Pesquisar
Pesquisar

Por que panelaços podem ser esperança contra crise sanitária, econômica e social no Brasil?

Os protestos de 3ª e 4ª-feiras podem sacudir a negligência do governo diante do coronavírus e a pasmaceira da oposição e da mídia
Antonio Martins
Outras Palavras
São Paulo (SP)

Tradução:

O que fazer se estamos presos num edifício em chamas, mas os bombeiros recusam-se a usar as mangueiras, negam a existência das labaredas e seu chefe usa os extintores para investir contra os que pedem ação? Este cenário de distopia parecia desenhar-se no Brasil até terça-feira (17/3) à noite, enquanto o espectro do coronavírus chega cada vez mais perto. Foi interrompido subitamente ao som de panelas e gritos de Fora Bolsonaro, ouvidos em, pelo menos, cinco capitais — e repetidos no dia seguinte com nitidez ainda maior. 

Os protestos produziram os primeiros resultados, mas eles são insuficientes. A sabotagem de Jair Bolsonaro persiste, porém ficou clara e o tornou vulnerável. Os membros da Câmara, do Senado e do STF começaram a se mover, embora os gestos sejam ainda muito insuficientes. É na continuidade do grito destes dois dias que podem florescer as chances de evitar, ao longo dos próximos meses, uma tragédia social inédita. 

O foco principal das atitudes que estão levando o país ao abismo está, é claro, no Palácio do Planalto. Dois meses depois de o governo chinês lançar o alerta sobre o potencial de destruição do coronavírus, e colocar sob quarentena inédita 58,5 milhões de habitantes da província de Hubei, o governo federal não tomou as medidas mais elementares – nem para proteger a população da ameaça sanitária, nem da imensa catástrofe econômica e social que galopa em paralelo, devido ao colapso dos cassinos financeiros.

Os protestos de 3ª e 4ª-feiras podem sacudir a negligência do governo diante do coronavírus e a pasmaceira da oposição e da mídia

Reprodução: Winkiemedia
Panelaço contra o presidente Bolsonaro começou as 20:30

No aspecto sanitário, as duas linhas de defesa que poderiam resguardar a população foram negligenciadas. Ao contrário do que se cansa de recomendar a Organização Mundial de Saúde (OMS) – e funcionou de modo notável na China, Coreia do Sul e Singapura – não foram tomadas até agora medidas de distanciamento social, em nenhuma das modalidades adotadas nestes países. O grosso da população segue obrigado a permanecer nas ruas, expondo-se e espalhando o vírus, tanto por falta de orientação em contrário quanto pela ausência quase absoluta de medidas que garantam meios alternativos de subsistência. Agora, a curva de contágio já se assemelha à da Itália, onde começou há um mês uma crise hospitalar gravíssima, sem que o governo brasileiro tirasse, também neste caso, a menor lição.

Um número muito maior de pessoas adoecerá ao mesmo tempo – o que poderia facilmente ter sido evitado. E estes doentes, que necessitarão desesperadamente de UTIs, as encontrarão lotadas, porque a segunda linha de defesa, o reequipamento de emergência dos hospitais, também não foi cuidada. Ao contrário: o gasto social foi congelado por vinte anos. O número de leitos caiu desde 2007, enquanto a população continuou crescendo. Não foi adquirido um único respirador artificial – equipamento-chave para evitar mortes desnecessárias, embora sejam relativamente baratos (R$ 100 mil). A inépcia total do governo o torna incapaz até mesmo de assegurar providências mais comezinhas. Os passageiros que chegam aos aeroportos, vindos dos principais centros de propagação da pandemia, não são monitorados (enquanto países como a Argentina os colocam em quarentena). Sequer o preço do álcool gel é tabelado, ou se assegura o fornecimento de máscaras e luvas à população.

Dois bloqueios autoimpostos paralisaram o governo. O primeiro é a servidão aos mercados financeiros e à política de “ajuste fiscal” – mesmo quando esta já foi rompida nos próprios países que a conceberam. As medidas de “apoio” social que o ministro Paulo Guedes anunciou em entrevista coletiva hoje (18/3) assombram (e até insultam) pela pequenez. Os aposentados terão uma breve antecipação do dinheiro que já lhes pertence. A população, já insolvente junto aos bancos (que cobram juros imorais e incomparáveis aos do resto do mundo), será convidada a se enforcar ainda mais. Ao falar em medida “compensatória”, Guedes tratou os milhões de trabalhadores informais como esmoleus, anunciando que pensa em oferecer-lhes… R$ 200, durante três meses (o equivalente a três notas de R$ 2 ao dia…). Para efeito de comparação, os motoristas uberizados estão registrando, em São Paulo, perdas superiores a R$ 150 ao dia.  

A segunda trava é ideológica. O presidente acreditou, pueril, nas fake news difundidas pelas redes sociais de ultradireitista, para entreter os militantes mais estultos. Segundo elas, o coronavírus é uma ameaça falsa, difundida para tumultuar governos como o de Donald Trump. Ainda no domingo, em entrevista à CNN, Bolsonaro repetiu a asneira. Foi certamente por isso que colocou em risco sua saúde e seu mandato, ao se abraçar com um punhado de manifestantes idosos e fanatizados, no domingo (15/3). Parece ter imaginado que, ao ficar clara a “fantasia” do coronavírus, poderia continuar ameaçando o Congresso e o STF, até o “ato final”, um protesto diante dos quartéis, em 31 de março. Foi quase constrangedor vê-lo, hoje, jurando colaboração com Rodrigo Maia e David Alcolumbre, os presidentes da Câmara e do Senado.

Em qualquer situação normal, um presidente que ameaçasse a este ponto a Saúde pública, a Segurança interna do país e a Constituição marcharia, destroçado, em direção à guilhotina do impeachment. Bolsonaro ainda sobrevive porque uma minoria ínfima e baldia, porém extremamente predatória e poderosa, pensa poder servir-se dele. Enxerga-o como o único homem capaz de recolocar as minorias em seu devido lugar, de reconstituir a relação Casa Grande X Senzala, de afastar as maiorias de uma vez por todas dos aeroportos. Quer reverter inclusive as pequenas concessões obtidas pelos governos petistas e sufocar, em especial, as ousadias intentadas por mulheres, pretos, pobres, periféricos, LGBTIs e todos os que desejaram desviar o país de sua condição colonizada.

É por isso que Rodrigo Maia, embora critique Bolsonaro, enche-se de dedos ao fazê-lo, deixa sempre aberta uma porteira para a recomposição e jamais ousa pronunciar as palavras que significariam uma ruptura. Revogar o congelamento do gasto socialimposto pela Emenda Constitucional 95, por exemplo. Esta providência simples, que seria essencial para um combate eficaz ao coronavírus, tornou-se um tabu – porque num Brasil periférico, a aristocracia financeira vê, no “ajuste fiscal” já condenado em outras latitudes, a chave para submeter e disciplinar as maiorias.

Também seja por isso que a mídia comercial, tão desafiada por Bolsonaro, tão ciente de que os últimos vestígios de “democracia” estão em jogo, hesitará sempre em dar o passo decisivo contra o capitão. Nos ambientes colonizados, os interesses dos grandes anunciantes sempre falarão mais alto que os princípios liberais. E o presidente, embora néscio, tem faro. Ele sabe que seus críticos endinheirados nunca terão a audácia de desafiá-lo. Seu cálculo político é claro. Ele aposta que, não sendo capaz de encontrar uma alternativa eleitoralmente mais viável até 2022, o poder econômico o apoiará. E deseja que a esquerda institucional continue a se comportar como um adversário previsível e frágil.

E esta esquerda teima em não contrariá-lo. Em meio à sombra da crise sanitária e social, que ações PT, PCdoB, PSOL, PSB ou PDT adotaram? Lula, ao regressar da Europa, adotou a atitude meritória de colocar-se em quarentena. E nesta condição ficou, sem se dirigir à sociedade ou ocupar o papel que lhe caberia. Guilherme Boulos e o PSOL parecem adotar a orientação (que não virá) de Lula. Ciro Gomes espera que o ex-presidente se manifeste – para ter algo a dizer… contra ele!

Em meio à louca comédia de erros, um haitiano desafiou, com sua voz e seu corpo, o capitão. Alguém lançou um chamado, pelo panelaço na quarta-feira (18/3). Viralizou. Por algum motivo, outros alguéns anteciparam-se e, um dia antes, começaram a povoar as janelas. Foi sucesso e repercutiu.

Entrevistado pelo Globo, Rodrigo Maia dignou-se a perceber que as vidas (desprezadas pelo presidente)… valem mais que a Economia! Os jornais comerciais animaram-se um tantinho (embora seja triste e lastimável a pobreza dos questionamentos que dirigiram Bolsonaro, em entrevista coletiva hoje). O Palácio do Planalto deixou de estimular (por enquanto), a marcha diante dos quartéis em 31 de Março. Notável contradição: o coronavírus e a sombra da morte estão em toda a parte – mas o ambiente político tornou-se muito mais respirável desde o panelaço.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Antonio Martins

LEIA tAMBÉM

Com Trump, EUA vão retomar política de pressão máxima contra Cuba, diz analista político
Com Trump, EUA vão retomar política de "pressão máxima" contra Cuba, diz analista político
Visita de Macron à Argentina é marcada por protestos contra ataques de Milei aos direitos humanos
Visita de Macron à Argentina é marcada por protestos contra ataques de Milei aos direitos humanos
Apec Peru China protagoniza reunião e renova perspectivas para América Latina
Apec no Peru: China protagoniza reunião e renova perspectivas para América Latina
Cuba luta para se recuperar após ciclone, furacão e terremotos; entenda situação na ilha (4)
Cuba luta para se recuperar após ciclone, furacão e terremotos; entenda situação na ilha