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ToggleA saúde pública e a saúde privada no Brasil nascem quase como irmãs, mas na medida em que o Estado começa a conceber um sistema universal, a saúde privada inicia movimentos de subsistência que vão além da oferta de alternativas suplementares. “Não há uma verdadeira relação de suplementaridade entre o SUS e os planos e seguros de saúde, nem tampouco uma lógica sanitária sistêmica no funcionamento deste espaço de transações comerciais. A lógica dominante é a do ‘cada um por si’”, diz o doutor em Saúde Coletiva José Antonio Sestelo. A questão se complexifica quando o Estado vai agir na regulação desse comércio e, nesse novo cenário, as empresas passam por uma metamorfose em que precisam tanto do lucro da relação com clientes como da expropriação do Estado para assegurar a rentabilidade.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Sestelo observa que “o comércio de planos e seguros de saúde não quer se apresentar, e não se apresenta, como uma ameaça de extinção para o sistema público”. O que de fato se quer é “controlar, ajustar e subordinar o funcionamento do SUS à lógica de acumulação privada de capital e concentração de recursos assistenciais para uso preferencial dos seus clientes situados nos extratos mais altos de renda”. Por isso diz que não se pode perder a perspectiva política dessa relação. “A voracidade das empresas precisa ser compreendida também em seu componente político e nos riscos produzidos pelo aviltamento das condições básicas de reprodução da força de trabalho de grandes contingentes populacionais”, salienta.
O resultado desse processo, segundo ele, é que “o tema ‘saúde e assistência’ aparece apenas como uma paisagem em que o centro da cena é ocupado pelo processo de acumulação de capital e apropriação privada de um bem de relevância pública”. Por isso, considera fundamental que se apreenda o que está por trás dessas investidas que, segundo Sestelo “podem ser analisadas em duas grandes vertentes”. “A primeira contempla o objetivo estratégico de ganhar escala comercial com a venda de planos populares segmentados e com oferta limitada de serviços”, aponta. E completa: “a segunda está voltada a puncionar o orçamento público em um mecanismo de acumulação primitiva, que pretende transformar, em um passe de mágica, o que ontem era de domínio público em ativos privados vendáveis”. “É importante dar nome aos bois e não chamar bezerro de cabrito”, dispara.
José Sestelo (Foto: Abrasco)
José Antonio de Freitas Sestelo é graduado em Odontologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, possui especialização em Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial pela Universidade Metodista de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Também é analista judiciário – apoio especializado em odontologia, do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região e membro do Comitê de Saúde do Trabalhador da mesma instituição. Mestre em Saúde Comunitária pela UFBA, é, ainda, doutor em Saúde Coletiva pelo Centro de Ciências da Saúde/Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Entre suas publicações, destacamos o livro Planos de Saúde e Dominância Financeira (Salvador: EDUFBA, 2018).
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor observa a relação entre os planos de saúde privados e o SUS no sistema de saúde nacional?
José Antonio Sestelo – Existem esquemas de intermediação privativa de assistência na maioria dos países industrializados e urbanizados, mas, em geral, este tipo de iniciativa ocupa um espaço limitado dentro dos sistemas de saúde porque se sabe que resultam em um aumento nos custos gerais de transação e em uma tendência regressiva no que se refere ao padrão de distribuição dos recursos disponíveis, ou seja, os sistemas ficam mais caros e a oferta de recursos se concentra nos extratos mais altos de renda. A grande exceção é o modelo estadunidense. Não por acaso este país tem um gasto em saúde como percentagem do PIB quase duas vezes maior do que a média dos países de mesmo nível de desenvolvimento econômico, mas não dispõe dos melhores indicadores de saúde/doença.
A discussão política sobre modelos de organização do sistema de saúde tem ocupado o centro da cena em todas as campanhas eleitorais nos EUA, pelo menos desde a primeira eleição dos Clinton [1], e continua a mobilizar partidos políticos e organizações sociais nos dias de hoje. As despesas catastróficas com assistência hospitalar são uma causa importante de falência de pessoas físicas por lá. Uma busca rápida nos roteiros da produção cinematográfica e das séries de TV estadunidenses contemporâneas vai revelar muitos personagens que sofrem com problemas no sistema de saúde, o que é um indicador da relevância do tema para as pessoas comuns.
No Brasil, vivemos uma situação peculiar porque, diferente dos EUA, temos um sistema público de saúde (o SUS) acessível, em tese, a qualquer cidadão, mas, ao mesmo tempo um enorme esquema de intermediação assistencial privativa que favorece cerca de 28% da população e se apropria, em média, de quatro vezes mais recursos assistenciais do que aqueles que estão disponíveis para a população em geral. Esse esquema, embora seja de uso privativo, é beneficiário de uma série de subsídios à demanda, na forma de renúncia fiscal e compartilhamento da infraestrutura do sistema público, de tal forma que, na prática, o SUS e o orçamento público funcionam como uma espécie de resseguro para o seu funcionamento. Em outras palavras, só é possível vender planos de saúde de uso privativo para tanta gente com uma oferta exclusiva e abundante de serviços porque existe uma articulação íntima com a esfera pública como garantia de última linha.
Obviamente os usuários desse esquema privativo levam vantagem sobre o conjunto da população, mas quem realmente se apropria do grosso dos recursos que circulam pelo espaço de transações das empresas que comercializam planos e seguros de saúde são os controladores desse oligopólio. É digno de nota o fato de que mesmo em um ambiente macroeconômico de recessão e desemprego estrutural os balanços dessas empresas são positivos e seus lucros ascendentes. Em resumo, a relação entre as empresas de planos e seguros de saúde e o SUS é predatória e concorrencial e, ao contrário do que anuncia a retórica oficial, não alivia a demanda ao sistema público, mas dificulta uma distribuição mais equitativa dos recursos disponíveis e aumenta os custos gerais de transação do sistema, encarecendo o seu custeio.
Qual a origem da saúde suplementar no Brasil e quando (e como) ela passa a se configurar como uma ameaça ao sistema público?
As empresas de planos e seguros de saúde costumam identificar o seu mito de origem com as iniciativas mutualistas de grupos de trabalhadores organizados para proteção contra os riscos de adoecimento e morte durante o processo de expansão das revoluções industriais, mas, a rigor, a intermediação administrativa de processos assistenciais com caráter comercial compõe um leque de inovações que provavelmente surgiram nos EUA durante a grande depressão dos anos 1930 [2]. Naquele período, empresas hospitalares e as primeiras clínicas de especialidades médicas, ou medicinas de grupo, procuravam suprir a ociosidade da sua estrutura de atendimento oferecendo a possibilidade de pré-pagamento na forma de planos de saúde para trabalhadores desempregados e suas famílias.
Na década de 1960 essas inovações foram transpostas para o Brasil com adaptações e as condições políticas e institucionais posteriores a 1964 fomentaram o seu desenvolvimento. As primeiras empresas eram de empresários/médicos descapitalizados e disputavam com a assistência previdenciária subfinanciada e precarizada a clientela de trabalhadores do polo dinâmico de atividade industrial nas grandes cidades. Na década de 1970, surgiram as cooperativas de trabalho médico que adotaram uma estratégia de atuação análoga à das medicinas de grupo e surgiram também as primeiras organizações empresariais para a defesa das posições políticas e ideológicas daqueles agentes econômicos.
Em 1975, houve uma discussão sobre organização de sistemas de saúde no Brasil influenciada pela Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS/OMS e se delineou um modelo embrionário de Sistema Nacional de Saúde composto de subsistemas articulados. É no bojo dessa discussão que a atividade comercial de intermediação assistencial passa a se apresentar como um subsistema “supletivo” à assistência previdenciária e, assim, autoatribuir alguma legitimidade institucional a uma atividade que crescia sem qualquer tipo de regulação formal ou contrapartida social. É nessa época que surge o argumento falacioso de que a atividade “supletiva” das empresas médicas alivia a demanda sobre o sistema público e permite uma melhor utilização dos recursos. Nada mais distante da realidade. Está aí a história a nos mostrar.
Planos de saúde como benefícios ao trabalhador
Com a crise dos anos 1980, ao contrário do conjunto da economia que afundava na recessão, com hiperinflação e desemprego, acelerando a derrocada do regime militar, o esquema de comércio de planos de saúde prosperou ainda mais, porque as principais categorias de trabalhadores passaram a incluir em suas pautas corporativas a incorporação de vantagens salariais indiretas, como cestas básicas e planos de saúde. Na década de 1990, o sucesso do esquema comercial de intermediação despertou o interesse das grandes seguradoras que até então não haviam conseguido transformar o seu seguro-saúde em um produto vendável. A atuação política desse segmento empresarial do setor financeiro foi importante para a construção de um espaço de transações híbrido e protegido que incluísse medicinas de grupo, cooperativas médicas e seguradoras.
Venda comercial de planos
Foi também nos anos 1990 que a disseminação da venda de planos e seguros de saúde conferiu uma dimensão de escândalo nacional às contradições e desvios éticos relacionados com a negação de cobertura a pacientes crônicos, idosos e portadores de condições consideradas, pelas empresas, inconvenientes do ponto de vista comercial. O SUS, portanto, surgiu em um momento de consolidação desse tipo de prática comercial e, paradoxalmente em um momento em que os problemas decorrentes da estratificação da clientela segundo sua capacidade de pagamento e seu perfil atuarial ganharam evidência. A providência tomada pelos interessados no esquema foi mudar para conservar o essencial.
Regulação
A Lei dos Planos de Saúde e a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS como agente do Ministério da Saúde (e não da Fazenda) representaram uma conquista dos usuários porque vinculam a regulação da atividade comercial à questão sanitária e estabelecem limites à atuação das empresas. Entretanto, representaram também a validação e legitimação institucional definitiva de um esquema predatório que vai disputar com o sistema público pelo controle dos recursos assistenciais disponíveis.
O uso da expressão “saúde suplementar” ou “sistema de saúde suplementar”, transposto das tipologias eurocêntricas elaboradas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, é conveniente para as empresas porque se apropriam da legitimidade institucional do Sistema Único de Saúde (aquilo que é suplementar ao SUS é convergente com o SUS e não contraditório), mas não expressa a verdadeira natureza deste objeto. É importante dar nome aos bois e não chamar bezerro de cabrito.
Cada um por si
Não há uma verdadeira relação de suplementaridade entre o SUS e os planos e seguros de saúde, nem tampouco uma lógica sanitária sistêmica no funcionamento deste espaço de transações comerciais. A lógica dominante é a do “cada um por si”. Atualmente, há diversos interesses contraditórios implicados com a manutenção e expansão da venda de planos e seguros de saúde no Brasil envolvendo corporações de trabalhadores, partidos políticos, corporações de prestadores de serviço, distribuidores e fabricantes de insumos, donos de empresas hospitalares e um oligopólio de controladores do esquema de intermediação em si, que ocupa um lugar estratégico nessa estrutura e vincula-se aceleradamente com o capital de grupos econômicos financeirizados de escopo global.
O comércio de planos e seguros de saúde não quer se apresentar, e não se apresenta, como uma ameaça de extinção para o sistema público. Mas, de fato, pretende controlar, ajustar e subordinar o funcionamento do SUS à lógica de acumulação privada de capital e concentração de recursos assistenciais para uso preferencial dos seus clientes situados nos extratos mais altos de renda.
Como compreender a voracidade do mercado de saúde suplementar na atual conjuntura?
É difícil definir em poucas palavras a atual conjuntura no Brasil, mas é possível afirmar que vivemos uma quadra de intensificação da exploração do trabalho pelo capital com tendência de redução nas médias salariais, assim como precarização nas relações de trabalho. Entendendo a assistência à saúde como um salário indireto é de se esperar uma concentração ainda maior dos recursos assistenciais disponíveis para uso daqueles com maior capacidade de pagamento, o que é convergente com a lógica dos planos e seguros de saúde.
Entretanto, a contradição essencial entre capital e trabalho sempre vem à tona: como vender mais planos de saúde a trabalhadores em um ambiente de desemprego estrutural e queda nos níveis salariais? Segmentar ainda mais a oferta assistencial dos pacotes com o apoio do governo tem sido a proposta engenhosa das empresas.
Desde 2014, os planos de saúde voltaram a ter um destaque negativo nos noticiários da classe média em uma onda semelhante àquela que ocorreu na década de 1990. A opinião pública identifica uma “voracidade” na atitude das empresas que a cada dia cobram mais e oferecem menos (aumento da exploração do trabalho) e passam a tratar os idosos e crônicos explicitamente como “problemas” que devem ser eliminados com a imposição de barreiras pecuniárias ao acesso. Temo que essa mudança de patamar no nível de exploração não possa ser compreendida apenas como um fenômeno conjuntural ou como mais uma das muitas crises cíclicas históricas de acumulação resolvidas às custas dos extratos mais baixos de renda.
Dominância financeira
A lógica da dominância financeira parece estar ocupando todos os espaços de sociabilidade e determinando um novo modo de ser nas relações que nos distancia de referências humanistas e iluministas e projeta uma perspectiva de fragmentação e desconstrução das estruturas de proteção social mais complexas como os sistemas de saúde. A acumulação financeira não é uma novidade histórica, mas a existência de um espaço de transações global conectado em tempo real por tecnologia de processamento de informações e com uso de inteligência artificial em tomada de decisões de compra e venda é uma inovação que coloca os detentores dos meios de troca em outro patamar, o patamar da dominância financeira, que determina uma nova escala de acumulação. Esse novo modo de ser do capital não revoga o desenvolvimento industrial “produtivo”, mas subordina este, assim como outros aspectos da vida social, à sua lógica de acumulação voraz.
Não se pode, entretanto, simplificar as explicações em um determinismo desprovido de nuances e contradições. É verdade que já faz algumas décadas que o setor saúde foi alçado à condição de locus estratégico para a acumulação de capital inicialmente com a venda de insumos e equipamentos, mas agora também com a venda direta e a intermediação na venda de serviços. A voracidade das empresas precisa ser compreendida também em seu componente político e nos riscos produzidos pelo aviltamento das condições básicas de reprodução da força de trabalho de grandes contingentes populacionais. A saúde continua sendo um tema central no tabuleiro político global, mas as soluções adotadas no Brasil têm suas peculiaridades que só podem ser entendidas a partir da investigação do caso concreto.
As explicações para o fato de o Brasil ter interditado o financiamento adequado do seu sistema público de saúde desde os anos 1990 e ao mesmo tempo sucessivos governos terem estimulado o crescimento do comércio de planos e seguros de saúde a níveis que tornam disfuncional a gestão do conjunto do sistema devem ser buscadas também na esfera da ciência política.
Em que consiste a Lei dos Planos de Saúde? Que avanços ela traz e quais os seus limites?
A Lei 9.656/98 estabeleceu uma série de parâmetros à prática comercial das empresas de planos e seguros de saúde. O que existia antes de 1998 era um laissez faire bárbaro que, no limite, prejudicava os interesses das próprias empresas. O esquema de intermediação corria o risco de ser comparado aos piores processos de fraude com a venda de uma promessa de segurança que, quando reivindicada, se transformava em um pesadelo para os clientes.
Entre os principais aspectos contemplados pela nova lei estavam a vedação às exclusões de cobertura, de tal modo que os contratos deveriam atender pelo menos as entidades nosológicas discriminadas na Classificação Internacional de Doenças, as condições de urgência e emergência, e a necessidade de reabilitação quando necessário; vedação à discriminação ou seleção prévia na venda de planos em função da idade, ou condição preexistente, embora seja possível estabelecer uma carência para atendimento de determinadas condições como, por exemplo, gravidez e parto; regulação dos reajustes anuais do preço dos planos individuais e limites para o reajuste por mudança de faixa etária; limites para cobranças adicionais a título de coparticipação; previsão de cobrança de ressarcimento ao SUS por procedimentos eletivos realizados em clientes das empresas na rede pública; previsão de cobrança de multas às empresas por infrações administrativas.
Com o tempo, as empresas se adaptaram à legislação e passaram a se aproveitar das brechas legais para reforçar suas posições. O ressarcimento ao SUS, por exemplo, nunca foi efetivamente pago, seja devido a falhas no processo administrativo de cobrança por parte da ANS, seja devido a expedientes protelatórios ou questionamentos judiciais por parte das empresas. A cobrança nunca alcançou os procedimentos ambulatoriais e boa parte das internações hospitalares também ficou de fora.
A regulação de preços foi driblada com a diminuição na oferta de planos individuais e aumento da oferta de contratos coletivos de adesão com imposição de condições desfavoráveis aos clientes sem interferência da ANS. Ao mesmo tempo, diversos expedientes de negação de cobertura, principalmente de procedimentos cirúrgicos com internação hospitalar, tornaram-se prática corrente, ainda que judicialmente questionáveis. Esse mecanismo funciona atualmente como uma válvula de redução de despesas operada pelas empresas em função do seu fluxo de caixa operacional, ou seja, as empresas passaram a deter amplo controle sobre sua receita com liberdade de reajuste, já que a maioria dos contratos são coletivos e, portanto, não regulados pela ANS, e, ao mesmo tempo, controle sobre as despesas por meio de mecanismos de negação de cobertura, sempre com o objetivo de não comprometer suas margens operacionais.
Atualmente, o que está em discussão acerca da legislação que regulamenta e fiscaliza os planos de saúde? E como o senhor avalia essas propostas?
Com todas as brechas da lei e todo o know how acumulado na burla e nas estratégias de adaptação à fraca regulação existente, desde 2014 presenciamos uma nova investida das empresas no plano político para ampliação de sua liberdade de atuação às custas dos interesses dos clientes e do orçamento público. A rigor nunca houve tempo ruim para o esquema de intermediação assistencial desde que as medicinas de grupo e cooperativas passaram a atuar de forma concatenada com as seguradoras. Sucessivos governos tiram do SUS com uma mão para dar para as empresas com a outra.
Entretanto, nos últimos anos esse processo assumiu cores mais intensas com o aumento da influência política de facções vinculadas diretamente às empresas ou financiadas por elas. Um breve roteiro dessa mudança de patamar pode ser montado pelo menos desde a criação das referências normativas sob medida para a atuação do modelo de negócios das administradoras de benefícios e dos planos coletivos por adesão. No caso concreto do episódio que envolve as NRs 195/196 da ANS, temos um cenário em que fundos Private Equity sediados nos países centrais e atuantes na Bovespa identificaram na Qualicorp e em outros grupos econômicos com atuação no sistema de saúde brasileiro um potencial de faturamento por meio de operações financeiras de compra de ativos em participação societária para reestruturação e revenda por meio de ofertas públicas de ações em bolsa com realização de lucro.
Simultaneamente à súbita mudança de patamar no nível de capital dessas empresas e ao estabelecimento de vínculos de participação societária cruzadas entre grupos de empresas de prestação de serviços hospitalares, empresas de serviços auxiliares ao diagnóstico clínico, empresas de planos de saúde e administradoras de benefícios, transcorre o aumento no volume de recursos destinados pelas empresas ao financiamento de campanhas políticas de candidatos a cargos eletivos e o trânsito de representantes das empresas, ou de pessoas com evidente conflito de interesse, para o primeiro escalão de agências de governo.
Os interesses corporativos da Qualicorp, por exemplo, em um dado momento, deixam de ser os interesses de uma pequena corretora criada na periferia da região metropolitana de São Paulo com um capital inicial de R$ 2.000,00 em 1997. Passam a representar os interesses dos fundos de investimento participantes da sua composição societária que, por sua vez, estão articulados com outras empresas no setor de assistência à saúde e fora dele. Ou seja, temos aí a presença de um novo elemento com escopo de atuação abrangente, provido de um nível elevado de poder econômico/financeiro e político atuando no interior do sistema de assistência à saúde. A sequência do roteiro contempla a mudança na Lei Orgânica da Saúde que permitiu a participação de capital estrangeiro em empresas hospitalares com a anuência da liderança do governo Dilma na Câmara.
Abertura para “planos populares”
Com Michel Temer, o Ministério da Saúde assumiu definitivamente a pauta das empresas como programa de governo e foi criado um Grupo de Trabalho para encaminhar uma proposta de flexibilização da legislação para permitir a venda dos chamados “planos populares” ou “planos acessíveis”, em que se aumenta o nível de segmentação dos pacotes de assistência para permitir a redução nos preços e avançar sobre a clientela dos decis mais baixos de renda. Esse episódio marcou também o início de um processo de perda de relevância política da ANS que hoje assume contornos mais claros.
Posteriormente houve a tentativa de mudança na Lei 9.656/98 pela via parlamentar em uma comissão que pretendia, em um injustificado regime de urgência, revisar e, na prática, revogar os principais instrumentos de defesa dos interesses dos clientes das empresas. O fato é que, devido a conflitos internos entre os interessados nas mudanças e sob pressão da opinião pública de classe média, o processo foi interrompido.
Nova ameaça
Agora, veio à luz, por meio de uma notícia veiculada [3] pelo jornalista Elio Gaspari [4], uma nova proposta ainda sem autoria conhecida, mas coerente com o espírito das propostas anteriores de aumento na segmentação dos pacotes, restrições a idosos e crônicos, alívio de multas para as empresas, fim do ressarcimento ao SUS e quejandos. Marilena Lazzarini [5] do Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, Lígia Bahia [6] da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e Mário Scheffer [7] da Universidade de São Paulo – USP publicaram uma nota crítica [8] que faz uma análise preliminar, mas bastante completa do material.
Minha avaliação sobre o conjunto das propostas em circulação, e considerando também as mudanças incrementais que vêm sendo implementadas nos últimos anos, é de que o tema “saúde e assistência” aparece apenas como uma paisagem em que o centro da cena é ocupado pelo processo de acumulação de capital e apropriação privada de um bem de relevância pública. Não existe nada ali que aponte para uma melhoria nas condições de saúde e assistência das pessoas, mas ao contrário, trata-se de retirar recursos de uma área socialmente importante para favorecer processos tipicamente financeiros controlados por grupos econômicos.
Como justificar, por exemplo, que uma empresa de intermediação de processos administrativos que começou com R$ 2.000,00 de capital inicial em uma pequena sala comercial na periferia da região metropolitana de São Paulo passe a movimentar recursos da ordem de grandeza dos bilhões de reais em pouco mais de dez anos com a anuência de agências de governo? Qual teria sido a contribuição dessa empresa para o desenvolvimento econômico e social do conjunto da sociedade brasileira para merecer tanto crédito? Certamente o sistema de saúde não se tornou melhor, ao contrário, os bilhões que poderiam estar circulando na esfera econômica da prestação efetiva de serviços passaram a circular na esfera financeira da compra e venda de ativos de participação societária com pagamento de comissão para um elenco de intermediários com interesse em ganhar no volume das transações.
Trata-se de um descolamento absurdo da função precípua de um sistema de saúde que é prover uma melhor distribuição dos recursos assistenciais. Em outras palavras, novos bilionários ficaram ricos às custas da piora do nosso sistema de saúde e quotistas de fundos de participação sediados em países que não têm nenhum interesse na melhoria das nossas condições sociais passaram a auferir lucro com transações em uma escala inflada de forma artificial sem contrapartida efetiva para o conjunto da população.
Como compreender as questões de fundo na discussão proposta pelas operadoras de planos privados?
Está claro que esta discussão não gira em torno da melhoria da oferta de assistência e, muito menos, da melhoria das condições de saúde da população. Trata-se precipuamente de propostas para ampliação da escala dos negócios que utilizam o sistema de saúde como um trampolim para transações comerciais e financeiras.
Na época da liberação do capital estrangeiro para empresas hospitalares, por exemplo, muito se falou que esse aporte aumentaria a oferta de leitos hospitalares e por isso era muito bem-vindo. Na verdade, o muito pouco de estrutura nova que se construiu foi na direção de incrementar o segregacionismo sanitário que separa unidades assistenciais com padrão sofisticado de incorporação de tecnologia industrial de uso exclusivo dos estratos mais altos de renda, de unidades convencionais pauperizadas para a população em geral. Não creio que se possa chamar isso de um avanço em nosso sistema de saúde.
As questões de fundo relacionadas com os interesses das empresas podem ser analisadas em duas grandes vertentes. A primeira contempla o objetivo estratégico de ganhar escala comercial com a venda de planos populares segmentados e com oferta limitada de serviços. A segunda está voltada a puncionar o orçamento público em um mecanismo de acumulação primitiva, que pretende transformar, em um passe de mágica, o que ontem era de domínio público em ativos privados vendáveis.
Quais os riscos da privatização do sistema público de saúde?
Todo sistema de saúde moderno possui uma dimensão pública e uma dimensão privada em sua estrutura de funcionamento. A questão central nesse caso está relacionada com um modelo de organização que assegure que o interesse público seja preservado nas situações de conflito distributivo. Em outras palavras, que o sistema de saúde assegure uma distribuição equitativa dos recursos assistenciais a partir de uma lógica sanitária em que as necessidades de saúde e não a capacidade de pagamento determinam o acesso. Em uma sociedade tão desigual como a nossa, a importância de um modelo de organização que assuma essa estratégia é ainda maior, do contrário teremos uma situação em que será difícil manter um ambiente de convivência social pacificado.
Essa tese tem sido defendida pelo movimento sanitário e está bem fundamentada a partir de experiências bem-sucedidas de sistemas financiados por políticas tributárias progressivas em que os ricos pagam mais com impostos diretos sobre renda e propriedade e os pobres pagam menos. Isso não significa dizer que o sistema de saúde seja um espaço vedado a qualquer tipo de experiência privada, mas trata-se de impor limites razoáveis a esta dimensão de modo que o conceito de saúde como bem de relevância pública seja preservado.
A hipertrofia do esquema de intermediação assistencial privativa verificada no Brasil torna disfuncional a gestão do conjunto do sistema de saúde e reforça as desigualdades históricas da nossa formação social colocando em risco o interesse nacional. A discussão sobre privatização sempre aparece carregada de um forte conteúdo ideológico e vinculada a uma leitura dicotômica que divide o sistema de saúde em dois compartimentos mutuamente impermeáveis, um público e outro privado. A ideologia vai definir cada um como bom ou ruim segundo critérios opinativos.
Há diferenças qualitativas entre essas duas grandes dimensões que precisam ser reconhecidas e destacadas até para que se possa identificar as nuances e zonas de intercessão que se apresentam concretamente na realidade empírica. O mundo não é black and white, sempre há nuances e intercessões. Por esse motivo é importante um certo rigor conceitual no trato dessa questão. Quando falamos de privatização, a qual privatização concretamente nos referimos? Os planos de saúde são um fenômeno exclusivo da esfera privada ou existe um componente público em articulação com este objeto?
Onde está o público? E o privado?
Se não tomamos cuidado, nessa fronteira nebulosa da articulação entre o público e o privado em saúde podem surgir argumentos inacreditáveis como a ideia de que quanto mais pessoas têm planos de saúde melhor é para aqueles que não têm, ou a ideia de que este esquema de intermediação privativa constitui um verdadeiro sistema (ou subsistema) de assistência suplementar ao SUS.
Os trabalhadores também têm interesses corporativos e têm interesses privados, recebem salários, eventualmente têm acesso a uma consulta médica que sempre é um espaço privado de interlocução, mesmo quando ocorre em uma unidade assistencial pública. O risco que corremos é defender ideias que são contrárias aos nossos próprios interesses quando não somos capazes de definir com precisão onde está o público e onde está o privado em cada situação concreta.
Hoje, dado que muitas empresas oferecem planos de saúde privados e também muitas pessoas pagam autonomamente, já não vivemos na prática uma privatização do sistema de saúde? Por quê?
Existe um contingente importante da população que utiliza algum tipo de plano ou seguro de saúde, cerca de 28%, sem contar outros esquemas privativos como a assistência a militares e servidores públicos estaduais, entretanto a maioria da população utiliza exclusivamente o SUS ou paga por desembolso direto. É importante que se diga que essa parcela minoritária que tem acesso a esquemas privativos também utiliza o SUS naquilo que lhe convém, ou seja, transita livremente pela fronteira nebulosa entre o público e o privado.
Por outro lado, a maioria dos contratos comerciais de planos ou seguros de saúde está vinculado à relação de trabalho do beneficiário e não se trata de uma decisão de compra individual em um mercado livre. As empresas quase não oferecem planos a pessoas físicas para fugir da fraca regulação de preços praticada pela ANS. Daí as novas propostas em discussão que visam flexibilizar e fracionar os pacotes assistenciais de modo a viabilizar o aumento das vendas de planos individuais para desempregados ou para o enorme contingente de trabalhadores informais. Nesse cenário o SUS passa a ser um resseguro ou uma política pública subsidiária que complementa as lacunas e o problema de escala dos esquemas privativos.
Quais os caminhos para a manutenção e financiamento do sistema público de saúde? E como imagina ser a ação estatal ideal na regulação de planos privados?
O SUS foi concebido como um sistema plenamente sustentável financiado pelo Orçamento da Seguridade Social – OSS em conjunto com a previdência pública e a assistência social. Entretanto, a nossa história política e institucional está repleta de grandes e pequenos golpes nada republicanos em que decisões são tomadas de forma arbitrária e sem controle social. De golpe em golpe chegamos ao desmonte do Orçamento da Seguridade Social e consequentemente ao desmonte do SUS, da Previdência pública e das políticas de assistência social.
Se o OSS fosse deficitário certamente não seria possível subtrair 30% dele pelo mecanismo de Desvinculação de Receitas da União – DRU para composição de um superávit primário que, ao fim e ao cabo, se destina ao pagamento de juros da dívida pública. Portanto, os caminhos para a manutenção e o financiamento do SUS estão dados desde a sua origem, as explicações sobre o destino final e os beneficiários dos recursos que deveriam financiar a Seguridade Social é que não são claras. Sucessivos governos desde a década de 1990 implantaram e aprofundaram esse mecanismo altamente regressivo que só faz aumentar a desigualdade em nosso país.
Quanto aos planos de saúde, não há problema algum na existência de empresas que se dediquem ao comércio desse tipo de produto desde que assumam os riscos inerentes ao negócio que são, obviamente, altos. Da mesma forma, não haveria problema que particulares com capacidade de pagamento se dispusessem a comprar pacotes assistenciais de uso privativo. Em condições normais poucas pessoas poderiam pagar por isso.
ANS
A ANS passa por um momento de esvaziamento e perda de relevância política e as causas estão relacionadas com o fracasso no cumprimento da sua missão institucional. O modelo anunciado nos anos 1990 de agência de governo enxuta e profissionalizada apta à tarefa de regulação como agente do gestor federal do SUS não se viabilizou e a impressão que passa é a de que o Estado não consegue impor limites às empresas.
Talvez, como diz o professor José Carlos Braga (economista brasileiro pioneiro no estudo da dominância financeira), “a crise seja também a crise das formas de regulação extra mercado. A crise das formas públicas de regulação que tiveram vigência na expansão pretérita. Sua eficácia dissolve-se na crise, e assim as formas públicas tornam-se cúmplices da crise”. Um novo modelo de regulação será necessariamente uma novidade histórica, porque o novo patamar em que se estabeleceu o capital no século XXI se situa fora do alcance dos modelos tradicionais de regulação de inspiração weberiana que prevaleceram desde o pós-guerra.
Notas:
[1] William “Bill” Jefferson Clinton (1946): nascido William Jefferson Blythe III e mais conhecido como Bill Clinton, é um político dos Estados Unidos que foi o 42º presidente do país, por dois mandatos, entre 1993 e 2001. Antes de servir como presidente, Clinton foi governador do estado do Arkansas por dois mandatos. Tomou posse aos 46 anos, sendo o terceiro presidente mais jovem. Ele tomou posse no final da Guerra Fria e foi o primeiro presidente da geração baby boomer. (Nota IHU On-Line) [2] Grande Depressão: também chamada de Crise de 1929, foi uma grande depressão econômica que teve início em 1929 e que persistiu ao longo da década de 1930, terminando apenas com a Segunda Guerra Mundial. A Grande Depressão é considerada o pior e o mais longo período de recessão econômica do século 20. Este período de depressão econômica causou altas taxas de desemprego, quedas drásticas do produto interno bruto de diversos países, bem como na produção industrial, nos preços de ações e em praticamente todo medidor de atividade econômica, em diversos países no mundo. O dia 24 de outubro de 1929 é considerado popularmente o início da Grande Depressão, mas a produção industrial americana já havia começado a cair a partir de julho do mesmo ano, causando um período de leve recessão econômica que se estendeu até 24 de outubro, quando valores de ações na bolsa de valores de Nova York, a New York Stock Exchange, caíram drasticamente, desencadeando a Quinta-Feira Negra. Assim, milhares de acionistas perderam, literalmente da noite para o dia, grandes somas em dinheiro. Muitos perderam tudo o que tinham. Essa quebra na bolsa de valores de Nova York piorou drasticamente os efeitos da recessão já existente, causando grande deflação e queda nas taxas de venda de produtos, o que levou ao fechamento de inúmeras empresas comerciais e industriais, elevando as taxas de desemprego. (Nota IHU On-Line) [3] O texto da notícia pode ser acessado aqui. (Nota IHU On-Line) [4] Elio Gaspari (1944): escritor e jornalista brasileiro. É comentarista do jornal Folha de São Paulo, sendo seus artigos difundidos para outros jornais, dentre os quais O Globo do Rio de Janeiro e Correio do Povo de Porto Alegre. Entre seus livros, destacam-se: A ditadura envergonhada (São Paulo: Companhia das Letras, 2002), seguido de A ditadura escancarada (São Paulo: Companhia das Letras, 2002), A ditadura derrotada (São Paulo: Companhia das Letras, 2003) e A ditadura encurralada (São Paulo: Companhia das Letras, 2004). (Nota IHU On-Line) [5] Marilena Lazzarini: presidente do Conselho Diretor do Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, graduada em Engenharia Agronômica pela USP (Universidade de São Paulo), é especialista em Economia Regional e Urbana pela mesma universidade. (Nota IHU On-Line) [6] Ligia Bahia: professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. (Nota IHU On-Line) [7] Mário Scheffer: professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva – DMP da Faculdade de Medicina da USP – FMUSP, na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde. É mestre e doutor em Ciências da Saúde pelo DMP- FMUSP. (Nota IHU On-Line) [8] A íntegra da nota está publicada no site do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde – Cebes. (Nota IHU On-Line)Veja tamb´ém