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Portugal à esquerda

Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

Foto: Glória Fluguel
Foto: Glória Fluguel

A esquerda está no poder em Portugal – pelo menos o que consideram ser esquerda aqui na Europa – após conseguir maioria para reconquistar a condução do Estado perdido nos anos de domínio da Troika.

Paulo Cannabrava Filho*

Troika é a denominação dada à articulação entre o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o FMI, que desde a expansão da globalização tem dirigido as economias dos países da CE (Comunidade Europeia) e que após o início da quebradeira geral dos bancos, em todo o mundo, tem imposto regimes de austeridade e até mesmo realizado intervenções nos países em crise. A Troika, no resumo da história, é o braço executivo da ditadura do capital financeiro.

 
A verdade é que os países entraram em crise por estarem demasiadamente endividados e obrigados a salvar o bancos no lugar de salvar a própria pele, a economia e o projeto de desenvolvimento, com risco de perda da soberania, como aconteceu descaradamente na Grécia e acontece disfarçadamente em vários países europeus, inclusive Portugal.
A coligação Portugal à Frente, formada pelo PSD (Partido Social Democrata) e CDS-PP (Partido Popular), perdeu cadeiras em favor do PS (Partido Socialista) e a coligação destes com o PCP (Partido Comunista Português) formou a coligação majoritária que hoje governa Portugal.
Antônio Costa, primeiro ministro desde 2015, era geral do Partido Socialista. Ele é o chefe de governo, forma o ministério e governa.
O presidente é o chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Souza, da coligação de centro-direita formada por PSD, PPD (Partido Social Democrata), CDS-PP e PPM (Partido Popular Monárquico) está se mostrando bastante moderado. Costa é moçambicano filho de português. Seu pai governou Moçambique quando colônia e ajudou a fundar o jornal Expresso, nos bons tempos do pós-Revolução de 25 de Abril. Nos primeiros dias de maio, concluiu uma turnê por Angola e Moçambique, onde firmou vários acordos de cooperação econômica, que são mais necessários para Portugal do que para os países africanos. Não obstante, a ajuda que o país europeu oferece é considerada cosmética, não essencial.
Interessante que tanto na África, como em Portugal ou cá no Brasil, a mídia reflete pouco, mas a população se manifesta às escâncaras contra a corrupção deslavada nos organismos de Estado, a Justiça parcial que funciona para poucos e, talvez principalmente, contra má gestão dos Estado e da baixa qualidade dos políticos atuais.
O Partido Comunista, que este ano completou 95 anos de atuação, compôs a frente de esquerda. O secretário geral, Gerônimo de Souza, diz que o apoio ao governo dependerá das medidas adotadas, posto que se oporão a tudo que significar retrocesso nas conquistas dos trabalhadores benefícios sociais à população.
Comunistas radicais condenam o apoio considerando que é um governo da continuidade da direita. O que fariam de diferente? Não há muita margem de manobra para executar um orçamento que os diferenciasse do que está a fazer a coligação governante.

Livres da Troika

Protesto3
A esquerda caminha para ver-se livre da ditadura da Troika. Está no fundamento de todas as reivindicações dos movimentos sociais. Não é tarefa fácil. Anos de alienação com cobertura da mídia deixou o país em situação muito complicada e vulnerável.
No auge do processo de globalização, quando tudo ia às maravilhas, houve um boom de obras de grande porte, financiada principalmente pelos fundos europeus e executadas em parceria público-privada. As famosas PPP não são invenção brasileira, certamente. Com a crise mundial e quebradeira geral dos bancos em 2008 parou tudo.
Sobre a quebradeira dos bancos, vale um parêntesis. É contínua desde 2008. O Deutsche Bank e o Commerzbank da toda poderosa Alemanha viram seus lucros baixarem em torno de 60%. Em Portugal está em processo uma reconfiguração envolvendo toda a banca, inclusive a estatal que está em recuperação acionária. Para o setor o caminho é a “redução da concorrência”, o que é pequeno desaparece, os bons vão sendo incorporados pelos grandes, os grandes vão sendo salvos pelo Estado e claro, e com as fusões se tornam mais grandes ainda.

Portugal, um país à venda

Protesto4
Como falta dinheiro para movimentar a economia, a culpa é do Estado Social. Solução: privatizar tudo, arrochar salários e aposentadorias, precarização do trabalho. Na contramão disso, os trabalhadores estão se organizando. As bandeiras unificadas de luta são manifestadas nas ruas diariamente e estiveram bem s sintetizadas nos cartazes das manifestações comemorativas de 25 de Abril e 1o de Maio.
No último final de semana, foi inaugurado o que talvez seja o último remanescente da fase áurea da globalização, o túnel que liga as cidades de Porto e Bragança. O túnel tem 26 quilômetros no total, é o mais extenso do continente, começou em 2008 e agora foram entregues os 5,6 Km que faltavam. Lá (como cá nas obras para a Copa), muitas outras obras estão paralisadas, como por exemplo, a do Trem Bala, novo Aeroporto de Lisboa ou a 3a travessia do Tejo. Ha muitas outras.
Agora que a esquerda está no poder, inclusive com o apoio do PCP, os idólatras do deus mercado entraram em pânico. Para estes, o arrocho econômico tem que ser total, as privatizações devem continuar para diminuir o tamanho e os gastos do Estado. Consequência dessa política hoje “Portugal está à venda”, a preços de liquidação. Ouvi essa mesma frase de Abílio Dinis, o homem do Pão de Açúcar, sobre um certo país chamado Brasil.
Para a esquerda, por sobrevivência, é preciso afrouxar e por ordem na bagunça, o que é o mais difícil. Por exemplo, a questão do ensino público. Os grupos privados, nacionais e transnacionais, estão avançando sobre a escola que era pública, risonha e franca. Lá como cá, avançam financiados com dinheiro público. Ou seja, o Estado paga por alunos que frequentam a escola privada. Diante de tamanha burrice, os protestos estão se generalizando. Onde um melhor negócio que este? Desde outubro a ordem do governo é concentrar recursos na escola pública. Parece fácil, porém, o que fazer com os que já deixaram a escola pública? O mesmo está a ocorrer com os serviços de saúde.
Outra ordem atual é tocar as obras paralisadas. O primeiro ministro tem afirmado que desde 2008 não havia tanta oferta de investimentos para Portugal. Não obstante, é com dinheiro público para sair da inércia, claro, o que por sua vez agrava o déficit e apavora os que insistem no equilíbrio fiscal, que são os que só raciocinam com a cartilha de Troika.  Haja falta de imaginação. Lá como cá, as Universidades têm muita responsabilidade pelo prolongamento da crise por deixarem de pensar o país e submeter-se ao pensamento único imposto pela ditadura do capital financeiro. É a crise na inteligência.

Pensamento divergente em Cambridge

Protesto5
Sobre a crise na inteligência, o Jornal Negócios de sexta-feira (06/05/16), publicou uma instigante entrevista com o coreano Ha-Joon Chang, há 26 anos professor de Cambridge, que chegou à conclusão de que os economistas neoclássicos atuais são como os teólogos católicos da Idade Média. A Bíblia publicada em latim não podia ser traduzida e o fiel tinha que acreditar no que o padre dizia porque sim. “As coisas são assim porque têm que ser, mesmo que as pessoas não gostem”, assevera. Ele se considera o único não neoclássico na Universidade, mas suas ideias têm inspirado grupos de economistas dissidentes por toda parte.
Chang defende que a economia não é uma ciência exata como a matemática ou a física: “É essencialmente política e é um enorme erro deixá-la aos ‘especialistas’”, afirma e, como exemplo, lembra que proibir a venda de gente (escravos) foi uma decisão política contra o usual no mercado.  Lembra também que na América Latina, o FMI e o Banco Mundial impuseram o modelo neoliberal. Nos anos 1960-70, América Latina cresceu 3,1% e nos últimos 30 anos apenas 0,8%.
Para mostrar o quanto mentem ou omitem para enganar, Chang dá o exemplo de Singapura. Quando se houve falar de Singapura, só se ouve falar do mercado livre e da sua política favorável ao capital estrangeiro. Isto é verdade. Mas não se houve falar que 90% da terra é detida pelo Estado, que 85% da habitação é pública e que 32% do PIB vêm de empresas públicas, como a Singapure Airlines…”, aponta.

O verdadeiro perigo liquida com a soberania europeia

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Uma das receitas para mover a economia é exportar. Se para todos a ordem é exportar, quem é que vai comprar? Difícil competir com as economias mais bem estruturadas como as da Alemanha e da França, por exemplo. E há os Estados Unidos que também têm como objetivo exportar e têm a vantagem de manejar o dólar a seu bel prazer. E não vamos esquecer da China, candidata a ser a fábrica do mundo e que além de inundar o mundo com seus produtos com valores abaixo do custo de produção, está a comprar tudo que encontra em liquidação, nas áreas de energia, mineração, transporte, agroindústria, e também bancos e financeiras. Na Europa há ainda mais outros complicadores: Alemanha, Grã Bretanha e migração. E, como se não bastasse, há ainda os Estados Unidos.
Alemanha, pela vocação hegemônica e o peso de sua economia. Inglaterra, por ter se transformado em neocolônia dos Estados Unidos e querer sair do da UE (União Europeia). Não obstante, alguns observadores vêem mais riscos de desintegração da União Europeia na crise migratória do que na crise financeira.
Em sua mais recente visita à Europa, o presidente estadunidense Barack Obama pediu unidade à União Europeia. Unidade para que, cara pálida? Claro que unidade em torno dos interesses de EUA. E é aí que está o maior perigo. Tem nome: a chamada Associação Transatlântica para o Comércio e o Investimento, TTIP na sigla em inglês, uma espécie de tratado de livre comércio como o que tem sido firmado com os países latino-americanos do Pacífico. Para Europa: o fim.
Para o repórter principal do Jornal de Negócios, Fernando Sobral, “o certo é que este acordo já está ferido de morte. Se o comércio é bom para os povos, a forma como os norte-americanos o encaram seria um golpe mortal no setor agrícola europeu tal como o conhecemos, desde a diversidade de sementes, às formas de produção e à própria democracia e poder dos Estados”.
Esse acordo foi subscrito na calada da noite pelas autoridades da CE (Comunidade Europeia), em Bruxelas, com os Estados Unidos, sem conhecimento da cidadania e veio à luz denunciado pelo Greenpeace.
O editorialista do Jornal de Negócios diz estarrecido que será pior que os efeitos da globalização, que atirou milhares ao desemprego, o TTIP, agora geraria milhões de desempregados “o que seria mais um passo rumo ao caos, face à pressão migratória existente”.  “É a pós democracia” define.

Piores e melhores, todos ruins

Manchete no Diário de Notícias (04/05/16): Só Grécia e Eslovênia estão piores que Portugal. Realmente. O PIB da Eslovênia está em torno de menos 1%; o déficit em Portugal fechou 2015 em 4,4% do PIB e poderá fechar 2016 em mais de 7%. O PIB que chegou à taxa negativa de 3,8% em 2013, fechou 2015 em 1.4% e parece manterá essa taxa em 2016.
EconomiaEuropa
 
Percebe-se que os investimentos públicos e privados nesses países praticamente desapareceram desde 2008. Na Espanha, os jornais de sábado estamparam o que realmente está acontecendo: três milhões de espanhóis deixam de ser classe média. Nesse período, Portugal perdeu uns 15 bilhões de euros. Uma das consequências é o aumento do déficit por conta da dívida pública e das pressões da Troika.
Porém, a ordem é reduzir o déficit. No caso de Portugal, cujo déficit em 2015 foi 4,4% do PIB, há pressão para reduzir para 2,2% o que significa um corte em torno de 900 milhões de euros, pelo menos. Conseguirá impor esse sacrifício à população? Cortes de despesas significam corte de benefícios, salários, investimento, empregos.
Se aqui em Portugal está ruim não está muito melhor nos demais países do Velho Continente. Velho por velho, não por sábio, posto que não apreendeu a lição de que esse modelo imposto pelo capital financeiro não deu certo. Se ninguém compra, como vimos, quem produz quebra. Quem tem dinheiro compra e toma conta dos centros de decisão. Nas economias mais estruturadas, onde se impõem as transnacionais, estas têm como eludir a crise, fechando uma unidade aqui, abrindo outra acolá, comprando e fundindo, aumentando a concentração.
Depois do boom, da euforia pela entrada na sociedade do consumo, agora o que se vê é desespero agravado pela maré migratória. Nos ônibus, metros, e mesmo em filas para restaurantes o que mais se fala é em desemprego. Desemprego e migração compõem um dramático cenário de xenofobia, racismo e misoginia.
Ninguém diz que a crise financeira é consequência do cassino global e de um dólar volátil que como um tsunami varre com as economias e as estruturas produtivas por todo o mundo, concentrando o poder cada vez mais em mãos de um menor número de conglomerados empresariais, de fortunas individuais e da hegemonia de Estados Unidos.
O que de certa forma tem ajudado a sobrevivência nas principais cidades europeias tem sido o turismo. Para alguns habitantes locais, uma praga, uma verdadeira invasão que não deixa espaço para o viver normal do cidadão nativo. Na Itália, por exemplo, a onda de turistas chineses é tão grande que os governos dos dois países fizeram um acordo para policiamento misto, patrulheiros chineses e italianos para dar mais segurança aos turistas.
O PS tem pressa. Quer recuperar o espaço de poder perdido, está se empenhando ao máximo para ganhar eleições nas províncias e nos municípios.
Vale a pena assinalar que a esquerda tem, hoje, apoio da Igreja de Roma. É importante porque Igreja e ditaduras fascistas dominaram este país por séculos, para não falar só do que foi a ditadura de meio século de António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano (1933-1974). Parece que hoje a Igreja de Roma começa a perceber que de aceitar a governança do deus dinheiro – o Bezerro de Ouro, na linguagem litúrgica – ficará destinada a ir para o inferno junto com os adoradores da Besta.
Então as políticas sociais colocadas pela coligação de esquerda não estão sendo radicalmente bombardeadas pela mídia. Aceitaram, sem chiar, a ampliação do desconto no IRS (imposto de renda) aos que ganham até 1.950 euros por família. Na realidade, estão todos assustados. Reunido com jornalistas no Sindicato dos Jornalistas de Lisboa, e lendo os jornais diários, percebi perplexidade em grande parte dos jornalistas locais.
 
*Jornalista, editor de Diálogos do Sul. Artigo escrito em Lisboa nos dias 5, 6 e 7 de maio de 2016.
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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