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Gustavo Espinoza M.*
Dizem que William Shakespeare escreveu cada uma de suas obras com a ideia de que simbolizassem algo específico. Assim, o drama de Romeo e Julieta passou à história como a expressão do amor mais puro e inocente. Otelo, como a personificação dos ciúmes; Ricardo III, como significação do Poder; Hamlet como o sentido da dúvida.
Se o Cisne de Avon vivesse em nosso tempo e se ocupasse do processo peruano, bem poderia escrever ou um drama ou uma comédia referente à confusão, esse estranho fenômeno que ocorre quando se somam uns equívocos com outros e aflora, como consequência de tudo isso, um cenário contraditório e quase inexplicável.
É isso que se poderia dizer tomando em conta os mais recentes acontecimentos ocorridos no país. A renúncia do Gabinete Villanueva e a composição de uma nova equipe de governo liderada pelo ministro Cornejo; as repercussões no Peru da crise venezuelana e a posição da Esquerda; a “vaga presidencial” demandada pelo fujimorismo; e as mobilizações sociais marcadas pela Greve de Cusco e a marcha sobre Lima do dia 27 de fevereiro; são símbolos de uma confusão que sufoca o processo peruano e que não permite que cada quem ocupe o posto que realmente lhe corresponde no cenário social.
Essa confissão faz com que a direita assuma posições radicais, e que a esquerda termine identificada com interesses contrários a seus propósitos; e que o governo faça o que a oposição quer; enquanto que esta divaga sem rumo formulando propostas desmedidas e arbitrárias. Recordemos cada coisa procurando coloca-las em uma certa ordem.
Autoajuda dos ministros
Primeiro foi a iniciativa do Conselho de Ministros, graças a qual os titulares das pastas resolveram duplicar seus salários. Eles mesmos chegaram à conclusão de que estavam “mal pagos” ganhando quinze mil soles (quase seis mil dólares) e optaram por elevar o salario para 30 mil soles.
Anteriormente, – com Fujimori – os ministros tinham desfrutado dessa mesma remuneração, que foi derrogada nos anos de García para encobrir um fato carismático: o presidente tinham conseguido que “devolvesses” o recebido por quase três milhões de soles. Para que isso não explodisse, o chefe de Estado dispôs “austeridade”: em todos os níveis de sua gestão, menos no seu.
Os fujimoristas, que hoje lançam raios e trovões contra o incremento dos benefícios dos titulares não puderam negar que em seus tempos era assim, mas arguiram que seus ministros “sim, o mereciam”, porque eram “capazes e eficientes”, enquanto que os atuais são “torpes e ociosos”. Em outras palavras, o salario deve ser ganho de acordo com a qualidade do trabalho. E deve ser definido por um mandatário que faz o que quer e que, inclusive, tortura e enclaustra sua mulher quando esta lhe sugere algo.
Depois do insólito aumento, veio o tema do pressuposto “reajuste” do Salário Mínimo que nunca se promulgou mas que apenas foi pensado em algumas esferas do poder.
Como segundo o titular de Economia, uma espécie de vice-rei do Banco Mundial, este era um tema que sequer se deveria pensar, a maçã caiu ao solo e o primeiro ministro, Cesar Villanueva –em louvável arrojo de dignidade- viu-se obrigado a renunciar de suas funções.
O novo Gabinete –René Cornejo no comando- é, ao que prece, uma “equipe de consenso”. Quer dizer, de consenso entre o titular do MEF, a presidenta do partido do Governo e do chefe de Estado. Ocorre no entanto, e isso é importante no caso, que a presidenta do partido do Governo é nada menos que a esposa do chefe de Estado, ou seja, a senhora Nadie Heredia de Humala.
A “grande imprensa” e alguns analistas “de esquerda e de direita” elevaram suas vozes aos céus criticando a participação da senhora Heredia nas decisões do governo. Porém, o assunto tem seus bemóis. Se o presidente do Partido Nacionalista fosse outra pessoa e tivesse alguma relação com o tema, ninguém teria protestado. O alvoroço no hospício se explica –de acordo com os especialistas- porque os peruanos são “machistas”, e não estamos dispostos a aceitar facilmente que uma mulher decida quem serão ministros… E menos ainda se essa mulher é a esposa do presidente. Acreditam no que se acreditava em Ilhéus nos anos 1920 do século passado, que nos relata Jorge Amado: “o lar é a fortaleza da mulher virtuosa”.
Se o tema da “concentração dos meios” tinha sido o leit motiv para numerosos artigos em La República atacando o “El Komercio”, esta vez a concentração se armou contra Nadine Heredia como se fosse a depositária de todas as debilidades do atual regime, e inimiga de seus escassos acertos.
Essa curiosa “concentração de meios”, contudo, teve outro alvo preferido: ocorreu em torno da crise da Venezuela, a partir da ofensiva sediciosa do fascismo que aqui é aplaudido com as duas mãos pela reação unida. Do rei ao pajem se uniram outra vez.
A “grande imprensa” entende que sua tarefa é preservar os interesses da classe dominante em todas as partes. E por isso denigra e calunia o processo bolivariano distorcendo tudo o que ocorre. Se empenha em qualificar de ditador o presidente constitucional do país; assegura que ganhou as últimas eleições “com fraude”, como se com fraude pudessem os chavistas ganhar 19 das 20 consultas eleitorais nos últimos 15 anos.
E se atribui ao presidente Maduro todas as mortes ocorridas, sem admitir que vários desses mortos eram ativistas bolivarianos assassinados pelos grupos de choque e os esquadrões fascistas que são inocultáveis, e que aparecem inclusive nas televisões lançando explosivos ou colocando bombas em diferentes lugares.
A Frente Ampla
A posição da Frente Ampla diante dos fatos na Venezuela despertou a ira em certos meios. Dizem que querem “uma esquerda moderna”, “madura”, “inteligente”. Na verdade o que querem é uma esquerda que esteja contra a Venezuela, que ataque a Cuba, que se oponha a Evo Morales e seu modelo multicultural; que se distancie de Correa e sua Revolução Cidadã; que critique a Daniel Ortega e ao rumo sandinista da Nicarágua; que toma armas contra Cristina Kirchner, Dilma Rousseff ou até mesmo Michelle Bachelet caso diga ou faça algo diferente de Piñera.
De existir, essa “esquerda” não poderia tomar como exemplo a Tupac Amaru, proclamar-se seguidora de José Olaya (prócer da independência). Tampouco inspirar-se em San Martín ou Bolívar. Nem tampouco identificar-se com José Carlos Mariátegui ou Javier Heraud (poeta revolucionário). Teria de morrer como esquerda e nascer outra vez como espectro para glorificar o neoliberalismo e o império, como na realidade fazem os “grandes meios” e os politiqueiros de fancaria que os representam.
Que neste cenário tão confuso apareça o congressista Héctor Becerril propondo a “destituição” do presidente Humala não é um ex abrupto. Responde à lógica da reação. Na realidade, esse pedido tem a mesma essência daquele formulado contra Zelaya em Honduras e Lugo no Paraguai. Ou seja, o mesmo bafo golpista com que tanto aspira a reação empenha em destruir com o pouquíssimo que se avançou, porque teme que periguem seus privilégios.
A proposta de Becerril não é nem o mugido de um bezerro nem uma “manobra” para encobrir “o caso Gagó” (deputado fujimorista Júlio Gagó indiciado por corrupção); tampouco sequela de uma exigência “de um desbocado extremista”. Está inscrita na cartilha do Império para ruiu com todos os processos de avanço em nosso continente mesmo que sejam precários, frágeis ou inconsistentes.
Precisamente por isso, tanto o governo como a esquerda deveriam meditar com seriedade sobre o que está ocorrendo. E buscar um caminho que detenha o passo ao fascismo em ascensão, que não é outro que o “fuji-aprismo” convertido em ameaça contra o povo. Caso triunfe, a esquerda peruana, a verdadeira, veria o que realmente é um governo reacionário e pró-imperialista.
As manifestações populares como as de Cusco em fins de fevereiro e os atos de massa ocorridos em Arequipa, Cajamarca, Anchash ou Lima, deveriam ter sido conduzidos como expressões de luta para bloquear a ascensão das forças mais reacionárias e afirmar um caminho próprio, independente e de massas que abra perspectiva para a transformação nacional em busca de um destino melhor. A confusão reinante deve dar lugar à clareza de objetivos e propostas e, na batalha que se trava, cada qual deve ocupar, sem equívocos,, o lugar que lhe corresponde.
*Colaborador de Diálogos do Sul