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Por uma política de defesa nacional subordinada à soberania popular

As novas diretrizes da dependência dirão o papel que, sob novo comando, cumpre às forças armadas dos novos tempos
Roberto Amaral
Diálogos do Sul Global
Brasília (DF)

Tradução:

Prezado ministro, caro amigo:

Reporto-me, desta feita, ousando comentá-lo, ao seu depoimento no debate “Defesa, presente e futuro do Brasil”, promovido pelo “Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa” – entidade que, confesso, não conhecia, mas que é, decerto, muito importante, tal o colégio de ministros que reuniu. Se os dados não me traem, essa terá sido a primeira oportunidade de expor sua visão das forças armadas brasileiras, isto é, de seu papel na vida nacional; tema que, ficamos sabendo, não se inscrevia em seu universo de preocupações. Pena que o debate, diz-nos o silêncio da grande imprensa, não tenha repercutido como merece.

Ora, o IREE logrou reunir, como num colóquio, um ministro de Estado da defesa e três de seus ex-ministros, além de um general e um jurista que nos falaram, no conjunto, coisas muito relevantes – questionáveis algumas, mas todas oportunas. De qualquer sorte, a iniciativa constituiu um bom avanço ao ensejar o debate, e rogo-lhe não deixá-lo pelo meio do caminho, quando meramente estamos na superfície do tema (segurança nacional e o papel das forças armadas), e os argumentos ainda buscam fundamentação.

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O debate precisa repetir-se, renovar-se e abrir-se para a sociedade civil, para a academia, para fora da ordem corporativa e mesmo do âmbito puramente institucional. Nossa atenção não é requerida por questão de somenos importância, pois o que nos chama ao estudo e à discussão a mais ampla, há tempos já, é a “questão militar”, um desafio republicano herdado do império e até aqui irresolvido. Senão agravado, como leciona a história presente.

A cidadania aguarda do presidente da república o anúncio daquela que será, em seu governo, a política de defesa nacional, implicando diretrizes para as forças armadas, dizendo não o que se espera da corporação, mas ditando-lhe (eis um a priori republicano esmaecido) a missão que deverá cumprir. Em face do quadro nacional e das exigências da crise internacional que caminha em nossa direção, à aguardada nova política de defesa incumbe responder à pergunta basilar: qual o papel que a nação atribui às forças armadas que instituiu e financia?

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A nova política de defesa (realinhando a disciplina e a hierarquia, erradicando o voluntarismo e o aventureirismo) dirá o papel que, sob novo comando, cumpre às forças armadas dos novos tempos, vencidos o golpe de Estado de 2016 e o governo Bolsonaro – com o qual estiveram radicalmente comprometidas, até os limites da frustrada intentona de 8 de janeiro, incidente histórico que precisa ser investigado com rigor em todas suas dimensões.

E aqui, de logo, permita-me expor-lhe meu incômodo quando, por certo pretendendo pôr de manifesto seu excelente convívio com os cinco estrelas de todas as fardas (o que, aliás, é muito bom para o ofício de ministro da defesa), nos disse literalmente: “Na realidade eu administro apenas a resultante das vontades de cada comandante”.

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Não, isto não está certo, meu caro. É muito pouco para a sua biografia e demasiado ruim para o país. O que a república requer do ministro é o papel de sujeito ativo, não esse de porta-voz da caserna, e não foi tal renúncia ao protagonismo o que o legislador (refletindo a vontade nacional) perseguiu ao criar o ministério da defesa, ao cabo de tantos e lamentáveis episódios de indisciplina militar coletiva e intervenções na vida civil.

Em qualquer democracia que se dê ao respeito, e mesmo nesta nossa democracia, assim tão frágil, tão sistematicamente violada, esta democracia que aos trancos e barrancos trouxemos até aqui, não cabe aos fardados – generais, brigadeiros, almirantes – dizer ao ministro da defesa o que ele deve fazer. Ao contrário, devem dele receber comandos, isto é, ordens, diretrizes, missões.

As novas diretrizes da dependência dirão o papel que, sob novo comando, cumpre às forças armadas dos novos tempos

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O ministério da defesa não pode ser reduzido a um conduto de comunicação entre a caserna e o presidente

Na sequência, na mesma exposição, ouço-o dizer-nos que o poder executivo e as forças armadas dialogam. Se assim é, estamos em face de duas entidades distintas: poder executivo e forças armadas. Se executivo e forças armadas dialogam (e teria sido seu mérito restabelecer o bate-papo institucional), é porque as forças armadas se elevaram à categoria de um dos poderes da república – o que, se pode assentar-se na força das baionetas, não colhe a proteção da ordem constitucional!

Você diz que tem trabalhado para que “não tenhamos uma fissura na unidade necessária entre as forças armadas e entre as forças e o próprio executivo, mantendo um diálogo de confiança, cada um entendendo o seu próprio papel, cada um respeitando os seus direitos”. As forças armadas desapartadas do executivo, navegando à solta como um preocupante iceberg? Ora, isso seria um novo poder republicano acrescentado à tríade montesquiana, e o anúncio de novos sobressaltos.

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Sei que a caserna sempre almejou esse altar, daí a miríade de golpes e intervenções manu militari que marcam nossa história, mas a república jamais reconheceu ou legitimou essa insurgência, ou mesmo o malsinado “poder moderador”. Você, porém, se mostra convencido da justeza dessa distorção, eis que repete o juízo, afirmando noutro trecho a necessidade de diálogo entre as “forças [armadas] e o próprio [poder] executivo”.

Não se faz necessário requerer o amparo da Constituição para lembrar que as forças armadas brasileiras, como as de todas as repúblicas, são uma dependência do poder executivo, chefiadas pelo presidente da república, eleito pelo povo. As forças são não mais que uma corporação, nos EUA (nossa matriz para tudo), tanto quanto na França, na Turquia ou na República do Uruguai. Assim devem ser vistas também por nós, pelo presidente e pelos ministros, como por toda a tropa.

O ministério da defesa não pode ser reduzido a um conduto de comunicação entre a caserna e o presidente; seu papel, relevante, é o de executor da política de defesa ditada pelo Estado, que conhece uma só subordinação, repito: aquela que emana da soberania popular.

A objetividade dos fatos torna irreal atribuir espontaneísmo às movimentações de 8 de janeiro, antecipadas pelas incitações golpistas do capitão Bolsonaro em todo o curso de seu mandato, pelo ensaio do 7 de setembro de 2021, pelo quase levante quando da diplomação de Lula, pela tentativa de explosão de um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília, pelos ilegais acampamentos nas portas dos quartéis do exército (impensáveis sem a proteção de seus comandantes), pela convocação de vândalos de todo o país, e o mais que se sabe e nos revelam os diálogos entre o major Mauro Cid, nada menos que valete e ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, e o coronel Jean Lawand Junior, surpreendido quando, premiado, já estava de malas prontas para doce e bem rendosa vilegiatura em Washington.

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Sei que você tem à sua disposição os informes de todos os serviços de inteligência da república e do que aos poucos vem sendo revelado nas primeiras ações da CPMI em curso. Ainda assim, permita-me sugerir-lhe a leitura da reportagem “A teia do golpe”, (revista Piauí, edição 201, junho de 2023), da jornalista e pesquisadora Ana Clara Costa. Há, portanto, muito o que apurar, muitos responsáveis a serem identificados e punidos, portem eles japona, toga ou trajes civis.

Mas a questão que mais aflige é você defender o aumento das despesas com as forças armadas para 2% do PIB, trazendo como argumento a prescrição da OTAN. Já a ela estamos subordinados? Ela já nos serve de padrão? Por que uma coalizão guerreira, à qual não temos filiação (afora a dependência ideológica de muitas de nossas lideranças) pode ditar padrões a uma sociedade que, na contramão do imperialismo, fez a opção pela paz e a boa convivência com todas as potências do mundo?

Muitos outros temas eu desejaria abordar, mas o texto já vai extenso para uma simples carta. Deixo de lado o rol dos desencontros (embora você tenha me animado com a observação de que gosta de quem o critica) para ressaltar os pontos, e não são poucos, em que nosso acordo predomina. Por mais de uma vez você ressaltou que o nosso inimigo é interno, mas não aquele que os generais proclamam desde 1964 (nosso povo), e sim a desigualdade, a pobreza e a miséria desumanizantes, fruto do modelo político-econômico de exclusão que herdamos da casa-grande e nossas elites sustentam com orgulho.

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Citando o preço de um caça (US$ 70 milhões) e de um submarino (US$ 500 milhões), quando construídos aqui, você se mostrou eticamente incomodado no papel de reivindicante de mais verbas para nossas forças – que, sabemos, ainda não têm condições de defender nossa soberania, mas ficam felizes em impor “a lei e a ordem” aqui dentro, sempre que o povo-massa ousa desempenhar o seu papel de sujeito histórico.

Acompanho-o nas suas observações sobre a guerra Rússia x Ucrânia, que, lembro, é uma guerra entre os EUA e a Eurásia, mantida pela intervenção militar da OTAN, a serviço dos interesses do pentágono, que move seu combate à China, potência emergente que ameaça a hegemonia militar, ideológica e econômica do grande império.

Quase ao final, o Nelson Jobim, que já passou pela experiência que você começa a viver, lembrou-nos que o presidente Lula retorna ao Planalto com uma nova visão do papel das forças armadas – e, poderíamos acrescentar, também com uma compreensão mais clara do papel do Brasil na cena internacional.

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Mas sua vontade, essa sua nova visão de mundo e país, bate de frente no muro ideológico erguido pela classe dominante, herdeira sem arte da casa-grande, retrógrada, alienada, embrutecida e mesquinha, porém ainda mais forte que na década passada. O impasse será nossa companhia por muito tempo, se não recuperarmos nossa capacidade de organização social.

Notas rápidas

Confronto x conciliação – Se o confronto é evitável, deve ser evitado, mas é preciso que o comandante saiba distinguir entre operação tática e objetivo estratégico. Assim na política como na guerra, artes que se completam.

A quem serve o Banco Central? – O BC prossegue em sua missão de torpedear os esforços governamentais que visam à recuperação econômica do país após a terra arrasada dos dois últimos governos, apoiados pela caserna e pela Faria Lima (de onde saem os dirigentes da chamada autoridade financeira). A inflação sinaliza declínio acentuado, o dólar segue em baixa e caem os preços externos de commodities. Mas o BC, dizem os sábios do mercado financeiro, teme a recuperação do mercado de trabalho (que pode pressionar a alta dos juros) e a previsão de crescimento do PIB. Ou seja, os juros só caem se o Brasil deixar de crescer e o desemprego permanecer alto, o que a nação não deseja. A quem beneficia essa política? Ao consumidor, ao comércio varejista, à indústria, aos assalariados, aos endividados, enfim, ao povo? Certamente não. Como igualmente não é ao governo desenvolvimentista. A serviço de quais interesses, então, está o BC?

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Retrato do capitalismo periférico – Os 10% de brasileiros mais ricos detêm cerca de 60% da renda nacional, os 50% mais pobres respondem por apenas 10%. E o 1% da população mais rica concentra 27% de toda a renda nacional. São os dados, lastimáveis, do The World Inequality Report 2022.

Os pobres morrem sós – O contraste entre o silêncio tonitruante em torno do trágico naufrágio que vitimou centenas de imigrantes pobres, há poucos dias, na costa da Grécia, e o interesse despertado pelo sumiço de um pequeno grupo de bilionários em visita aos destroços do Titanic, reforça a atualidade dos versos imortalizados por Elza Soares: “!A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Roberto Amaral | Colaborador de Diálogos do Sul

Com a colaboração de Pedro Amaral


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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