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Foto: Ricardo Stuckert/PR

Para o Sul Global, construir mundo multipolar exige mais do que criar um bloco econômico

Eventual configuração e transição do sistema global depende da estratégia de diferentes atores
Guillermo Castro Herrera
Diálogos do Sul Global
Alto Boquete

Tradução:

Ana Corbisier

“E depois que tudo esteja visível e corpóreo
como um mapa, diante dos olhos,
deduzir o real significado do progresso,
prever e entrever o mundo futuro
na organização terrena,
e o destino final de nosso espírito.”
José Martí, s.f.
[1]

 

A preocupação de Martí com a organização territorial do mundo futuro se renova em nosso tempo. Assim o faz, por exemplo, o historiador Paulo Fagundes, professor de pós-graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado Maior do Exército do Brasil, em seu artigo “As novas chaves do sistema mundial: crise sistêmica e alianças fluidas”.[2]

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Ali o autor aborda o processo de transformação do sistema internacional depois da Guerra Fria, a posição que ocupam as velhas e novas potências nesse sistema, e as tendências históricas gerais e específicas na evolução deste. A esse respeito, identifica “quatro eixos de poder mundial:

1) o militar-rentista anglo-saxão;
2) o industrial desenvolvido semi soberano;
3) o industrial emergente semiperiférico;
4) o agrário, mineral, demográfico e periférico”.

Esta análise considera indicadores tradicionais como a localização geográfica do país, seus recursos naturais, o peso de sua economia, o tamanho e estrutura de sua população, sua posição geopolítica, seus vínculos com organizações internacionais, sua estabilidade político-institucional, e o tamanho e qualidade de suas forças armadas.

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Em seguida, refere esses fatores aos vínculos qualitativos entre eles, que derivam da evolução histórica, do nível de desenvolvimento social e econômico, do grau de articulação das elites no poder, da existência de um projeto nacional, das conexões internacionais e de seu posicionamento no sistema mundial, entre outros. Assim, diz

Um país pode ter um poder militar significativo e um grande tamanho, mas se encontra em declive devido a uma transformação da economia-mundo e o surgimento de desafiantes polos de poder. Além disso, apesar de ter uma economia forte e uma capacidade militar quantitativa, alguns, às vezes, têm limitações de soberania, que dificultam a conversão destes elementos em um instrumento de ação eficaz. A tabulação dos elementos materiais do poder pode gerar assim uma concepção estatística errônea e uma valoração estratégica equivocada.

Esta possibilidade torna-se evidente na crescente deterioração da organização internacional do sistema mundial surgido da Grande Guerra de 1914-1945, no qual as antigas potências coloniais europeias “passaram a ser consideradas potências médias” enquanto os Estados Unidos e a Rússia “(transformada em União Soviética)” se tornaram super potências. Ao mesmo tempo, alguns Estados “do Sul Geopolítico” surgido da desintegração do velho sistema colonial passaram a ser incluídos “na lista das potências médias (ou regionais).”

Fim da Guerra Fria e transição

No entanto, acrescenta, o fim da Guerra Fria deu início a uma transição na qual “os paradigmas explicativos e a realidade das relações internacionais tornaram-se fluidos.” O que demanda uma “visão exploratória” que permita “informar sobre ações em curso e possíveis tendências para o futuro imediato, no contexto da crise econômica desde 2008 e da desarticulação em curso da própria ‘globalização’”.

Nesse contexto, o eixo militar-rentista anglo-saxão integrado por Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e, tangencialmente Israel, dispõe de recursos militares, diplomáticos, financeiros, tecnológicos e de inteligência e comunicações que “na fase pós industrial rentista” de seu desenvolvimento lhe permitem viver “dos recursos de outras nações”. Por sua vez, o eixo industrial desenvolvido da União Europeia, Japão e os Tigres Asiáticos, com “um capitalismo industrial produtivo avançado e um alto nível de vida de suas populações”, carece de recursos de poder tradicionais como exército e soberania plena, e encara uma situação de tensões crescentes, na qual muito “depende da atitude política a ser adotada pelas nações relevantes do eixo, como Alemanha e Japão, os derrotados na Segunda Guerra Mundial.”

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Por sua vez, o emergente eixo industrial heterodoxo está integrado pelas grandes nações BRICS, especialmente China e Rússia, onde as estruturas de poder e a participação estatal na economia são relevantes.[3] Para esta “semiperiferia”, as prioridades se concentram em “evitar um conflito armado de dimensões globais e manter seu desenvolvimento econômico.”  Finalmente, o “eixo agrário, mineiro e demográfico periférico, integrado por nações medianas e pequenas da América Latina, África e Ásia (que inclui o Oriente Médio)” dispõe de “recursos humanos, agrícolas ou minerais abundantes (inclusive energia)” e de uma população numerosa, mas não tem “capacidade militar nem articulação diplomática”, tendendo a atuar de maneira fragmentada e constituindo uma zona em disputa pelos demais eixos.

Isto gerou “um Equilíbrio (instável) de Poder Global” que opera em “dois níveis de divisões internacionais, não exatamente superpostas: uma política e outra econômica”. Assim, nas divisões políticas que afetam a distribuição do poder global se opõem por um lado China e Rússia, e por outro as potências anglo-saxãs, com o grupo União Europeia/Japão como aliados recalcitrantes. Enquanto isso, as divisões econômicas ultrapassam a visão de “emergentes versus declinantes”, em um mercado mundial de desenvolvimento desigual e combinado em que desempenham um papel crescente as empresas transnacionais.

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Assim, a China mantém uma “relação simbiótica” com os Estados Unidos e a disputa comercial que os enfrenta hoje “bem poderia fazer parte da renegociação do ‘pacto’ econômico entre ambos.” Para os Estados Unidos, acrescenta Fagundes, o problema maior está em uma Europa “unida em torno da Alemanha (competidor capitalista avançado) e na relocalização de Estados semiperiféricos em sua região de controle geopolítico” como o Brasil. A esse respeito, cita o historiador Emmanuel Todd, para quem

“não haverá nenhum império americano. O mundo é demasiado vasto, diverso e dinâmico para aceitar o predomínio de um só poder. A avaliação das forças demográfica, cultural, industrial e monetária, ideológica e militar que transformam o planeta não confirma a visão atual de uma América invulnerável. […] Uma imagem realista [mostra] uma grande nação cujo poder era inquestionável, mas cujo declive relativo parece irreversível. Os Estados Unidos eram essenciais para o equilíbrio do mundo; eles não podem hoje manter seu nível de vida sem subsídios do mundo.  Os Estados Unidos, por seu ativismo militar teatral, dirigido contra Estados insignificantes, tenta ocultar seu refluxo. A luta contra o terrorismo, Iraque e o “eixo do mal” não são mais que pretextos. Porque já não têm forças para controlar os atores mais importantes que são Europa e Rússia, Japão e China. Os Estados Unidos perderão esta última partida pela dominação mundial. Tornar-se-á uma grande potência entre outras”.[4]

Três momentos

Para Fagundes, nos movemos assim em uma circunstância que tomou forma em “três momentos sequenciais e interconectados”: o Governo de Trump, a pandemia de COVID-19 e a guerra russo-ucraniana. Aos dois primeiros, diz, “ainda falta reflexão mais profunda e audaz por parte do establishment acadêmico politicamente correto.” Quanto ao terceiro, “as contradições amadureceram”, pois “a política de sanções da ‘Comunidade Internacional’ (basicamente a anglosfera, Europa, Japão e Coreia do Sul, 25% do mundo) provocou um curto-circuito econômico-financeiro e um novo recesso global.”

Em suma, a eventual configuração de um mundo multipolar “ainda depende da estratégia dos diferentes atores.” Assim, enquanto a “anglosfera” busca dividir o campo contrário, aproveitando seus conflitos e contradições de longa data, os integrantes dos outros três eixos – em particular os vinculados ao BRICS – não buscam tanto “criar um bloco econômico, mas sim obter melhores oportunidades, em um mundo estável e com regras realmente comuns.”

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Em todo caso, ante uma transição sistêmica de tal complexidade, será conveniente recordar a advertência que acompanhou as preocupações de Martí em 1891:

“Nem uniões da América contra a Europa, nem com a Europa contra um povo da América. O caso geográfico de viver juntos na América não obriga, senão na mente de algum candidato ou de algum bacharel, à união política. O comércio vai pelas vertentes de terra e água e atrás de quem tenha algo que trocar por ele, seja monarquia ou república. A união com o mundo, e não com uma parte dele; não com uma parte dele, contra outra. Se algum dever tem a família de repúblicas da América, não é ir atrás de uma delas contra as repúblicas futuras”.[5]

Alto Boquete, Panamá, 9 de maio de 2024

Referências

[1] Libros (s.f.). Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. XVIII, 291

[2] Revista da Escola Superior de Guerra, v.38, n.84, p. 130-151, set.-dez. 2023. Brasil.

https://revista.esg.br/index.php/revistadaesg/article/view/1333/1089

[3] A palavra BRICS designa uma associação e fórum político de países emergentes formada em 2010, que constituiu um espaço internacional alternativo ao G7, integrado por países desenvolvidos. Toma seu nome das iniciais dos países que o constituíram originalmente: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. https://es.wikipedia.org/wiki/BRICS

[4] TODD, Emanuel (2013:24): Depois do Império: a decomposição do sistema americano. Rio de Janeiro: Registro.

[5] Ibid., “La Conferencia Monetaria de las Repúblicas de América”. La Revista Ilustrada, Nova York, maio de 1891. VI, 160.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Guillermo Castro Herrera

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