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Prestes a ser julgado, "marco temporal" pode extinguir povos indígenas, diz CIMI

Expectativa de Rafael Modesto, um dos advogados da ação, é que de que a tese dos ruralistas não prosperará no STF
Erick Gimenes
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

Prestes a votada no Supremo Tribunal Federal (STF), a tese do “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas põe em jogo a sobrevivência etnocultural de vários povos originários brasileiros, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O julgamento define a manutenção ou não do Parecer 001/2017, publicado pela Advocacia-Geral da União (AGU) durante a presidência de Michel Temer, que atende a interesses de ruralistas e deslegitima todos os processos de demarcação tramitados após a promulgação da Constituição Federal, há quase 32 anos.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), pelo menos 27 terras indígenas que aguardavam a emissão de Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça foram devolvidas à Funai (Fundação Nacional do Índio) para que fossem revisadas de acordo com o parecer.

Expectativa de Rafael Modesto, um dos advogados da ação, é que de que a tese dos ruralistas não prosperará no STF

Reprodução: WinkieMedia
Tese do marco temporal desconsidera expulsões e outros tipos de violência cometidos contra indígenas

Em 7 de maio, porém, o ministro Edson Fachin acatou pedido do povo xokleng, alvo de uma tentativa de remarcação de terra pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), e suspendeu os efeitos do parecer.

Em abril de 2019, o caso foi reconhecido como de repercussão geral pela Corte em abril de 2019, ou seja, o resultado servirá como referência para todos os outros tribunais do país. Agora, portanto, cabe ao plenário ratificar ou não a decisão de Fachin para definir se mantém o marco temporal como medida para a demarcação de terras indígenas.

O Brasil de Fato conversou com Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi e um dos advogados do povo Xokleng no caso, para entender melhor a tese que os ruralistas tentam emplacar, o que está em jogo, o que as demarcações representam para os indígenas e quais as possibilidades de resultado. 

Leia a entrevista completa:

Brasil de Fato: O que é exatamente o marco temporal? O que está em disputa?

Rafael Modesto: O marco temporal não está previsto em lugar nenhum. Muito pelo contrário, ele é inconstitucional, porque obriga e determina, segundo a tese ruralista, que os indígenas deveriam estar ocupando as áreas reivindicadas como de posse e ocupação tradicional na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, em 5 de outubro daquele ano. Associado a isso, se não estivessem ocupando, os indígenas deveriam comprovar o esbulho naquela data ou ter uma ação judicial em 5 de outubro de 88.

Primeiro, os índios eram tutelados até 5 de outubro de 88 e, portanto, não tinham legitimidade para propor ação, o que já fragiliza essa tese. Depois, por serem justamente tutelados e terem saído de uma ditadura militar, sofreram toda a espécie de violência. A gente constata, por documentos, que eles foram brutalmente expulsos de suas terras, violentados por meio de dinamite jogada nas aldeias, estricnina [substância usada para matar ratos] misturada com açúcar e colocada nas comunidades e até crucificação.

Ademais os ruralistas terem convencido alguns juízes de tribunais a aplicar essa tese, ela é inconstitucional. Tanto que, mais recentemente, a comunidade indígena xokleng pediu a suspensão do parecer que tinha institucionalizado essa tese, assinado pelo [ex-presidente Michel] Temer, e o ministro relator [Fachin] suspendeu seus efeitos.

O que vocês pedem, então, é a suspensão do parecer do governo Michel Temer, de 2017?

É justamente isso. A manutenção da decisão cautelar do relator, que determinou a suspensão dos efeitos do parecer. Segundo o regimento interno do Supremo, as decisões cautelares são levadas para referendo do plenário. Então, o que está em jogo é o referendo da medida cautelar que suspendeu os efeitos do parecer.

O que é, conceitualmente, uma terra indígena? Quais são os critérios usados para definição pelos antropólogos, por exemplo, do que deve ser demarcado?

A Constituição Federal é o principal parâmetro. Mas, no início do processo da Funai, cria-se um grupo de técnicos de trabalho, que vai ser composto por profissionais da geografia, antropologia, agronomia, de estudiosos que têm condição de chegar na área e fazer um estudo de delimitação, de conhecer, a partir de uma análise científica, quais são as áreas de ocupação tradicional dos índios, com base no artigo 231.

Tem que considerar, portanto, a área de residência, a área de perambulação, a área de caça, de pesca, de coleta, os acidentes geográficos sagrados aos índios, as áreas de lavoura e de preservação ambiental e, a mais abrangente delas, que é a área de reprodução física de cultura, que abrange tudo isso.

Se existe uma área que tem um pico, uma árvore, um lago sagrado aos índios, desde a aldeia até esse ponto, é considerada como terra tradicional. Isso é contestado pelos ruralistas, mas está escrito no artigo 231, em seu parágrafo primeiro.

No sexto parágrafo do mesmo artigo, a Constituição determina que todo título de propriedade, domínio, posse incidente sobre terra indígena é nulo de ter o direito. Se for uma posse de boa-fé, os ocupantes têm direito a indenização somente em relação a benfeitorias.

Assim determina a legislação. Qualquer descumprimento ou interpretação que vá de encontro a essa vontade é inconstitucional, assim como é inconstitucional a tese do marco temporal.

Você citou o sagrado ao indígena, e a terra é considerada algo sagrado para eles. Como a demarcação garante, juridicamente, que eles se mantenham ligados a seus territórios e, consequentemente, a suas crenças?

Tem uma questão principal, que é o que o Estado brasileiro deve aos índios. Chama reparação. Esse procedimento, o estudo antropológico, a legislação, só vai ao encontro do direito que os índios têm à reparação com relação à devolução do seu território, que sempre foi de ocupação tradicional.

A Constituição criou essa novidade importante, que é a de reparar os erros cometidos no passado com relação ao esbulho, à violência, quando os indígenas foram desterrados ou perderam parte significativa dos seus territórios.

Então, a demarcação de um território é a reparação de um erro cometido no passado, quando a União alienou, doou, às vezes de forma muito fraudulenta, as terras dos índios a particulares – hoje, grandes fazendeiros, na maioria dos casos.

Levando em conta o histórico dos ministros do STF, vocês têm alguma expectativa de resultado? O que vocês estão esperando?

Nós esperamos que os ministros sigam o parâmetro constitucional. Temos a expectativa de que a maioria do STF seja contra a tese ruralista do marco temporal, por ser inconstitucional, e que mantenha o texto constitucional na íntegra.

Temos uma crença grande no Supremo, na capacidade moral e ética dos ministros em declarar que os índios têm, sim, direito a demarcação, e que os processos na Funai têm que continuar e aquelas reivindicações ainda sem processo aberto têm que começar. Temos expectativa, sim, de ter seis ou sete votos no Supremo para garantir o futuro das demarcações.

Com essas demarcações garantidas, caso o Supremo aceite o argumento dos xokleng, não há mais discussão depois, por ser um caso de repercussão geral?

Exatamente. Em o STF solidificando, fixando uma tese, todos os processos que estão no Judiciário vão receber a carga decisória da repercussão geral, porque vincula todos os processos. Então, todos os juízes de tribunais, mesmo sendo conservadores e ruralistas, a favor da tese do marco temporal, têm que se dobrar diante da decisão do Supremo e manter as demarcações. No âmbito da administração pública e até mesmo do Congresso Nacional, também.

No âmbito da administração pública, o Poder Executivo já deixou claro que não quer fazer demarcação alguma. O STF pode obrigar a presidência e os ministérios a executar essas demarcações?

Dentro desse caso específico, não. Mas, tanto Legislativo quanto Executivo, vão ter uma certa obrigação de seguir a interpretação do STF, de dar continuidade aos processos de demarcação. Se isso não acontecer, quem vai ter a condição de entrar com ação judicial contra a União, contra a Funai, para que demarque a terra, são os indígenas. Porque eles vão ter um precedente, uma decisão vinculante do Supremo que, por óbvio, os outros poderes têm que seguir. Ficaria muito fácil de os indígenas acessarem a Justiça e buscar uma decisão para determinar que o governo federal, por meio da Fundação Nacional do Índio, inicie, continue ou finalize esse ou aquele processo administrativo de demarcação.

Então uma eventual decisão favorável, neste momento, abre espaço para os próprios indígenas reivindicarem a demarcação de suas terras?

Exatamente. E você tira a sustentação jurídica dos ruralistas, que é essa tese do marco temporal, que eles se utilizam hoje para criar leis, instruções normativas, pareceres, impedindo demarcação e mantendo uma posse injusta, ilegal e ilícita das terras indígenas. Seria um avanço muito grande na esfera dos três poderes.

E no caso de o STF decidir contra os indígenas e favorável aos ruralistas? Isso não teria mais reversão? Quais seriam as consequências?

Se o STF fixar a tese do marco temporal, vai significar, sem dúvida nenhuma, a morte cultural de muitos povos indígenas. Porque os povos, sem a terra, não terão mais o alimento de sustentação cultural, da manutenção dos costumes, das crenças, das línguas, tradições. Isso os obrigaria, então, a se incorporar à cultura do não indígena.

Digo isso porque, por meio do marco temporal, eles conseguiram anular as demarcações posteriores a 1988. São 32 anos de processos que eles vão anular. Quer dizer: se o STF fixa a tese do marco temporal, consideramos que vai haver uma verdadeira devassa cultural, uma morte cultural, em larga escala, massiva, contra os povos indígenas. Eles serão subjugados a viver nas margens das estradas ou nas periferias das cidades. Isso, para os povos indígenas é, de fato, a sua morte cultural.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Erick Gimenes

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