Pesquisar
Pesquisar

Prévias argentinas trazem para América Latina o fantasma da Grécia comandada pelo Syriza

A brutal desvalorização do peso e o aumento frenético nos indicadores de inadimplência, não podem deixar de evocar os eventos gregos de 2015
Mariano Ciafardini
i21
São Paulo (SP)

Tradução:

O esmagador triunfo popular que significou a PASO, na Argentina, deu um tapa histórico, não apenas no contubérnio neoliberal vernacular, mas no neoliberalismo em nível regional e teve, até mesmo, repercussões internacionais, que são fáceis de perceber consultando as manchetes dos principais órgãos da economia capitalista transnacional a partir da data após a eleição.

De todo o modo e para além das justificadas comemorações, após quatro anos de pavor político e econômico, deve-se levar em conta que, junto com as oportunidades, os desafios também aparecem. Entre estes últimos está um fantasma que se aproxima da Frente de Todos, vencedora do ensaio eleitoral, em que se converteram essas “eleições primárias”. É o fantasma do presidente grego Aléxis Sipras e seu partido Syriza.

A brutal desvalorização do peso frente ao dólar e o aumento frenético nos indicadores de inadimplência, aos quais, a hoje novamente esperançosa República Argentina está sendo submetida pelos “mercados”, não podem deixar de evocar os eventos gregos de 2015, quando, apesar do triunfo político do Syriza, que refletia a intenção do povo grego de se livrar dos laços econômico-monetários aos quais os países dominantes da UE e a “troica”, representativos do verdadeiro poder político econômico da “zona do euro”, a extorsão a que esses centros de poder real submeteram a Grécia, transformou essa grande conquista eleitoral, esperançosa, em (justamente na Grécia) uma vitória pírrica.

A brutal desvalorização do peso e o aumento frenético nos indicadores de inadimplência, não podem deixar de evocar os eventos gregos de 2015

Foto: Yorgos Karahalis
Ontem a Grécia, hoje a Argentina. O poder desestabilizador do neoliberalismo financeiro

Na Argentina, no domingo, 11 de agosto, a primeira contagem provisória de votos das eleições não havia terminado, quando o dólar nos mercados, que nunca dorme, já estava sendo negociado por 20% a mais do que seu valor anterior. E assim que o mercado de ações começou, todos os indicadores que medem o “risco-país” (risco de inadimplência) saltaram pelas nuvens.

É claro que o candidato a presidente da Frente de Todos, Alberto Fernández, ainda não é o presidente eleito, assim como Sipras na época do ataque da “troica” (CE, BCE e FMI), mas tampouco Sipras teve que lidar, então , com um presidente em exercício que irá trabalhar sistematicamente em favor dos interesses dos grupos financeiros, como Macri faz em nosso país.

Em favor da soberania argentina espancada, temos o fato de que não opera em nossa região econômica nenhuma férrea atadura monetária como o Euro em relação à Grécia. Mas nosso BCE é o FMI e nossa Alemanha são os EUA.

Agora está claro que o ajuste econômico que o governo Macri não pôde e não possa concretizar (ao eventualmente perder as eleições), na medida em que “os mercados” exigirem será feito automaticamente e em um curto espaço de tempo.

É aqui que devemos atentar para as diferenças, e não para as semelhanças, da República Argentina e do contexto latino-americano com a situação da Grécia, no âmbito da União Europeia.

Primeiro, embora seja óbvio, deve-se notar que a Argentina não é a Grécia. Temos enormes recursos energéticos e alimentares que nos permitem, não apenas alguma autonomia nesses campos econômicos básicos, mas a possibilidade de obter as famosas “divisas”, através da exportação. De qualquer forma, esses recursos estão em mãos privadas e uma economia de emergência e resistência implicaria em alavancar políticas altamente intervencionistas que exigem uma decisão e um consenso político que nunca é fácil de alcançar.

Outra questão muito importante é que a Frente de Todos e todo o movimento popular argentino exibem uma vontade muito maior de lutar e resistir do que a hesitante Syriza, que não poderia sequer abranger sob a mesma estratégia de luta amplos e poderosos setores da esquerda, como os do Partido Comunista Grego. Embora, parafraseando Lênin, deve-se dizer que esses potenciais de luta só são confirmados no local concreto e no momento concreto.

Mas, e talvez isso seja fundamental em termos das diferenças entre uma situação e outra, a América Latina e o Caribe estão imersos, desde 1999, num processo de avanço dos governos populares com tendências autonomistas, soberanas e anti-neoliberais. Um processo que encorajou as expectativas de integração regional, em termos exatamente opostos àqueles claramente neoliberais que governaram a construção da UE e sua dinâmica regional até hoje. Deste processo hoje subsistem regimes políticos que, teimosamente, resistem aos mandatos imperialistas, acompanhando a já histórica resistência cubana, como os governos (e grandes maiorias populares) da Venezuela, Nicarágua e Bolívia e, além disso, o recente triunfo de Andrés Manuel López Obrador, no México, abre um interessante ponto de interrogação sobre o futuro político de um país-chave, devido às suas dimensões e sua localização para qualquer estratégia de integração regional.

Neste ponto, deve-se notar que estas associações virtuosas entre os países de nossa região são viáveis se, e somente se, elas são articuladas em relação a propostas globais que também contêm virtuosidades, como as da Nova Rota da Seda ou outros acordos de cooperação com a China, Rússia ou países associados a eles, no polo asiático, ou algum tipo de cooperação sul-sul, já que no momento o “mundo ocidental” tem muito pouco a oferecer ao desenvolvimento da Nossa América  e muitas intenções de usar-nos como salva-vidas. E neste sentido também é verdade que tanto a China como a Rússia têm um quadro de manobra maior para empreender acordos plurais a nível regional (um exemplo disso é a Celac + China) do que aqueles que tinham com a Grécia e outros países da UE ou com a UE em conjunto.

Isso quer dizer que, apesar da contraofensiva neoliberal que colocou um freio importante nessa marca libertadora e latino-americana dos anos 2000-2015, a região e a Argentina, como outro país-chave do empreendimento regional integracionista-autonomista, mostram diferenças profundas com a situação da Grécia em 2015.

Nas mãos do povo argentino, que já soube nas históricas jornadas de 2001-2002 mostrar sinais de sua insubmissão, está a possibilidade de que o anúncio de um retorno ao caminho da autonomia política e da estratégia de integração de Nossa América, que se expressou nestas eleições primárias, se concretize em uma realidade que devolva a toda a América Latina a questionada esperança de poder superar a extorsão neoliberal ou seja frustrada (“se manque”, diríamos, em termos turfísticos, na Argentina) ao estilo grego.

* Professor da Universidade de Buenos Aires. Doutor em Ciência Política (UBA)

Tradução da redação do i21

Veja também


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Mariano Ciafardini

LEIA tAMBÉM

Eduardo Vasco - EUA X Indústria brasileira onde está a livre concorrência
EUA X Indústria brasileira: e a tal da livre concorrência?
Brics - alternativa aos países emergentes, risco aos EUA e benefícios à Venezuela
Brics: alternativa aos países emergentes, risco aos EUA e benefícios à Venezuela
Kamala_Trump_EUA
Nem Trump, nem Kamala: quem vai seguir no comando dos EUA são os bilionários
Giorgia_Meloni_Itália_dívida_pública
3 trilhões de euros: o que explica recorde da dívida pública na Itália?