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Por que o Papa Francisco está na mira da ultradireita emergente e da Cúria Romana?

Francisco é uma ameaça à ascensão ideológica e política de projetos conservadores ultraliberais e fundamentalistas
João Décio Passos
Teoria e Debate
São Paulo (SP)

Tradução:

Quem é contra o papa Francisco? Os grupos católicos tradicionalistas assumem uma oposição explícita, como sempre fizeram desde o Vaticano II. Os sujeitos eclesiais integrados (o clero de modo geral) responderão que são fiéis e estão em comunhão com o papa, como sempre respondem oficialmente.

Católicos adeptos das reformas permanentes da Igreja responderão que são a favor de Francisco e aplaudem suas reformas. A sociedade, de modo geral olha, como espectadora e tende a ver com simpatia as posturas reformadoras do papa. A grande mídia se delicia com as quebras de protocolos e as declarações de oposição dos clérigos. Porém, para além dessas regularidades sociológicas internas e externas à Igreja, tem emergido uma nova frente de oposição ao papa dentro e fora da Igreja.

Pode-se, de fato, verificar uma antipatia política mundializada em relação ao pontífice latino-americano, bem como estratégias que o desqualificam perante a opinião pública, como politicamente ingênuo e irresponsável (por suas críticas ao capitalismo), como imoral (conivência com certos escândalos socialmente condenáveis) e herético (por seus ensinamentos morais). São antipatias e estratégias internas e externas à Igreja que se encontram, numa última análise, numa confluência econômica que constrói uma nova direita política: Francisco tem sido visto como ameaça a interesses de grupos econômicos que sempre mantiveram seus tentáculos no pequeno Estado do qual é chefe, mas também posicionar-se contra os interesses do capital improdutivo que domina o planeta.

Francisco é uma ameaça à ascensão ideológica e política de projetos conservadores ultraliberais e fundamentalistas

Foto: Tania Rego / ABr
Francisco não arreda o pé, avança com suas pautas e continua surpreendendo com suas posturas e discursos

A variável política chamada Francisco

Como sempre ocorreu na história do Ocidente, o papado esteve vinculado diretamente às geopolíticas que se configuravam nessa parte do globo, da defesa dos interesses dos territórios pontifícios à defesa da hegemonia de seu poder político perante os reinos antigos e perante os Estados modernos. Ainda que seja esse um capítulo da diplomacia do Estado do Vaticano, figura que se mistura de modo teologicamente confuso com a Igreja, embora de modo natural com as relações internacionais, as relações dos pontífices romanos com as conjunturas políticas modernas – e, evidentemente, com as conjunturas e modelos econômicos – têm seguido uma regularidade inquestionável: a política das boas relações, a postura de Estado neutro e o discurso conciliador com os poderes estabelecidos e, muitas vezes, com os poderes dominantes. E uma aparente postura para além da esquerda e da direita costuma sustentar não somente os discursos diplomáticos dos representantes do minúsculo Estado, como também condicionar os ensinamentos do magistério papal.

Mesmo quando, desde a Rerum Novarum de Leão XIII (1891), a crítica aos regimes econômicos tenha se tornado regular na sequência das encíclicas sociais, o tom predominantemente moral dos discursos nem sempre deixou transparecer as opções políticas subjacentes; de fato, com rara habilidade, essas críticas souberam conciliar uma crítica dos efeitos dos sistemas econômicos com a relação efetiva do estado pontifício com as nações e poderes políticos. Esse tópico mereceria um exame detalhado. De fato, a diplomacia vaticana, não somente dificulta uma postura profética da Igreja como também expressa uma persistente ambiguidade: em nome da diplomacia se evita, muitas vezes, um posicionamento ético-político definido que termine por exigir um posicionamento dos papas no exercício de seus magistérios. É precisamente nesse exercício que tem persistido até bem pouco a ginástica discursiva que evita o confronto direto e, evidentemente, o posicionamento político que desemboca nas opções tipificadas de “esquerda” e “direita”. A esse respeito há que frisar uma evidente exceção no posicionamento político explícito e militante de João Paulo II em relação ao regime socialista, de modo direto na área de domínio da antiga União Soviética. Não obstante, seu magistério social politicamente equilibrado, não ocultou suas convicções, opções e estratégias contrárias ao regime socialista, o que muitas vezes se traduziu em boas relações com os líderes do capitalismo ocidental.

Esse quadro de regularidade diplomática quase sempre determinante da regularidade teológica e pastoral dos ensinamentos papais tem se modificado nos últimos tempos. O papa Francisco tem se posicionado, de fato, como nova variável na conjuntura político-econômica mundial. Ao que parece inverte o método de atuação: quando a postura pastoral é que passa a direcionar a diplomacia e não o contrário. Para além do “modus” operandi regular dos bispos de Roma, o atual tem se mostrado original e perigoso para os projetos de uma frente política emergente no planeta. O que tem ocorrido nesse papado que se pode falar em irritação e, até mesmo, em estratégia da direita política mundializada em relação ao Papa Francisco? Será ele mais político que os papas anteriores? E para ficar mais complexa a questão: qual a relação das reformas franciscanas em curso com a conjuntura política mundial, retomada pela direita política?

Parece claro que o Estado do Vaticano com suas políticas internacionais não explicam o fenômeno atual que se torna cada dia mais público: Francisco constitui uma ameaça à ascensão ideológica e política de projetos conservadores, em suas expressões geopolíticas locais nos dois lados do Atlântico e nos dois hemisférios do globo. Não se trata, evidentemente, de um confronto político direto, mas de um confronto ético de dois modos de ver o ser humano e as estruturas históricas colocadas a seu serviço. Francisco está na mira dos donos do poder econômico com suas frentes políticas espalhadas pelo mundo. Trata-se de um expoente político mundial ameaçador dos valores ultraliberais defendidos pela direita emergente que almeja salvar o Ocidente da crise final e estabilizar o capitalismo financeiro como a única saída para a história.

As reações da direita política mundializada ao papa Francisco devem ser olhada em uma dupla direção: uma interna que revela um tradicionalismo católico renitente, crescente e atuante, e uma externa que se articula com a interna de forma inédita para o ethos católico da comunhão e da fidelidade ao papa que vigorou até recentemente. Trata-se, portanto, de uma afinidade conservadora que se dá entre tradicionalismo religioso e tradicionalismo político, ainda que, em princípio, essas posturas tenham origens geopolíticas distintas e publicamente professe credos diferentes. A composição é, em princípio, estranha, mas se encaixa na lógica da chamada nova direita, mistura de “ideais do conservadorismo, do libertarianismo e do reacionarismo” com ingredientes de “eugenismo” e “segregação racial” (Carapanã, 2018, p. 34). O ingrediente católico conservador não somente cimenta esses ideais intolerantes como se mostra necessário para a construção de bases políticas da consolidação da direita na Europa. O resgate do catolicismo conservador enfrenta simbolicamente o catolicismo progressista capitaneado pelo papa Francisco e oferece os fundamentos religiosos para a nova direita.

Vale lembrar que essa confluência política não explica a totalidade das motivações que regem as oposições internas ao papa Francisco. Outras variáveis próprias da endogenia católica e curial romana existem, mas não serão aqui abordadas, como os casos da carreira eclesiástica e do lobby gay (Martel, 2019). O fato é que nenhum grupo social ou político pode apresentar-se como isolado do sistema-mundo atual em que se encontra inserido. A autonomia relativa dos subgrupos em relação a esse sistema não significa neutralidade, mas, ao contrário, que existem conexões necessárias a serem examinadas. A Igreja católica, além de um complexo grupo religioso, está vinculada a um estado, o que a faz peculiar nas tramas politicas do mundo globalizado. O papa Francisco instaurou uma variável política nova no cenário global por seu viés pastoral nitidamente posicionado em favor dos excluídos e crítico aos rumos do capitalismo atual.

A frente tradicionalista católica

O tradicionalismo católico é visível a olho nu e vem adquirindo contornos inéditos, assim como as configurações da direita. Ele tem nomes variados, se organiza em grupos igualmente variados e atua em algumas frentes comuns. Contudo, sua dinâmica é complexa: as tendências são organizadas e também dissolvidas pelo corpo eclesial, são nominais e anônimas, são militantes explícitos e disfarçados de fiéis ao papa. O próprio Francisco detectou essas diferentes formas de oposição às suas reformas no seu pronunciamento à Cúria Romana em 22/12/2016 (Passos, 2018, p. 69-71). Com efeito, é possível detectar causas comuns que perfilam essa frente tradicionalista como a luta intransigente contra o aborto, a negação do ecumenismo, a crítica à chamada “ideologia de gênero”, a afirmação do comunismo como grande inimigo da fé católica e, por conseguinte, de toda crítica ao capitalismo, a negação da pluralidade teológica, a defesa da moral objetiva e afirmação de uma estética litúrgica de moldes tridentinos. Possuem, portanto, como traço comum uma visão eclesiocêntrica, uma postura exclusivista do cristianismo e a intolerância às pluralidades modernas. Entendem a tradição como repetição de uma verdade de fé eterna, a doutrina como um sistema de ideias fechado e imutável, a moral como expressão da lei natural, a vivência eclesial como obediência à lei/autoridade e a mística como negação do mundo.

Mas não se trata de um grupo social que, por se constituir de modo autorreferenciado, possa explicar-se por sua lógica interna, sem relações com a sociedade atual. Ao contrário, eles estão diretamente afinados com as expressões políticas de direita e de ultradireita que se articulam pelo mundo afora; são expressões religiosas que traduzem em seus códigos simbólicos essas tendências, em princípio, secularizadas. As afinidades são explícitas nas posturas e nos discursos: preservação da ordem econômica e da sociedade de classe, afirmação do poder autoritário e da intolerância com as diferenças políticas, negação das ideologias e projetos de transformação social, negação dos direitos das minorias e dos sujeitos emergentes, afirmação de projetos políticos de uma retomada da cultura cristã ocidental e, por conseguinte, de um Estado afinado a discursos e grupos religiosos. Com diferentes modos de adesão e através de distintos sujeitos individuais e coletivos, a frente católica tradicionalista alinha-se a esse projeto político e revela alianças emblemáticas com o mesmo. O fato mais original, senão preocupante, é que não se trata mais de uma cruzada ideológica conservadora que opera somente na esfera dos discursos –, hoje maximizados pelas redes sociais – mas que avança efetivamente com projetos de poder.

Alianças flagrantes

Até algum tempo atrás essa afinidade conservadora era restrita a grupos político-religiosos bem definidos, como no caso do movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP) no Brasil, ou a Fraternidade São Pio X na Europa. Hoje, já não se trata tão-somente desses grupos, por ora realinhados em novas denominações (no caso do Brasil: Arautos do Evangelho, Montfort, Administração Apostólica São João Maria Vianney), mas de uma variedade de expressões que demarcam presença nas redes sociais (caso do já conhecido Fratres In Unum e o caso mais recente da TV Nossa Senhora de Fátima), que se inserem em movimentos de princípios integrados na plena comunhão católica, como em certas tendências da Renovação Carismática Católica e de movimentos leigos tradicionais. O posicionamento político naturalmente alinhado aos grupos políticos de direita caracterizam esses grupos de modo geral. As últimas eleições no Brasil ofereceram um laboratório emblemático dessa postura. O apoio explícito a Jair Bolsonaro esteve na pauta desses grupos e permanece resistindo, não obstante, os desgastes do governo. Todos eles são simpáticos aos ensaios delirantes de uma neoteocracia que hoje se encontra em curso no governo, com todas as suas estratégias de políticas de viés fascista.

Contudo, não se trata tão somente de conjuntura nacional. Essa frente político-religiosa se espalha e se configura com suas idiossincrasias locais. Nos Estados Unidos, o atual presidente não é tão original quanto parece. A visão de que seu país concretiza politicamente o povo escolhido por Deus para ser o seu juiz sobre o mundo e defender o Ocidente de um inimigo iminente, com nomes variados (antigamente os comunistas, hoje os islâmicos), persiste como convicção na alma política norte-americana e, sobretudo, no Partido Republicano. Na Europa secularizada, defensora da pluralidade de manifestações e berço dos direitos humanos, esses regurgitos pré-modernos soam mais inéditos.

A aliança entre religiosos tradicionalistas e políticos de direita se encontra em marcha. Quem aguardava quem? O tradicionalismo católico recrudesceu com a eleição do papa do fim do mundo (do sul do mundo) e rapidamente compôs uma frente contrária às reformas religiosas do novo papa. Essa resistência aparentemente religiosa (doutrinal e moral) emergiu com o apoio direto das forças da direita política local e norte-americana. Políticos que jamais foram religiosos começaram a manifestar suas devoções. Deus salvará o Ocidente das invasões dos bárbaros atuais! O ideólogo Olavo de Carvalho apregoa essa “evidência” histórico-astrológica e agrega adeptos que hoje ocupam o poder.

O ministro do interior italiano apareceu empunhando um rosário em manifestação política pela defesa das políticas de soberania da Itália (IHU, 21/5/19). E o mais cômico se não fosse trágico: uma trindade plural e una reuniu-se em um bar em Roma para discutir estratégias de resistência às políticas adotadas por Francisco em relação aos imigrantes e refugiados. Trata-se de nada menos que o estrategista de Trump, Steve Bannon, o ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini e o cardeal norte-americano Raymond Burke. A unidade política se sobrepõe às diversidades pouco afinadas: a longa cauda de seis metros do cardeal moralista intransigente e o norte-americano de três casamentos (IHU, 21/6/2018). O papa Francisco seria uma real ameaça à integridade política da Europa e do Ocidente. Os três unos-distintos revelam, na verdade, uma real declaração de guerra ao papa, da parte da direita mundializada, defensora do capitalismo comandado pelo império norte-americano e entrincheirado no norte do globo.

Os estrategistas estão com outros cardeais e católicos milionários metidos em um megaprojeto de formação político-religiosa. O Instituto pela Dignidade Humana, já criado em 2008 em Roma, terá nova sede na histórica Cartuja de Trisulti, alugada pelo governo italiano. O projeto conta com o apoio do bilionário católico Nirj Deva que dirigirá o Comitê Internacional do Instituto, e do Conselho Assessor, coordenado pelo cardeal Burke. O instituto abrigará uma academia para o Ocidente judaico-cristão que acolherá em 2020 duzentos alunos oriundos de movimentos nacionalistas europeus. Steve Bannon é o assessor especial que está preparando o currículo e selecionando os futuros alunos (Castells, Diálogos do Sul, 19/3/2019).

E é dentro desse mesmo campo de forças que o governo brasileiro pretende organizar um seminário sobre a Amazônia, em Roma nesse semestre, um Contra-sínodo ao Sínodo da Amazônia que contará com o apoio do piedoso Matteo Salvini e dos milionários católicos que têm atuado na defesa da Europa cristã. Quem sabe não tenhamos ainda uma nova edição do Concílio de Niceia – na verdade, em Washington ou em Davos –, convocado pelas autoridades políticas da nova direita para garantir a unidade do império cristão ocidental fragmentado? O novo dogma a ser definido seria obviamente a divindade do capitalismo ultraliberal. Ao que parece, não têm faltado constantinos habilitados pelo mundo afora.

Milionários, nacionalistas, ultraliberais, fundamentalistas, tradicionalistas, moralistas, ritualistas… Homens do capital e cardeais da Cúria Romana. Eis a soma de perfis, projetos e sujeitos que compõem, por ora, o fronte contra Francisco e que visa formar uma geração de cabeças bem-feitas para preservar a bolha econômica, política, cultural e religiosa do velho ocidente em crise. Não obstante, o uso ideológico da religião seja flagrante – e sem o mínimo senso de ridículo –, trata-se de uma linguagem política fisiológica e estratégica de homens alinhados a uma frente de direita disposta a enfrentar seus inimigos fantasmagóricos (marxismo cultural, comunismo, islâmicos) e seus inimigos reais: na cena mundial, o papa Francisco é o mais visível e ameaçador. E, para o bem da verdade, nessa batalha ninguém está enganado ou se passa por inocente. Os projetos e territórios estão bem demarcados. Nesse sentido, os personagens políticos são mais honestos que os cardeais por assumirem suas oposições sem desculpas teológicas; mesmo quando exibem suas devoções católicas, o fazem em nome de um projeto econômico e político declarado; são ridículos, mas não mentirosos.

As estratégias ideológicas

A ideologia é a estratégia pautada na luta de ideias, quando a luta física por alguma razão não é adotada. A luta das ideias tem suas estratégias, assim como as lutas corporais e bélicas. Todas têm um ponto comum: localização do inimigo e, em seguida, destruição do mesmo. O papa Francisco já foi localizado como inimigo do império do capital ocidental logo cedo. Por certo, o colégio de cardeais que o elegeu não tinha a exata medida de seu projeto reformador; teria visto, na figura mística posicionada fora dos desgastados quadros da Cúria Romana, um reformador moral e disciplinar da vida interna da Igreja católica. Mas desde seus posicionamentos críticos em relação ao regime capitalista, suas afirmações sobre o imperativo da opção pelos pobres e suas posturas de sensibilidade e solidariedade com os excluídos, de modo particular com os refugiados políticos, não restaram dúvidas para os donos do poder econômico de que se tratava de uma figura mundial inoportuna à ordem por eles defendida. A lógica dos muros que fecham as fronteiras dos territórios políticos e econômicos não podia, de fato, suportar a lógica das pontes que rompem distâncias e pedem solidariedade.

O diagnóstico não é delirante: trata-se, de fato, de uma figura antitética à atual ordem econômica planetária. Uma vez localizado o inimigo inequívoco e perigoso como eliminá-lo? A eliminação física parece ser inviável, embora não impossível. Ademais, Francisco reside em uma casa coletiva, o que dificultaria qualquer abordagem solitária sobre sua pessoa. A eliminação política por um golpe direto ou indireto não se encaixa na lógica do poder papal. Resta, obviamente, a eliminação por meio das ideias, o que na tradição católica tem seus caminhos conhecidos: a desqualificação das posturas e dos discursos da pessoa como heterodoxos e heréticos. A construção do discurso ideológico constrói o inimigo, o desqualifica e, por fim, o expurga do grupo (Thompson, 1999, p. 86-87). Esse tem sido um caminho adotado pela ultradireita, empenhada em salvar o Ocidente da crise atual.

Na parte católica, o papa tem sido permanentemente desqualificado como incompetente em Teologia, como heterodoxo e, ultimamente, como herege. Quem pode desqualificá-lo? Obviamente seus pares e, de preferência, cardeais, bispos e teólogos. É dos especialistas religiosos que poderão vir os discursos habilitados a desautorizar e destruir o grande inimigo. A cronologia das acusações contra Francisco já é extensa e conhecida de todos, vai da carta dos quatro cardeais de 2016 à carta dos teólogos de maio passado. As acusações do ex-núncio da América do Norte, Carlo Maria Viganò, delatam o mapa ideológico das oposições e das construções dos discursos de oposição.

A tese é reiterativa: o papa rompe com a tradição e trai a doutrina da Igreja (Cf. Politi, 2014). O subsolo é também comum: sujeitos eclesiais ligados direta ou indiretamente ao regime do grande capital e, quase sempre, à geopolítica norte-americana com seus tentáculos diretos na Europa. A frente da direita atual arma uma cruzada de defesa do Ocidente contra os invasores e contra os perigos de uma crise insuperável do capitalismo mundializado. O resgate de valores do passado, de modo particular de valores religiosos (cristãos e católicos), é um dos recursos do capital político que se acumula nos discursos e práticas dessa frente. A máxima adotada: fora do passado não haverá salvação! E os valores da Modernidade vão sendo superados; sem escrúpulos pululam nas bocas e bandeiras afirmações xenofóbicas, homofóbicas, machistas, fascistas, etc. A violência, a morte e a negação de direitos fundamentais vão sendo naturalizados sem controles sociais e sem punições legais. Por certo, há que afirmar a ingenuidade útil de alguns e na maledicência consciente de outros empenhados no movimento. Alguns, o fazem, por certo, em nome da fé. Porém, todos se encontram posicionados em um campo político conservador, ponto comum que faz confluir prelados e empresários, crentes e descrentes, autênticos e dissimulados. Se não se pode firmar uma aliança maquiavélica explícita de todos os opositores de Francisco como a nova direita, pode-se observar, por certo, nas pegadas de Max Weber, uma afinidade eletiva entre às duas posições: ambas empenhadas em preservar o poder do norte da invasão do sul e em retomar a identidade fragmentada do Ocidente. Numa palavra, o mundo estável da tradição católica edificada sobre uma cosmologia antiga (filosófica e religiosa), administrado pelo poder hierarquizado e reproduzido pelas catequeses fundamentalistas, sustenta com autoridade teológica a ordem econômica mundial também estável, dogmática e inquestionável.

Por fim…

A direita mundializada tem contado com esses parceiros ideológicos religiosos para enfrentar o inimigo imune a golpes regulares do expurgo político. Nessa luta concreta não são delirantes. Ao contrário, sabem do poder de fogo de um papa no Ocidente e do poder carismático de Francisco no momento atual. O papa é uma liderança admirada e respeitada que precisa ser desmoralizada. O argentino e jesuíta (do sul do planeta) assumiu a tradição libertadora da Igreja latino-americana, fala sem meias-palavras e sem abstrações conceituais: condena o regime capitalista como idolátrico, como sistema de morte, como regime tecnocrático destruidor do planeta; mostra a cultura do individualismo, do consumismo e da indiferença como desumanas e anticristão, afirma a necessidade de mudança de modelo econômico e de mudança da ideologia do progresso, defende a inclusão de todos os excluídos, apoia os movimentos sociais, os indígenas, os refugiados, apresenta a opção pelos pobres como imperativo cristão e a defesa do planeta como urgência para todos, promove o diálogo com o mundo islâmico e defende a igualdade dos povos e das pessoas como direito inalienável. Trata-se de uma pauta frontalmente contrária à pauta da nova direita. E entre os opositores não faltam quem verbalize a prepotência e o preconceito do norte do globo quando se refere a Francisco como “o argentino”. De fato, uma das características da nova direita é manifestar-se sem os valores (escrúpulos) modernos da igualdade de direitos da tolerância.

Os adversários de Francisco se manifestam com discursos variados. Com a piedade mariana de Salvini e de Bolsonaro, com o tom teológico neutro do cardeal fulano, com as afrontas diretas de cardeais moralistas e políticos entreguistas. Devoções politicamente ridículas. Teologias ideologicamente mentirosas. Os conservadorismos se encontram na esquina obscura da história, tecem suas afinidades e fabricam suas estratégias. No fundo da batalha, prevalece uma luta de deuses. A religião é retomada sem disfarces como apoio explícito das justificativas dos projetos políticos. A Igreja “em saída” (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium) de Francisco se choca com as “nações fechadas” da plataforma soberanista da direita mundializada. O papa Francisco não arreda o pé; avança com suas pautas e continua surpreendendo com suas posturas e discursos. O conjunto da Igreja se ajusta de diferentes modos a essa programática, a depender dos sujeitos eclesiais e das conjunturas. Na verdade, a luta contra Francisco se desdobra de forma menos visível nos estratos mais baixos dos escalões eclesiais em diferentes lugares do planeta. A batalha seguirá ao menos enquanto durar o papado. Contudo, como já declarou, Francisco continua dormindo em paz. Quem sabe a cada noite sonhe com o próximo discurso em favor dos excluídos e o próximo abraço em um islâmico?

*João Décio Passos é doutor em Ciências Sociais, livre-docente em Teologia e professor do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP

Referências bibliográficas

CASTELLS, Manuel. “Steve Bannon e a conspiração contra a Europa”. In https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/mundo/55353/steve-bannon-e-a-conspiracao-contra-a-europa-por-manuel-castells

CARAPANÃ. A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo. In GALEGO, Esther S. (Org). O Ódio como Política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.

MARTEL, Frédéric. No Armário do Vaticano: poder, hipocrisia e homossexualidade. São Paulo: Objetiva, 2019.

PASSOS, J. Décio. As Reformas da Igreja Católica: posturas e processos de uma mudança em curso. Petrópolis: Vozes, 2019.

POLITI, Marco. Francisco entre Lobos: o segredo de uma revolução. Lisboa: Texto&Grafia, 2014.

THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica da era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1999.

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/580128-steve-bannon-cardeal-burke-ministro-salvini-e-o-complo-para-derrubar-o-papa-francisco
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589322-nao-ao-rosario-para-fins-politicos-desavencas-entre-os-catolicos-e-chefe-da-lega

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Décio Passos

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