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<<Araken Vaz Galvão>>
Entusiasmado por livros e leituras, falava com ênfase da literatura fantástica (mágica ou maravilhosa) hispano-americana do século XX, quando ouvi uma pergunta – bem típica de um mundo cheio de imagem do tipo internet e outros meios eletrônicos – sobre a utilidade prática do livro, formada dessa forma: Por que estudar letras?
Aqui vai minha resposta, a qual uso como introdução ao meu livro: “Araken Vaz Galvão – Ensaios ou quase”. Vejam bem que não é “Ensaios ou quase – Araken Vaz Galvão”; mas “Araken Vaz Galvão – Ensaios ou quase”. Ou seja, o nome do autor fez parte do título.
Sempre me perguntei por que as pessoas estudam letras. E essa minha indagação faz-se mais insistente porque vejo proliferar o número de cursos de literatura, enquanto o número de leitores cresce apenas vegetativamente, quando cresce…
Por que, então, se estuda letras?
Esse instigante enigma levou-me a aventar a hipótese de que há algo de muito errado na elaboração da grade curricular dos cursos de letras em nosso país. Formam-se jovens professores que deverão ensinar a outros mais jovens, os quais, por suas respectivas vezes, irão ensinar a outros, e assim sucessivamente, apenas teoria literária.
Em outras palavras, formam-se professores para ensinar literatura, e não professores para ensinar os alunos a gostar de ler.
Aí está a chave do problema.
Ensinar a um jovem que a literatura clássica possui tal estrutura, que a barroca possui outra; que Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, entre outras mudanças, significou, ao usar alguns elementos da literatura medieval de cavalaria, uma ruptura com aquele modo de escrever. Ensinar qual o papel, para a literatura do ocidente, dos autores franceses, como Gustave Flaubert, Stendhal, Honoré de Balzac. Ou falar da importância dos russos, como Leon Tolstói, Fiodor Dostoiévski, Ivan Turguêniev, por exemplo. Que a moderna caracteriza-se por tal particular, que o real maravilhoso, de Carpentier, por exemplo, tem suas raízes na Grécia antiga, e possui particularidades não encontradas no realismo mágico de Borges ou Astúrias ou ainda no de Felisberto Hernandez, por exemplo. Que o termo realismo fantástico é uma infeliz invenção da imprensa, devido ao chamado boom provocado por García Márquez e outros fenômenos hispano-americanos. Já que há uma vertente de literatura do século XIX com uma nomenclatura similar.
Nesse cipoal, há uma terrível lacuna para se explicar o porquê de não ter proliferado no Brasil nada que possa ser englobado como real maravilhoso, realismo mágico ou mesmo o não aceito realismo fantástico, no caso, do século XX.
Pergunto-me de que serve o jovem formando saber que salvo pelas pouco conhecidas presenças de um Murilo Rubião, de um J. J. Veiga, de um José Cândido de Carvalho, nenhuma dessas escolas proliferou entre nós. Isso, claro, sem esquecer outras contribuições esparsas, como a de Machado de Assis, de Graciliano Ramos e outros raros autores nacionais – inclusive o autor dessas linhas – nada no Brasil pode ser enquadrado, a rigor, seja como realismo mágico, real maravilhoso ou mesmo realismo fantástico.
Mas, se o papel do formando em letras fosse ensinar aos seus futuros alunos a gostar de ler(1), seria preciso que ele próprio fosse um leitor fanático. Porém isso nem sempre ocorre.
Se perguntarmos a maioria dos alunos de letras quantos livros eles leem por ano, excluídos os livros obrigatórios segundo o programa, os que são lidos apenas em resumo, os que são lidos segundo o sistema de engodo da Internet(2), e os livros que supostamente são lidos em grupos – em que cada turma lê uma parte –, aqueles livros que o aluno paga para alguém – outros alunos mais informados e até aos professores – para fazer um trabalho dando a impressão que foi ele quem leu, a resposta será, por certo, surpreendente. Surpreendente e decepcionante.
Os dicionários, entre outras definições, dizem que letra vem do latim littera, e significa cada um dos sinais gráficos elementares com que se representam os vocábulos na língua escrita. Expressa no plural, letras, significa ainda o conhecimento adquirido através do estudo, sendo, dessa forma, o mesmo que saber. Por isso ouvimos dizer, por exemplo: homem de poucas letras. Se tem poucas letras, é um homem de pouca escolaridade e, conseqüentemente, de pouco saber.
Por outro lado, sendo sinais gráficos, são, por certo, signos gráficos, podendo nos sugerir – e quase sempre sugere – que a representação caprichosa desses signos consiga nos relevar algo de mágico, algo de fantástico, algo de maravilhoso.
Esse é o encanto da literatura, sua misteriosa magia. E esse encanto mágico pode muito bem dispensar classificações e outras dissecações. A literatura pode se realizar sendo apenas assimilada pelos poros da emoção, pelas sutis cavidades da sensibilidade. E esse caminho só precisa ser percorrido se o estudante, futuro professor, antes de aprender a ensinar o que é literatura, aprenda a senti-la. Em outras palavras, aprenda a gostar de ler, penetrar em seus meandros misteriosos, hipnotizar-se com sua magia, e embalar-se em seus sonhos.
Se o aluno não for capaz – em primeiro lugar – de sentir o ciúme de Paulo Honório, de São Bernardo; não conseguir se envenenar com as dúvidas de Bentinho, de Dom Casmurro; se não mensurar a extensão da frustração do amor de Riobaldo, de Grande Sertão – Veredas, e descobrir porque “viver é muito perigoso”; não sentir o ridículo do capitão Vitorino, de Fogo Morto; não se excitar com o erotismo das heroínas de Jorge Amado; não sentir a solidão da Ana Terra, de O Tempo e o Vento(3), por exemplo – e para ficar apenas com algumas obras de autores brasileiros –, de nada adiantará estudar todas as teorias literárias, as mais modernas, as mais antigas, as de vanguarda, as de quaisquer tipos. De nada adiantará porque literatura não é feita de técnica literária – a teoria apenas nos mostra o que o artista da palavra inventou (muitas vezes até sem saber), para externar seu talento –, mas de emoção.
Literatura é feita da mais pura emoção que o ser humano pode sentir…
Tenho dito.
Valença, BA, Brasil
Obs.: Se para um intelectual de peso, residente em uma das nossas grandes cidades, já é difícil acompanhar tudo (ou quase) de bom que aparece na literatura brasileira, ou seja, saber quais os bons novos autores que surgem, quais as grandes promessas, sem esquecer que o espaço para os novos nas editoras de porte é praticamente nulo; e ainda, se considerarmos que muita obra de valor é editada em tiragem reduzida, na maioria dos casos financiada pelo próprio autor e seus amigos ou – quando o autor tem sorte! – por conseguir uma edição com apoio das Secretarias de Cultura dos Estados, fica fácil se compreender que este trabalho (realizado por quem mora em uma pequena cidade do interior da Bahia) não tem – nem poderia ter – a pretensão de esgotar o tema (como já foi dito e redito), nem, tampouco, de citar todos os nomes já revelados ou em revelação, entre nós, que se dedicam à literatura fantástica, seja ela na forma do realismo fantástico, popularmente dito, seja na sua variante mágica ou maravilhosa.
Por isso, que fique dito e reconhecido que as lacunas por ventura nele contidas, mesmo se constituídas em uma injustiça, não possui motivações excludentes, sendo apenas fruto de falta de informação do seu autor ou, simplesmente, de sua pouca cultura…
Por outro lado, durante a ditadura alguns autores(4) fizeram incursões a meio caminho entre a fábula moderna e a parábola com claras intenções de criticar os assassinos militares que tinham se apossado do poder em nosso país. Alguns foram felizes em seus propósitos, outros nem tanto. Não seria justo deixar de registrar, de uma forma ou de outra, esses esforços, sem entrar no mérito sobre o valor literário desses trabalhos.
(1) Afinal Tzvetan Todorov, que entende do assunto, disse: “Literatura não é teoria, é paixão”. E disse mais: “Quando lemos, nos tornamos antes de qualquer coisa especialistas em vida. Adquirimos uma riqueza que não está apenas no acesso às idéias, mas também no conhecimento do ser humano em toda a sua diversidade”.
(2) Esse sistema está a criar uma nova anomalia nos métodos de ensino: os professores (os preguiçosos, pelo menos), aqueles que estudaram para “ensinar literatura”, aceitam esse meio superficial (moderno!) porque não exige deles nenhum esforço. O professor não se esforçando, os alunos também se acham no direito de não se esforçarem. Recorrem, então, ao pseudo-conhecimento da Internet. E a burrice fica por conta da suposta modernidade…
(3) Obras de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, José Lins do Rego e Érico Veríssimo, respectivamente.
(4) Enquadrar-se-iam nesse esforço, entre outros, Érico Veríssimo, como “O Prisioneiro” e “O Incidente de Antares”; Josué Guimarães, como “Os Tambores Silenciosos” e Chico Buarque de Holanda, com a “Fazenda Modelo”, entre outros raros exemplos.