Conteúdo da página
ToggleArtigo inédito de Wilma Reverón, co-presidenta do Movimento Independentista Nacional Hostosiano, de Porto Rico. A informação que contém, produto de uma pesquisa, é relevante, mas muito pouco conhecida.
A relação política dos territórios não incorporados dos Estados Unidos no Caribe e no Pacífico se assemelham na falta de poderes políticos conferidos pela soberania violada pela mal chamada potência administradora, mas se diferenciam em assuntos de cidadania, nacionalidade, linguagem, etnia e direitos ancestrais.
Afinal, os habitantes dos territórios sofrem a falta de acesso a direitos democráticos e direitos fundamentais sob a Carta de Direitos da Constituição dos EUA, tratamento injusto e despótico, e a negativa dos Estados Unidos de tornar possível um verdadeiro exercício da livre determinação.
PxHere
Saint Thomas, ilha que serve como porta de entrada das Ilhas Virgens Americanas no Caribe
Os moradores das Ilhas Virgens Estadunidenses (USVI)
As Ilhas Virgens Estadunidenses (USVI) foram compradas da Dinamarca pelos Estados Unidos em 30 de março de 1917, depois de dois séculos e meio de dominação dinamarquesa. Compõe-se de quatro ilhas principais: Santo Tomás, Santa Cruz, São João e Ilhas da Água e 50 ilhotas e recifes pequenos, cobrindo uma área de 133 milhas quadradas.
As Ilhas Virgens Estadunidenses se regem atualmente sob uma Lei Orgânica Revisada do Congresso dos EUA de 1954. Os habitante de USVI são cidadãos dos EUA. Em cinco ocasiões os habitantes da USVI promulgaram uma Convenção Constituinte, a última foi a de 12 de junho de 2017, sendo as anteriores em 1964, 1971, 1977 e 1980.
A Primeira Convenção Constituinte funcionou de 1964 a 1965. Estava composta pelos 15 senadores em funções e 18 delegados eleitos. A constituição redigida e aprovada pelos delegados continha uma Carta de Direitos, um governador eleito, um representante no congresso, o direito a votar para presidente dos Estados Unidos e uma proposta de sistema unicameral. Foi enviada ao Congresso em 26 de fevereiro de 1965. Não foi aprovada.
A Segunda Convenção Constituinte começou a deliberar em setembro de 1971 com 33 delegados: os 15 legisladores e 18 nomeados pelos três partidos políticos, o republicano, o democrata e o independente. Em 7 de novembro de 1972 foi submetida a referendo uma proposta de Constituição e o Lei de Relações Federais. Teve 7.279 votos a favor e 5518 contra. Houve denúncias de irregularidade e ilegalidade, além de uma participação baixa e o fato dos delegados não terem sido eleitos, pelo qual o delegado da USVI no Congresso, Ron de Lugo, não apresentou a Constituição para aprovação. Mas apresentou projeto de legislação para que se permitisse a USVI adotar uma constituição, que foi aprovado em 1976 mediante o PL 94-584.
A Terceira Convenção Constituinte foi organizada sob a autoridade conferida pela lei do Congresso dos Estados Unidos, PL 94-584. Em 3 de outubro de 1977 a Corte Territorial juramentou 60 delegados e lhes outorgava 120 dias para cumprir com o mandato de redigir a constituição. Em 6 de março de 1979 foi celebrado um referendo para a aprovação da constituição. Entre seus dispositivos estavam a eleição de um governador nativo, a revisão do sistema judicial incluindo a substituição da Corte Federal de Distrito dos EUA por uma Corte Suprema local, a proteção da cultura, da linguagem, das tradições e dos costumes locais e a declaração de todas as praias e zonas costeiras como domínios públicos. Só 38% dos eleitores votaram e 56% votaram contra. A eleição de um governador nativo e a administração local foram as razões para o rechaço dos eleitores.
A Quarta Convenção Constituinte estava composta de 30 delegados eleitos em 4 de março de 1980. Em 3 de novembro a proposta foi submetida aos eleitores e uma vez mais foi rechaçada. A definição contida na proposta de constituição do que é ser um ¨Virgin Islander¨ foi a causa do rechaço.
Em 1982 foi celebrado um referendo sobre status para que os eleitores se expressassem sobre ele, antes de tentar uma nova proposta de constituição. [1]
A Quinta Convenção Constituinte foi aprovada em 2004, mas seus delegados só foram eleitos em 2007, e terminaram a redação da proposta constitucional em meados de 2009. Ela continha dispositivos que foram motivo de controvérsia, tais como que só pessoas nascidas na USVI podiam aspirar a ser eleitos como governador(a) e vice-governador(a), isenções a todas as pessoas nascidas na USVI do pagamento de contribuições sobre a propriedade; proibia o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, enquanto permitia a poligamia. A constituição proposta foi aprovada pelos delegados, mas o governador se negou a enviá-la ao Congresso dos EUA para sua aprovação por entender que tinha disposições que violavam os direitos civis. Os delegados da Convenção Constituinte o denunciaram e um juiz federal determinou que o governador não tinha a autoridade para negar o envio da proposta. O governador a enviou ao Presidente Obama que a encaminhou para o Congresso acompanhada de um extenso memorando do Departamento de Justiça, assinalando a incompatibilidade da proposta com disposições federais, entre elas as que conferiam direitos especiais para nativos e descendentes da USVI, requisitos de residência extensos para poder aspirar a posiciones eleitas, um assento dedicado à Ilha de São João que afetava a representação proporcional, e reclamações de direitos soberanos sobre as águas costeiras incompatíveis com as leis federais.[2] A constituição não foi aprovada principalmente por causa das proteções que outorgavam direitos ancestrais aos Virgin Islands aos quais não teriam direito os imigrantes recém chegados ao território. [3]
Como verão nos territórios de Guam e Samoa americana, o tema dos direitos ancestrais prima nas discussões do status.
USVI forma parte da lista de Territórios Não Autônomos (TNA) da ONU. Seus representantes do governo comparecem todos os anos aos Seminários Regionais do Comitê de Descolonização e participam das discussões. Nestes momentos quem comparece aos seminários é o vice-governador, Tregenza Roach.
Guahan / Guam
Guahan conhecida como Guam é um território não incorporado dos Estados Unidos que, da mesma forma que Porto Rico, foi cedido pela Espanha aos EUA como despojo de guerra como dispõe o Artigo II do Tratado de Paris de 1898. Guam continua nas lista de Territórios Não Autônomos da ONU.
Guam tem 212 milhas quadradas e sua população se estima que chegará a 169.000 habitante em 2019. Elegeu seu primeiro governador em 1970.
Guam foi colônia espanhola desde 1668; os Estados Unidos chegaram em 1898 e os japoneses a ocuparam de 1941 a 1944, quando foi “liberada” pelos EUA.
Guam é regida por uma Lei Orgânica de 1050 que conferiu a cidadania estadunidense a três tipos de pessoas.
(a) todos os habitantes da Ilha de Guam em 11 de abril de 1899;
(b) todos os nascidos na Ilha de Guam a partir 11 de abril de 1899;
(c) todos os nascidos na Ilha de Guam antes ou depois de 11 de abril de 1899 que não houvessem obtido uma nacionalidade estrangeira. [4]
Estas disposições sobre a cidadania só estiveram vigente por dois anos, já que em 1952 o Congresso aprovou a Immigration and Nationality Act (INA)[5] que conferiu a cidadania a todas as pessoas nascidas em Guam depois da aprovação do INA.
Da mesma forma que nas USVI, seus representantes eleitos comparecem e participam nas discussões do Comitê de Descolonização da ONU. A atual governadora de Guam, Lourdes Leon Guerrero, é uma ativista das questões de status.
Apesar da clara proibição contida na Resolução 1514 (XV) contra as atividades militares da potência administradora nos territórios, hoje Guam experimenta uma expansão militar das bases estadunidenses em seu território, de que já controlam um terço. Os Estados Unidos estão atualmente transladando os militares de Okinawa para sua base em Guam, afetando direitos ancestrais sobre terras dos habitantes originários de Guam conhecidos como Chamorros. As terras têm sido objeto de litígios e protestos por parte dos Chamorros.
Em 1972, o Congresso dos EUA autorizou uma Segunda Convenção Constituinte, que foi apresentada no Congresso dos EUA e depois para o eleitorado de Guam que a rechaçou. Em 1980 foi constituída a Comissão sobre a Livre Determinação. A comissão tinha o mandato de estudar a fundo cinco possíveis alternativas de status: independência, livre associação, Commonwealth Tipo Porto Rico, estado e status quo. Nenhum obteve mais de 50%, motivo pelo qual foi feita uma segunda votação em os dois primeiros, estado e Commonwealth. Esta última foi favorecida. A livre associação e a independência só obtiveram 4% no primeiro turno. Em 1986 redigiram o Guam Commonwealth Act e o apresentaram ao Congresso dos Estados Unidos. Quatro anos depois começaram as conversações sobre a lei, mas não se chegou a um acordo com o Congresso.
Em 1997 foi criada a Comissão de Descolonização de Guam para estudar e divulgar as opções de estado, independência e livre associação. Foi pautada a celebração de um plebiscito para 2000 conjuntamente com as eleições gerais. O plebiscito não aconteceu.
Em 2011 um ex-militar estadunidense processou o governo de Guam declarando a inconstitucionalidade do plebiscito que se organizava para consultar os habitantes sobre o status. A lei habilitadora do plebiscito identificava como eleitores aquelas pessoas que eram definidas como habitantes em 1950, no momento de ser aprovada a Lei Orgânica de Guam. Apesar da lei que habilitava o plebiscito a estabelecer a mesma definição de habitantes de Guam tal como a contida na Lei Orgânica de 1950, sem fazer distinção de raça ou etnia, os tribunais federais entenderam que esta discriminava Davis (o demandante) porque ele não podia votar ao não ter sido habitante nem descendente de habitantes de Guam em 1950. O plebiscito proposto não era vinculante, era uma consulta para conhecer as aspirações sobre status dos habitantes de Guam. Mas a Corte de Distrito (2017) e a 9ª Corte de Apelações dos EUA (29 de julho de 2019) aplicaram o precedente de Rice v. Cayetano, 528 U.S. 495 (2000). Nesse caso, um residente branco do Havaí contestou a constitucionalidade de uma lei estatal que permitia que só os descendentes nativos de havaianos votassem para escolher os que administrariam um fideicomisso de terras para benefício dos nativos havaianos. A Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu que essa era uma classificação baseada em considerações raciais no exercício do direito a voto proibida pela XV Emenda da Constituição. [6]
O Governo de Guam se enfrenta a uma imposição de honorários a favor de Davis de um milhão de dólares como parte perdedora do caso. Nesses momentos discutem se acudir à Corte Suprema, conscientes dos riscos de não prevalecer neste fórum. Em todo caso, as possibilidade de levar seu caso aos fóruns internacionais como a Corte Interamericana de Justiça ou a Corte Internacional requer o esgotamento dos recursos do estado.
Guam certamente enfrenta a luta contra o militarismo em seu território nos momentos em que EUA trava uma guerra geopolítica e econômica contra a República Democrática da China. Ademais, Guam enfrenta a ameaça do Coreia do Norte que disse possuir mísseis de longo alcance que poderiam ser lançados contra as instalações militares dos EUA em Por estas razões, Guam tem sido identificado como a ponta de lança dos Estados Unidos na região do Pacífico.
Em Guam se encontram a Base Naval dos EUA em Santa Rita e a Base Andersen da Força Aérea em Yigo. Ademais há uma Guarda Nacional de Guam. O Departamento de Defesa dos EUA controla 30% do território de Guam, Agora estão transferindo a base dos Marines de Okinawa, no Japão e sua área de tiro à parte norte da ilha, transferindo 5.000 soldados e ocupando 2.000 acres de terreno. O impacto ecológico e a falta de acesso a terras ancestrais têm provocado uma grande oposição entre seus habitantes. O grupo Prutehi itekyan: Save Ritidian, organizou-se para defender o acesso a terras ancestrais.
Como dado interessante, a cultura dos chamorros é matriarcal, suas lideranças são mulheres como a governadora e jovens ativistas como Victoria Lola León Guerrero.
O Governo de Guam organizou uma Comissão Descolonizadora com fundos aportados pelo Departamento de Interior dos EUA. A comissão tem três grupos, um pelo estado, um pela livre associação e outro pela independência, que recebem fundos nas mesmas quantidades para realizar trabalho de educação política sobre o status. Foi essa comissão, em conjunto com a universidades de Guam que organizou a conferência celebrada em setembro de 2019, à qual assisti convidada como especialista. Posso dizer que o nível da discussão foi muito alto e a capacidade de diálogo entre todos os setores é a que devíamos aspirar todos os que estamos obrigados a discutir um processo de descolonização. Em Porto Rico, a Comissão de Desenvolvimento Constitucional do Colégio de Advogados de Porto Rico é o modelo que se assemelha à Comissão de Descolonização de Guam, mas esta se compõe de pessoas da sociedade civil, não está limitada a advogados.
Samoa Estadunidense
A bandeira dos EUA foi hasteada pela primeira vez em Samoa Americana em 17 de abril de 1900 como resultado de um Acordo de Cessão (Deed of Cession). Os samoanos são “nacionais” dos EUA, mas não são cidadãos estadunidenses. Mediante esse acordo foi reconhecido aos habitantes da Samoa Americana direitos ancestrais sobre suas terras, o que limita o direito de adquirir terras àquelas pessoas que tenham pelo menos 50% de sangue samoano.
É diferente de Samoa que é uma nação independente com duas ilhas principais, Upolu e Savaii. Samoa Americana é uma ilha principal com algumas pequenas próximas. Tem uma população de 55.641 habitantes, 88.6% samoanos. Tem 199 Quilômetros quadrados.
Em virtude dos direitos ancestrais sobre suas terras, o governo e os samoanos em geral se opõe à cidadania USA porque temem que lhes seria aplicada a XIV Emenda da Constituição dos EUA que garante igualdade de direitos a todos os cidadãos dos EUA. Portanto a limitação ao direito de propriedade aos descendentes de samoanos iria contra a Constituição dos EUA e acabaria com os direitos ancestrais dos samoanos.
Os habitantes de Samoa Americana utilizam um passaporte que os identifica como US Nationals. Portanto, não têm direito a solicitar trabalhos nem benefícios para os quais se requer cidadania dos Estados Unidos.
Regem-se por uma constituição própria adotada em 1º de julho de 1967, mas o Secretário do Interior tem poder de veto sobre a legislação que for adotada pelo governo da Samoa Americana e é ele quem nomeia os membros do poder judiciário. Samoa rechaçou a imposição de uma lei orgânica, motivo pelo qual é considerada como um território não organizado. A constituição não foi submetida nem aprovada pelo Congresso dos EUA, mas pode ser emendada sem a aprovação do Congresso. Elegem seu governador e seu legislativo. O governo da Samoa Americana controla a aduana e a imigração. Tem um delegado ante o Congresso dos Estados Unidos com voz, mas sem voto.
Da mesma forma a Samoa Americana entra em conflito com a aplicação de leis como a do salário mínimo que segundo o governo afeta negativamente a indústria do atum.
As opções de status que são discutidas são: manter o status quo, uma lei orgânica como a de Guam, um Commonwealth como o de Porto Rico ou a livre associação. O governo atual apoia uma lei orgânica pois entendem que a falta dela os expõe a ações do Congresso dos EUA sem limite aos seus poderes e pedem o direito ao voto de seu delegado no Congresso.
No momento foi criado o Escritório de Status Político, Revisão Constitucional e Relações Federais que está dedicado a promover a conversação sobre o tema na comunidade, emendas à constituição e educação para os jovens.
Os habitantes de Samoa Americana têm a mais alta porcentagem de ingresso às forças armadas dos EUA. A festa mais importante é o Flag Day, que comemora o hasteamento da bandeira dos EUA em 17 de abril de 1900. Atualmente, essa data é comemorada com um semana de festa.
Uma vez terminada a II Guerra Mundial, Samoa Americana perdeu sua importância estratégica militar e a base naval situada em Pago Pago foi fechada em 1951.
Conclusão
Cidadãos ou nacionais dos EUA, no Caribe ou no Pacífico, todos os habitantes dos territórios têm se enfrentado à imposição unilateral de leis aprovadas pelo Congresso dos Estados Unidos onde só temos direito a um delegado com voz sem voto, para enfrentar a ocupação de terras para fins militares com seus consabidos impactos ecológicos, ambientais, culturais e expostos a ser objetos de ataques de inimigos dos EUA; a indiferença e o torpedeamento dos exercícios de livre determinação e o impedimento a tomar decisões próprias para salvaguardar os interesses de nossas ilhas, sempre sujeitas, em última instância, ao interesse estratégico, político e militar dos Estados Unidos.
Afortunadamente, hoje se configura uma aliança entre nossos povos que poderia nos ajudar mutuamente a exercer a pressão necessária para que os Estados Unidos não sigam ignorando os reclamos de nossos povos.
* Co-presidenta do Movimento Independentista Nacional Hostosiano, de Porto Rico
[1] http://www.onepaper.com/stcroixvi/?v=d&s=News:Local&p=62945 CONSTITUTIONAL CONVENTIONS: WHAT’S GONE BEFORE by Shirley Lincoln (May 21, 2003)
[2] http://meganpoinski.com/constitution.html
[3] Bourne, Judith L. Staement before the Caribbean Regional seminar of the United Nations Decolonization Committee, 16-18 May 2017.
[4] Organic Act, 8 USC sec. 1407 (1952), repealed by Pub, L. No. 82-414, secs. 101(a)(38), 301(a)(1) 66 Stat. 163, 171, 235 (1952) (codified at 8 U.S.C. secs. 1101(a)(38), 1401(a)).
[5] Pub. L. No. 82-414, sec. 403(a)(42), 66 Sta. 163, 171, 235 (codified at 8 U.S.C. secs. 1101(a)(38), 1401(a)).
[6] Davis v. Guam, No. 17-15719 (9th. Cir. Ct. Ap)
Tradução: Beatriz Cannabrav
Veja também