. E nos tempos de revolta passaram a levar também os negros sublevados, foragidos. Isso em fins de século XIX fortalece o movimento liberal-republicano e põe em cheque o Império. Mais que a cabeça do imperador, era a ordem oligárquica e da senzala que estava sendo questionada. 

O 13 de Maio de 1888 foi a capitulação do Império diante dessa maré humana revolucionária impossível de conter. Nenhuma das concessões anteriores favoráveis ao movimento abolicionista foi por bondade divina do imperador. Todas (Lei Euzébio de Queiroz, 1850; Lei do Ventre Livre, 1871; Lei do  Sexagenário, 1885) foram resultado da luta incessante de negros, abolicionistas, liberais e republicanos, brancos e indígena-negro-branco. 

De novo, outra grande chance, prenhe de esperanças libertárias, é frustrada. A oligarquia se une, mobiliza o Exército “pacificador” e dá o golpe e instala a República do Café com Leite, que foi a manutenção do status quo. Durante o Império, a propriedade da terra era por posse ou por doação da Corte. Só a partir de 1850, com a Lei Vergueiro, ou Lei da Terra, à terra passa a ser um bem de valor para ser comprada ou vendida, mas sem alterar o regime de posse nas fronteiras agrícolas. Além disso, a Lei ignora os caipiras, os caiçaras, os quilombolas e os indígenas e obriga inclusive os imigrantes europeus que aqui chegam estimulados pelo imperador a comprar as terras. Isso criou uma cultura. A expansão da fronteira agrícola continua sendo feita pela expansão do latifúndio predador e não por uma exploração racional da terra.

A República que nasce de um golpe

A República que nasce de um golpe contra revolucionário, pois foi contra a Revolução Liberal Republicana, foi uma sucessão de estado de sítio. De 1900 a 2000, em 100 anos, nem sequer 20 anos de democracia o Brasil teve. A repressão permanente mantém a tranquilidade nas áreas de produção cafeeira. Mudou alguma coisa? Mudou só o cenário: no lugar do café, a cana, a soja, o pasto ou à terra arrasada pela exploração mineral. 

O início da república oligárquica coincide também com o início da crise do capitalismo que evolui para a grande quebra de 1922. Aí sim a cafeicultura se desorganiza de vez. Outra grande diáspora do campo para as cidades, desta vez não só da mão-de-obra dispensada mas também do capital dos barões do café. De novo cresce a maré libertária agitada pelos herdeiros dos ideais liberais. 

A Revolução de 30, a única, foi revolução porque destronou a oligarquia cafeeira e, principalmente, porque semeou escolas por todo o país. Boas escolas pensadas por Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Gustavo Capanema, tornaram possível o processo de industrialização do país e a manutenção de um ciclo de altos índices de desenvolvimento por mais de 50 anos. De fato, entre 1947 e 1980, sob o projeto trabalhista, o país cresceu em média 7,1% ao ano. Nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil estava se reinventando, construindo seu próprio caminho para o desenvolvimento com soberania e justiça social. 

O trabalhismo era o caminho escolhido. A oligarquia não suporta a perda de privilégios. Prefere a submissão à estratégia de expansão da hegemonia da grande potência da América do Norte. E o que talvez seja o pior de tudo: a servidão intelectual. Duas décadas sob a férula de uma guarda pretoriana seguidas de mais duas décadas de reconstrução do poder oligárquico, agora travestido de agente das corporações transnacionais e submisso aos interesses hegemônicos dos Estados Unidos. Na realidade meio século de retrocesso. A Universidade deixou de pensar o país e passou a formar quadros para servir à ditadura do capital financeiro. Como recuperar esse tempo perdido? De novo outra grande chance, prenhe de esperanças libertárias, foi  frustrada, com as eleições de 2002.

Como reverter essa lógica perversa?

Só com a destruição do Estado oligarca. Marx se referia ao Estado burguês, aqui é oligárquico. Há que unir às massas em torno de um projeto nacional. Há que repensar o país. Que país queremos? Que democracia queremos? A formação da Frente Ampla necessária, só tem sentido e só será realmente aglutinadora com uma proposta de libertação nacional. Só uma maré humana irresistível haverá de convencer os militares de que é preciso que eles se identifiquem com o povo e juntos construamos um novo país, soberano, justo e solidário, único caminho para o desenvolvimento social e econômico.

*Paulo Cannabrava Filho é jornalista e editor de Diálogos do Sul 

Nota: As citações sobre a negritude foram transcritas de artigos publicados na revista Carta No 13, de abril de 1994, editada por Darcy Ribeiro, publicada pelo Senado da República, dos seguintes autores: Darcy Ribeiro, Ser Negro; Abdias do Nascimento, Quilombismo; Fernando Figueira de Mello, Os Herdeiros de Zumbi; Alaor Eduardo Scisinio, O Quilombo de Manoel Congo [1]Vale registrar que Abdias e sua esposa, Elisa Larkin, participaram das reuniões de fundação de Diálogos do Sul e agora mesmo, oportuna e merecidamente, há uma ocupação no Espaço Cultural Itaú, na avenida Paulista, que resgata a vida e obra dessa grande figura do movimento de libertação.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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