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Perseguição e negligência sanitária: indígenas do Amazonas vão denunciar genocídio em fóruns internacionais

Em seminário, lideranças afirmam que denúncias de omissão, ameaças e assassinatos serão levadas a tribunais nacionais e mundiais
Wérica Lima
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

Ataque a comunidades indígenas e ribeirinhas no rio Abacaxis, ameaça à sobrevivência aos isolados da Terra Indígena Vale do Javari, omissão à saúde dos indígenas do contexto urbano. Esses são alguns exemplos das violações de direitos que lideranças do Amazonas querem levar para tribunais nacionais e internacionais. Para eles, está em curso uma política de Estado para o genocídio dos povos originários.

Pelo menos 11 casos de violação de direitos em terras e comunidades indígenas do Amazonas foram relatados no seminário “Violação dos Direitos e Genocídio no Amazonas”, promovido pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi) nos dias 29 e 30 de abril. O evento foi transmitido em formato de live. “Os depoimentos formam a base de um dossiê que será direcionado para medidas concretas, sobretudo aquelas tipificadas como crime de genocídio”, explicou um dos coordenadores da Famddi, o antropólogo Gersem Luciano, do povo Baniwa, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). As violações devem ser denunciadas e levadas aos tribunais.

Em seminário, lideranças afirmam que denúncias de omissão, ameaças e assassinatos serão levadas a tribunais nacionais e mundiais

Reprodução: Bruno Kelly/Amazônia Real
Aldeia Kanamari na TI Vale do Javari.

Gersem ressalta a importância de se pensar em um debate sociopolítico e, a partir dele, realizar denúncias, inclusive em cortes internacionais, para responsabilizar o Estado brasileiro por situações como a da morte do Aruká Juma por Covid-19, em fevereiro. Aruká foi o último homem do povo Juma e morreu por dificuldades de acesso a tratamento médico.

Por conta da gravidade dos relatos, a organização do seminário decidiu retirar os depoimentos do ar. Teme-se pela segurança dos indígenas após alguns demonstrarem preocupação e medo de possíveis ataques. Procurados pela Amazônia Real, alguns dos indígenas autorizaram que seus relatos e nomes fossem expostos nesta reportagem, com exceção da liderança do povo Maraguá, que vive em terras indígenas no município de Nova Olinda do Norte.

“Eles [Maraguá] estão sob pressão, e pediram que se a gente pudesse não deixar em aberto. É muito para resguardar a segurança de alguns que se manifestaram, não só pela gravidade, mas por perseguições que ocorrem e que estamos vivendo o tempo inteiro”, justificou o antropólogo Gersem Luciano. “Todos sabemos que existem lideranças indígenas sendo intimadas pela polícia, sendo criminalizadas pelas suas falas, e tem gente que inclusive está sendo presa por isso.”

Para Gersem, os cortes governamentais e a desestruturação de instituições como a Fundação Nacional do Índio (Funai) evidenciam uma maneira de “matar” políticas públicas de direitos indígenas. “Nós temos de fato um governo declaradamente desde sempre, desde antes da campanha, que se pudesse metralhar todos os indígenas faria”, disse Gersem Baniwa. Ele lembra que diversos programas, ações e conquistas ocorridas com muita luta nas últimas três décadas vêm sofrendo fortes retrocessos.

A operação no rio Abacaxis

Enterro de vítimas da chacina do rio Abacaxis, em Nova Olinda do Norte (Foto: CPT Nacional)

Uma das violações relatadas ocorreu na região do rio Abacaxis, em Nova Olinda do Norte (AM), com uma desastrosa operação policial que resultou na morte de dois indígenas Munduruku. Era julho de 2020, um mês que ficou marcado pelo terror para os Munduruku, da Terra Indígena Kwatá Laranjal, e os Maraguá, da aldeia Terra Preta, além de ribeirinhos. O secretário-executivo do Fundo de Promoção Social do governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, praticava pesca esportiva sem licença ambiental na região, quando foi baleado no ombro. Dias depois, como forma de represália, foram enviados ao local 50 homens da Polícia Militar.

“É muito duro falar nisso, porque nossa população está sentindo até agora. Quando nós deveríamos ter o apoio do estado, ele se volta contra a gente, contra os ribeirinhos”, desabafou um indígena local da etnia Maraguá, cujo nome não será revelado para preservar sua segurança.

Além dos conflitos com o próprio governo estadual, as comunidades em torno do rio Abacaxis enfrentam constantes ameaças de traficantes de drogas. O território, ainda não demarcado, é uma porteira aberta para madeireiros, grileiros e garimpeiros, que têm total liberdade para atuarem. O próprio Ministério Público Federal (MPF) recomendou às comunidades que não interfiram nas invasões. Sem poder pescar, fazer roçado ou caçar por medo de retaliações, os indígenas enfrentam os impactos socioeconômicos sem qualquer tipo de ajuda.

“Sofremos um impacto muito duro pelas mortes que foram causadas, pelas ameaças, torturas, pelo medo, pela fome, e hoje depois que eles saíram ficou a Covid que veio e impactou mais ainda as populações ribeirinhas e a indígena que ali reside no rio Abacaxis. Ficou o medo, a revolta e a gente está de mãos atadas pedindo socorro para que nos ajude, para que ajude essa população”, apelou o indígena Maraguá.

O procurador da República do MPF do Amazonas Fernando Merloto, que participou do seminário no dia 30, considera o caso de violação no rio Abacaxis uma “perplexidade”. Ele próprio já solicitou diversas vezes, sem êxito, o deslocamento de uma base móvel policial para proteção das comunidades.

“Houve essa promessa no ano passado. Fui surpreendido há menos de algumas semanas com um ofício negativo. A PF indicou que quem faça a proteção seja a Polícia Militar, que está sendo investigada por ter feito os massacres. É um caos”, afirmou.

Merloto é o único procurador especializado na 6ª Câmara responsável por atuar em defesa dos povos indígenas e tradicionais do Amazonas. Há cinco anos, ele solicita a ampliação da força de trabalho. Hoje há uma equipe composta por três pessoas no estado que abriga mais de 20% da população indígena do Brasil.

Indígenas isolados ameaçados

Maloca de índios isolados no Vale do Javari (Foto: Fabrício Amorim/Acervo CGIIRC/Funai)

Na Terra Indígena Vale do Javari, localizada no oeste do Amazonas no município de Atalaia do Norte, está o maior número de indígenas isolados do Brasil e do mundo. Constantemente ameaçada, ela tem sido palco de crimes ambientais.

Na Terra Indígena Vale do Javari, localizada no oeste do Amazonas no município de Atalaia do Norte, está o maior número de indígenas isolados do Brasil e do mundo. Constantemente ameaçada, ela tem sido palco de crimes ambientais.

As invasões de garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores que agem com liberdade no território foram denunciadas pela liderança Kora Kanamari, que comparou a situação de “extrema ameaça” ao período da ditadura militar, “quando  muitos povos foram dizimados ou sofreram drástica redução populacional”.  A liderança lembra que os invasores são encorajados pelo governo federal “assumidamente contrário aos direitos indígenas”.

No território, até mesmo etnias pequenas de recente contato como os Tson wük Dyapahcomposta por 46 pessoasforam infectadas por Covid-19. Na aldeia Massapê, um bebê Kanamari de 9 meses morreu por falta de atendimento médico após profissionais de saúde abandonarem polos-base mantidos pelo Distrito Sanitário de Saúde Indígena (Dsei).

“A situação é ainda mais crítica com a propagação da Covid-19 em todo o Vale do Javari e nas outras regiões do Brasil, o que pode provocar o genocídio dos parentes isolados. A situação é dramática para os demais povos isolados no Brasil, com a crescente invasão dos seus territórios não só no Vale do Javari, mas também nas terras indígenas Yanomami, Guajajara, Iturentatára, Uru-Eu-Wau-Wau, Gripicura e Ilha do bananal”, alertou Kora Kanamari.

Os indígenas de contexto urbano

Vanda Ortega Witoto no atendimento na unidade de Saúde  feita pela própria comunidade  do Parque das Tribos (Foto: Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real)

 

Na live, foi lembrada a difícil situação do bairro indígena Parque das Tribos, em Manaus. Durante a pandemia, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) negou atendimento para remoção, porque, no entendimento do funcionário, o paciente era indígena e deveria ser atendido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde. Esse exemplo foi relatado pela enfermeira Vanda Ortega, do povo Witoto, à frente de um hospital de campanha para pacientes com Covid-19 improvisado pela própria comunidade.

No caso do paciente, ele acabou ficando sem atendimento tanto por parte do Samu, que é da prefeitura de Manaus, quanto da Sesai. Este último órgão atende apenas a indígenas considerados ‘aldeados’, ou seja, que vivem em territórios demarcados.

“Isso é a negação. Há mais de 521 anos sofremos com essa negação da nossa identidade e, uma vez que é reproduzida pelo estado, ela contribui para a morte da nossa cultura, da nossa vida, das nossas línguas”, criticou Vanda. No seminário, Vanda Witoto contou que as ações de prevenção e cuidado partiram de cada uma das 53 comunidades indígenas que Manaus possui, sem médicos e assistência governamental. Em 14 de janeiro, a enfermeira foi a primeira amazonense a receber a vacina Coronavac contra Covid-19. Sua escolha foi simbólica, já que, como indígena de contexto urbano, ela não poderia ser vacinada no grupo prioritário. Por conta da grande visibilidade do ato, ela sofreu ataques racistas e misóginos nas redes sociais.

“Fui extremamente atacada nas redes sociais por muitos homens, e principalmente, um homem aqui na capital de Manaus, um jornalista que tem muitos privilégios de ter um canal de TV e rádio, fez uma montagem de minhas fotos com roupas do meu dia a dia questionando a minha identidade por estar na cidade, que eu era uma índia fake na cidade e não deveria ter sido vacinada”, lembrou a enfermeira.

Para Marcivana Paiva, do povo Sateré-Mawé, diretora da Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas de Manaus e do Entorno (Copime), não são os indígenas que estão indo para a cidade, mas são as cidades que estão chegando às aldeias. “Nós somos indígenas e estamos exatamente no nosso território porque se a nossa identidade está ligada diretamente ao território e eu fortaleço esse discurso de governo, nego a minha filha por exemplo que nasce na cidade de Manaus.”

Marcivana denunciou ainda a falta do hospital de campanha para indígenas aldeados e da cidade, uma promessa amplamente divulgada pelo governo estadual, no ano passado. “E pasmem, nenhum indígena daqui da cidade de Manaus conseguiu ultrapassar a porta de entrada que dava acesso à ala indígena, então por que se fez uma propaganda?”

A coordenadora da Copime relembrou que a luta por acesso à vacinação antecede a própria pandemia. Para que os indígenas que vivem nas cidades tivessem acesso às campanhas de imunização, era preciso que eles se adequassem a critérios de idade ou comorbidade. Outro problema foram as transferências de pacientes para Manaus, já que nenhum município do interior do Amazonas possui UTI e muito menos atendimento médico voltado aos indígenas.

“É revoltante e nos deixa indignado, pois é um direito humano que temos que ficar brigando. Lideranças precisaram entrar com ação judicial via MPF para serem transferidos das suas bases até Manaus para ter atendimento a saúde”, desabafou Marcivana.

A negligência sanitária

Jesem Orellana durante  o seminário (Reprodução do Youtube)

O infectologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, foi uma das primeiras vozes da ciência a alertar sobre as ameaças da flexibilização e do lockdown mal feito em Manaus. Também considerou as medidas adotadas pelo governo federal como “omissão” que contribuíram para a disseminação viral nas aldeias. No seminário, ele exemplificou essa omissão com a distribuição de cloroquina e ivermectina para indígenas de Roraima, além do discurso sobre “imunidade de rebanho”. Bastante disseminada, essa tese defendia que quanto maior o número de infectados, mais rápido seria o fim da pandemia.

“Ministérios Públicos e Defensorias começam a se mobilizar agora, porque está nítida e evidente a ampla negligência sanitária e provavelmente uma propagação proposital da epidemia que conduza tanto populações indígenas e não indígenas a uma falsa noção de imunidade de rebanho”, afirmou Orellana.

Esse tipo de comunicação acabou por influenciar negativamente, segundo Orellana, não apenas indígenas, mas também lideranças religiosas que disseminam fake news. A desinformação com relação a uma suposta ineficácia da vacina fez com que muitos indígenas recusassem a vacina.

Autoridades contribuíram com a proliferação de fake news. “Até mesmo defendendo o tratamento ineficaz e precoce durante a doença, com drogas que sabemos que não funcionam na covid-19 como a cloroquina ou ivermectina”, explicou Orellana.

O último boletim de monitoramento  de casos por Covid-19 da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), publicado em 3 de maio, aponta que 918 indígenas morreram nos nove estados da Amazônia brasileira. Orellana critica os números governamentais e a falta de dados concretos sobre a vacinação.

“Embora tenhamos uma parcela significativa das populações indígenas vacinadas, não temos clareza de quantos já têm a segunda dose. Não temos nenhum indicativo da Secretaria de Saúde Indígena falando sobre um possível levantamento em relação à efetividade da vacinação em área indígena”, acrescentou Orellana. “É uma negligência total, os números são amplamente defasados.”

“Segmentos inferiores”

Deborah Duprat durante o seminário (Reprodução YouTube)

Para a procuradora da República Deborah Duprat, o “governo Bolsonaro, discursivamente, trata os povos indígenas como segmentos inferiores e defende a sua evolução mediante a integração a sua cultura”. Duprat contextualizou o genocídio indígena a partir de frases proferidas pelo presidente da República, como: “Com toda certeza o índio mudou, tá evoluindo, cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”.

“Isso é o discurso do Bolsonaro, mas ele não ficou apenas na retórica. O primeiro ato do seu governo, que é a medida provisória 870, produz uma desorganização total na estrutura estatal responsável pela demarcação de terras indígenas. O (ex-ministro da Justiça) Sérgio Moro devolveu para a Funai todos os processos que se encontravam na sua pasta para expedição de portaria declaratória ou decreto de homologação, ou seja, dá um passo atrás ao processo”, explicou.

Para argumentar, a procuradora falou sobre a violação da convenção 169 sobre o direito dos povos terem suas identidades preservadas dentro dos estados onde moram. Outra Lei é a 2189, de 1956, incorporada na Constituição de 1988, que trata do crime de submeter intencionalmente grupo de indígenas a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física, total ou parcial.

“Foi preciso que a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) ingressasse com a ADPF 709 no Supremo Tribunal Federal para o enfrentamento da covid nos territórios indígenas, porque àquela altura os territórios já estavam absolutamente fragilizados pela imensa invasão estimulada pelo próprio Bolsonaro, pelos gestores como o ministro do Meio Ambiente (Ricardo Salles) e o presidente da Funai (Marcelo Augusto Xavier da Silva)”, contextualizou a procuradora Deborah Duprat.

“Há uma necessidade de posturas jurídicas internacionais para que a gente possa debater essa significação e sugerir responsabilidade com relação a esses sujeitos. É um compromisso histórico que é preciso ter para enfrentar não só a questão do genocídio, mas a questão ilógica de um debate que eu entendo que é um debate genocida”, acrescentou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Amazonas, Caupolican Padilha.

Com invasões e sem ajuda

Queimada no entorno da BR-319 no território Apurinã. (Foto: David Tesinsky/Greenpeace)

O pesquisador Lucas Ferrante, que tem acompanhado a situação dos povos Apurinã e Mura, contou na live que em uma aldeia Apurinã, na área de influência da BR-319 (Manaus-Porto Velho), há vários casos de invasões de terras, com aberturas de ramais já com perspectiva de pavimentação da rodovia.

Já os Mura, segundo ele, relatam invasões em seu território que impedem acesso a áreas de onde eles tiram seu sustento econômico. Lucas contou que os indígenas Mura estimam uma perda de R$ 400 mil dentro da receita anual obtida com a coleta de castanha, de carne de caça e de coleta de copaíba com as invasões ao seu território. 

“É muito grave porque a comunidade depende muito desse recurso financeiro e não está podendo mais acessar essa área de uso tradicional. O governo federal tem se recusado a fazer a consulta aos povos indígenas nesses dois territórios”, contou Ferrante.

Em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, indígenas foram submetidos a situações desumanas para conseguir os benefícios, como os auxílios emergenciais e o Bolsa-Família. Muitos deslocaram-se das aldeias até a cidade, aguardando atendimento em longas filas e dormindo na rua. O procurador queria evitar os deslocamentos dos povos até os municípios.

“Um dos pedidos muito simples foi que se possibilitasse o acesso remoto a esses benefícios nas aldeias e comunidades quilombolas”, lembrou o procurador da República Fernando Merloto. “Teve decisão favorável em primeira instância do Tribunal de Brasília, mas até agora nada. Já pedimos multa, já foi dado multa às instituições, pedimos multa pessoal para o ministro da Cidadania, para o presidente da Caixa Econômica Federal e INSS e até agora nada.”

Participantes no encerramento do seminário (Reprodução YouTube)

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