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Potências disputam controle de riquezas da África, enquanto fome se agrava no continente

Mais de trezentos milhões de pessoas se encontram em sério e iminente risco de fome. Dos 13 países em alerta vermelho, 11 são africanos
JUAN ANTONIO SACALUGA
Nueva Tribuna

Tradução:

Se em alguma região do mundo a frente antirrussa é mais frágil ou menos compacta é na África. O continente onde vive mal mais da metade da população mais pobre do planeta oferece, no entanto, uma atração não menor para os poderosos da Terra.

Nestes dias coincidem várias iniciativas políticas e diplomáticas no continente: as mais visíveis são as viagens do presidente francês, Emmanuel Macron e do ministro do exterior russo, Sergei Lavrov. Mais discretamente, as autoridades chinesas exercem uma ação constante sobre o terreno. Os Estados Unidos, em aparente retrocesso, mantêm suas bases militares sem descuidar das econômicas. A UE, que delega a Macron a liderança na região, fez no começo do ano uma tentativa de recuperação do terreno perdido.

Os africanos e africanas estão padecendo das consequências da guerra na Ucrânia, de forma menos midiática, mas muito mais contundente do que no Ocidente (1). Ali o problema não é só o aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade, e sim o desabastecimento de alimentos. Mais de trezentos milhões de pessoas se encontram em sério e iminente risco de fome. Dos 13 países em alerta vermelho, 11 são africanos, como afirma Christopher Barrett, especialista em política agrária da Universidade de Cornell. A tese deste pesquisador é que, na realidade, a atual crise global alimentar é anterior à guerra da Ucrânia e mergulha suas raízes em uma equivocada e insuficiente política mundial e particularmente ocidental (2).

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Mas enquanto a gente pobre morre literalmente de fome ou parece condenada a uma vida sem esperança, as grandes potências e conglomerados econômicos estão em uma corrida frenética para controlar seus recursos minerais, energéticos e naturais; jogam suas fichas nos incontáveis conflitos armados locais e asseguram bases militares para garantir suas posições geoestratégicas (3). Depois do final da Guerra Fria, o Ocidente parecia exercer um controle quase absoluto sobre o continente. As elites dos países outrora na órbita de Moscou tentaram manter seu status negociando fórmulas diversas de acomodação com o mundo ocidental. 

“Seis décadas depois da última onda de descolonização, os mecanismos da dependência mudaram de cara, mas continuam dominando a vida de seus 1.300 milhões de almas”

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A liderança econômica da China

Na época, a China tinha apenas uma presença marginal na região. Trinta anos depois, a conjunção do poder público e privado da China ganhou a liderança em alguns setores do desenvolvimento continental, especialmente o das infraestruturas. A aceleração destacou-se na última década. Pequim já controla quase um terço dos projetos (31%), enquanto o Ocidente ulltrapassa apenas uma décima parte (12%). Há apenas dez anos, essas porcentagens eram inversas.

O peso das grandes infraestruturas determina o conjunto da balança comercial do continente com as grandes potências. Os intercâmbios com a China somam 250 bilhões de dólares, enquanto com o Ocidente somam uma quarta parte desse montante (4). O poderio chinês se vê lastreado por problemas estruturais. O mais relevante é a dívida dos países receptores do capital chinês, o que gera um novo tipo de dependência. Esta bomba retardada também fragiliza as empresas e entidades financeiras chinesas, que estão buscando novas fórmulas para tornar mais sustentável a penetração na África.

Depois da pandemia, as autoridades de Pequim incorporaram uma visão mais ampla de suas relações na África, que transcenda o benefício econômico a médio ou longo prazo. A diplomacia chinesa parece decidida a envolver-se, não sem cautela, em esforços de mediação política para tratar de resolver conflitos regionais ou locais que podem ser muito ruins para os negócios (5).

No novo enfoque de Pequim influi, sem dúvida, a tentativa ocidental de ganhar os dirigentes considerados mais próximos. O caso mais claro é o da Zâmbia, o país que tem a maior dívida com a China. O novo presidente, Hakainde Hichilema, prometeu uma política mais independente de Pequim, chegando a cancelar alguns projetos. Biden premiou-o, convidando-o para sua Cúpula das democracias no final do ano passado. Macron decidiu agora fazer uma parada em Lusaka para garantir o bom feeling mútuo apreciado na reunião euroafricana de fevereiro último. Mas os dirigentes chineses moveram-se com rapidez e já ofereceram a Hichilema um plano de redução da dívida. Iniciativas semelhantes ocorreram em outros países (6).

O caso da Rússia é diferente, devido a sua capacidade econômica menor. A grande base do Cremlin na zona é militar. Sua indústria de armamentos encontra no atribulado panorama político e étnico africano um mercado muito proveitoso. E não só de armas; também soldados, mercenários. O grupo Wagner, que se relaciona com o magnata russo Prigozhin, um veterano associado de Putin desde os tempos de São Petersburgo, estende sua penetração por todo o continente (7). O caso mais chamativo foi o do Mali, onde as novas autoridades militares locais mostraram a porta à França, selando o destino da operação anti jihadista Barkhane (8).

Mais de trezentos milhões de pessoas se encontram em sério e iminente risco de fome. Dos 13 países em alerta vermelho, 11 são africanos

Foto: @periodistan_
Em fevereiro, a UE reconheceu que perdera demasiado terreno na África e lançou um programa de investimentos no valor de 150 bilhões de euros




Europa: recuperar o tempo perdido

A atual viagem de Macron evita o triângulo crítico (Mali, Burkina Fasso, Níger) e se concentra em Camarões, Benin e Guiné Bissau, países que se na rota do Sahel em direção ao centro do continente, onde está o outro polo da presença francesa (9). O presidente francês trata de trazer à tona os interesses de potência (neocolonial, para alguns observadores locais), e de erigir-se em delegado europeu.

Em fevereiro, a UE reconheceu que perdera demasiado terreno na África e lançou um programa de investimentos no valor de 150 bilhões de euros até 2027. A cifra pode parecer enorme, mas vários analistas e dirigentes africanos calculam que é pouco para as necessidades do continente. E, ainda assim, alguns estados europeus mostraram-se receosos ou céticos. É muito provável que as prioridades estabelecidas pela guerra da Ucrânia reduzam o alcance do plano comunitário (10).

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EUA: escala para o Oriente

Os Estados Unidos perderam o interesse econômico na África. O investimento direto baixou um terço, do pico de 69 bilhões $ em 2014 para os 46 bilhões de 2020. O comércio também perdeu valor: na década passada reduziu-se a um terço. Está projetada uma cúpula no final deste ano com os países africanos (11). Além da ajuda sanitária em função da COVID, insuficiente e tardia, Washington contempla a deriva africana com lentes fundamentalmente militares.

Preocupa-se com a penetração econômica chinesa, naturalmente, e se incomoda com a margem de influência da Rússia. O objetivo é garantir a rede de bases e alianças com que apoiar o avanço no Mediterrâneo, Oriente Médio e Oceano Índico. Às vezes surgem alarmes, como um suposto projeto de base naval chinesa na África Ocidental, que o próprio Pentágono se encarregou de desmentir (12).

Washington exerce uma influência ativa mas menos aparente do que em outras zonas. Dedica especial atenção aos conflitos mais perigosos, como o da Etiópia, pela importância estratégica do país. Outro país prioritário é o Congo, principal produtor mundial de lítio, mineral essencial, entre outras coisas, para o desenvolvimento dos carros elétricos nas próximas décadas. O grande país do coração da África pode chegar a ser uma potência petrolífera, depois da decisão do governo de Kinshasa de oferecer às multinacionais a exploração em terras de grande valor ecológico (13).

A África, imenso cemitério humano a céu aberto, guarda um tesouro. Seis décadas depois da última onda de descolonização, os mecanismos da dependência mudaram de cara, mas continuam dominando a vida de seus 1,3 bilhão de almas, tantas como as que vivem na Índia, o país mais povoado da terra.

NOTAS
(1) “L’Afrique paie déjà le prix de la guerre en Ukraine”. LE MONDE, 22 de março.
(2) “The global food crisis shouldn’t have come as a surprise”. CHRISTOPHER BARRETT (Universidad de Cornell). FOREIG AFFAIRS, 25 de julho.
(3) “Rebels without a cause. The new face of African Warfare. JASON K. STEARNS (Diretor do Grupo de Investigação do Congo no Centro de Cooperação Internacional da Universidade de Nova York). FOREIGN AFFAIRS, maio-junho de 2022, “Africans caught in the geopolitical crossfire”. FOREIGN POLICY AFRICAN BRIEF, 25 de maio.
(4) “How Chinese firms have dominated African infrastructure”. THE ECONOMIST, 16 de fevereiro.
(5) “Quand la Chine joue les mediatrices diplomatiques en Afrique et au Moyen-Orient. SOUTH CHINA MORNING POST (reproduzido no COURRIER INTERNATIONAL), 26 de março.
(6) “Where China is changing its diplomatic ways (at least a little)”. JANE PERLEZ. NEW YORK TIMES, 25 de julho.
(7) “Small bands of mercenaries extend Russia’s reach in Africa. THE ECONOMIST, 15 de janeiro; “Nostalgie et Kalashnikovs. Why Russia wins some simpathy in Africa and the Middle East. THE ECONOMIST, 12 de março.
(8) “Mali, Lybie, Soudan, Centroafrique et Mozambique: récit de cinq ans d’avancée russe en Afrique”. LE MONDE, 28 de janeiro; “The future of Russia-Africa relations”. JOSEPH SIEGLE. BROOKINGS, 2 de fevereiro; “La poutinophilie d’une partie des africans relève d’un rejet de l’Occident. (Entrevista con PAUL-SIMON HANDY, pesquisador de Camarões na Etiópia). LE MONDE, 9 de março, “Russia has big plans for Afrique”. SAMUEL RAMANI (Universidade de Oxford). FOREIGN AFFAIRS, 17 de fevereiro;
(9) “Emmanuel Macron au Cameroun et Bénin, une tournée a risqué”. LE MONDE, 26 de julho.
(10) “Sommet UE- Afrique: Paris et Bruxelles veulent rattraper le temps perdue. LE MONDE, 16 de fevereiro.
(11) “Will Biden deliver on his commitment to Africa in 2022?”. WHITNEY SCHENEIDMAN. BROOKINGS, 10 de janeiro.
(12) “Fears of a Chinese naval base are overblown. COBUN VAN DEN STANDEN (SOUTH AFRICAN INSTITUTE OF INTERNATIONAL AFFAIRS). FOREIGN POLICY, 3 de março.
(13) “Congo to auction land to oil companies: ‘our priority is not to save the planet’”. NEW YORK TIMES, 24 de julho.

Juan Antonio Sacaluga | Nueva Tribuna
Tradução: Ana Corbisier.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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