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ToggleAto de movimentos pró-democracia, antifascistas e antirracistas terminou em repressão, com bombas de gás lacrimogêneo e tiros de balas de borracha disparados pela Polícia Militar, além de detidos, neste domingo (7/6), na região de Pinheiros, na zona oeste da cidade de São Paulo.
O protesto teve concentração no Largo da Batata e lembrou vítimas de violência do Estado e do racismo: Miguel, garoto negro morto aos 5 anos, quando a mãe o deixou aos cuidados da patroa branca, João Pedro, assassinado aos 14 anos em São Gonçalo (RJ) durante operação policial, e Agatha Felix, 8, também morta em ação da polícia no Rio.
O desfecho foi diferente da manifestação de grupos bolsonaristas, que aconteceu na Avenida Paulista, no centro da capital, e que terminou com pelo menos 14 pessoas levadas ao 78º DP (Jardins), sendo a maioria adolescentes que estariam a caminho dos protestos pró-democracia.
De acordo com balanço divulgado pela Secretaria de Segurança Pública de SP, 32 pessoas foram detidas nos atos. Uma das detenções foi da DJ Saskia. Levada ao 14º DP (Pinheiros) com outras 15 pessoas, foi liberada no fim da noite.
Pedro Ribeiro Nogueira/Ponte Jornalismo
Manifestantes no Largo da Batata, zona oeste de SP: protesto antirracista e pela democracia.
Momento em que a DJ Saskia, uma das 16 pessoas detidas e levadas ao 14º DP durante manifestação em SP, foi liberada. Ela foi atingida por bombas de gás que a @PMESP lançou para reprimir manifestantes. “Saí, tá tudo bem, estou com minha câmera aqui”, disse em seu Instagram pic.twitter.com/ULsEOgkMKB
— Ponte Jornalismo (@pontejornalismo) June 8, 2020
A divisão dos protestos se deu após o governo do estado entrar com uma ação civil pública que foi acatada pelo juíz Rodrigo Galvão Medina para impedir que os dois grupos marcassem atos no mesmo local e horário.
Na Avenida Paulista, os policiais seguiram à risca a orientação de revistar pessoas que estivessem com mochilas. Por volta das 10h, quando o ato de bolsonaristas estavam programado para começar, o fotojornalista Flavio Galvão foi revistado na estação Trianon do metrô.
Os grupos de bolsonaristas se concentraram em frente ao prédio da Fiesp, o que já é uma tradição, sob forte segurança policial. A reportagem testemunhou que alguns também foram revistados, mas não houve detenção neste ponto da av. Paulista.
No entanto, em outro local da avenida, dois adolescentes, de 17 e 15 anos, foram apreendidos por policiais. Segundo o boletim de ocorrência, os policiais militares Pedro Henrique Galhardo e Alex Mota Gonçalves, do 11º Batalhão da PM, decidiram abordá-los ao saírem da estação Consolação porque “se depararam com um grupo de pessoas vestidas de preto que iriam participar de manifestações com ideais políticos diversos daquele marcado”.
Ao realizarem a revista, informam que encontraram um pedaço de madeira, uma garrafa pet com líquido “possivelmente inflamável”, quatro garrafas de vidro com pedaços de pano e uma garrafa plástica com óleo.
Os PMs levaram os dois jovens à Fundação Casa, segundo o registro, para verificação de antecedentes porque ambos estariam sem documentos e depois os encaminharam ao 78º DP.
Segundo um dos adolescentes, no boletim, o material apreendido era para “se defender de possível embate com grupo de manifestantes contrários às suas ideologias”, já que estavam a caminho das manifestações antirracistas e antifascistas. Eles foram liberados e o caso foi registrado como apreensão de objeto.
De acordo com o advogado que atendeu os dois e outros oito detidos, no entanto, os rapazes disseram que foram agredidos pelos policiais durante a abordagem. “Eles disseram que receberam chutes e empurrões, tiveram as roupas que levavam na mochila rasgados”, declarou Alberto Pellegrini.
No mesmo horário, no vão do Masp, outro quatro rapazes, sendo dois de 18 anos, um de 39 e um adolescente de 17, foram detidos pelos policiais André Luiz Leal Ferreira e Marcio Inacio da Silva.
De acordo com o boletim de ocorrência, os PMs pediram para o trio de jovens saírem do local porque iriam participar de manifestação divergente. O trio saiu, mas retornou ao vão e foram abordados, sendo que um deles estava com uma mochila na qual foram encontrados um desodorante, uma garrafa de suco plástico vazia, uma cera de cabelo e três celulares quebrados.
Durante a revista, segundo os policiais, o homem de 39 anos apareceu questionando a abordagem e como não houve resposta, teria os chamado de “folgados e policiais de merda”. Os quatro foram algemados.
Os três rapazes disseram que estavam a caminho da manifestação pró-democracia e que apenas souberam a mudança do local depois. Já o homem disse que os policiais o mandaram se afastar de “forma ríspida” e que apenas os chamou de “folgado”. Apenas ele vai responder por desacato, mas os celulares de todos foram apreendidos para investigação.
Outros quatro jovens, sendo um deles adolescente, também foram detidos na região por estarem vestidos de preto, segundo a versão dos policiais Cesar de Jesus Costa e Larissa Siqueira Porcassim. Com eles, foram apreendidos celulares, uma chave de roda, leite de magnésio e um panfleto do MPL (Movimento Passe Livre), que luta pela gratuidade da tarifa do transporte público, sobre como agir em abordagens da PM.
O panfleto, inclusive, foi alvo de indignação do delegado da seccional Roberto Monteiro, que declarou à imprensa ser um material de “provocação às forças policiais, que não é propícia e adequada para a sociedade”. Na ocasião, três delegados estavam no DP.
A Ponte divulgou a informação mais cedo no Twitter e o MPL publicou a seguinte nota em resposta. “Fizemos esse panfleto para a luta contra o aumento do início do ano. É um absurdo e abuso que um panfleto seja motivo de detenção. PM-SP criminalizando as tentativas legítimas de autodefesa dos manifestantes em mais um ataque ao direito de manifestação”.
A reportagem questionou a delegada plantonista Luciana Peixoto a respeito das detenções para averiguação e sobre o panfleto, apesar de não terem sido encontrados objetos ilícitos. “Eles vieram para cá porque estavam em manifestação contrária a deles e poderia estar com algum objeto guardado, algo que você não poderia fazer alguma revista no meio do público”, afirmou. Ela confirmou que portar o panfleto não é ilegal, mas que os manifestantes estariam “aguardando que os policiais viessem contra eles”.
Os celulares desses quatro também foram apreendidos para “investigação de grupos que organizam manifestações violentas”, segundo o registro.
Já no Largo da Batata, em Pinheiros, os movimentos negros e as organizações Frente Povo Sem Medo e Somos Democracia se concentraram por volta das 14h e permaneceram no local.
Mais tarde, por volta das 16h, manifestantes presentes tentaram puxar o ato para seguir andando pela rua dos Pinheiros, momento em que foi barrado diversas vezes por um cordão da Tropa de Choque. Às 18h37, próximo à estação Fradique Coutinho, policiais lançaram bombas de gás lacrimogêneo que também estouraram do lado da reportagem.
Concentração ao lado da estação Fradique Coutinho. PMs fecharam uma das saídas da rua dos Pinheiros para tentar conter manifestantes
Foto: João Leoci pic.twitter.com/yv2TXf125X
— Ponte Jornalismo (@pontejornalismo) June 7, 2020
Cerca de 16 pessoas foram detidas, segundo a PM, porque começaram a “hostilizar policiais e depredar bancos”, sendo que uma viatura teve o vidro quebrado. O grupo foi levado ao 14º DP (Pinheiros) e liberado cerca de duas horas depois. Uma das detidas foi a DJ Sakia, que relatou em rede social ter sido atingida pelas bombas.
Atualização: A DJ Saskia, uma das 16 pessoas detidas e levadas ao 14º DP durante manifestação em SP, foi liberada. Ela foi atingida por bombas de gás que a @PMESP lançou para reprimir manifestantes. “Saí, ta tudo bem, estou com minha câmera aqui”, disse em seu Instagram https://t.co/LvvjOkMZ7w
— Ponte Jornalismo (@pontejornalismo) June 8, 2020
A reportagem viu duas pessoas pichando um banco na rua uma hora antes das bombas.
A PM perseguindo gente depois de horas do ato disperso. É absurdo atrás de absurdo! É preciso acabar com a PM! pic.twitter.com/V6qA5lsDK9
— Luka (em ?) (@lukissima) June 8, 2020
As imagens mostram policiais colocando pessoas contra a parede e dando pontapés. A ação policial aconteceu horas depois do final dos protestos ao lado de um supermercado localizado na rua Teodoro Sampaio.
‘Estado atua com dois pesos e duas medidas’
Para o consultor voluntário da Educafro e doutorando e Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Irapuã Santana, a atuação das polícias neste ato em comparação ao que ocorreu no domingo passado (31/5), “mostra o Estado atuando com dois pesos e duas medidas”.
Diferentemente do protesto anterior, a Secretaria de Segurança Pública mobilizou mais de quatro mil policiais para atuarem e determinou para este domingo a proibição de porte de tacos de beisebol, guarda-chuva, bastão para tirar fotos, materiais, objetos cortantes ou pontiagudos, bebidas alcoólicas, arma de fogo ou branca de qualquer espécie.
Irapuã compara a cena que foi gravada de uma mulher bolsonarista com taco de beisebol sendo escoltada por um PM, no protesto do último domingo. “Eles até explicaram que houve reclamações em relação a isso e que atuariam com mais rigidez, mas sabemos que atos que falam da questão racial no Brasil são sempre mais duros do ponto de vista da repressão policial”, afirma. “É lamentável você aplicar a lei apenas para um dos lados”.
No 78º DP, a delegada Zuleika Gonzalez confirmou à reportagem que a mulher não foi encaminhada à delegacia e que por isso não haveria inquérito sobre a atuação dela. Porém, aponta que há outros inquéritos em curso sobre as bandeiras neonazistas e as ações de domingo passado.
Já em relação às detenções, Irapuã entende que a liminar do Tribunal de Justiça foi “foi expressa no sentido de que não poderia haver uma reunião de manifestantes contrários” e que não haveria necessidade de pessoas serem detidas, a não ser que grupos grandes tivessem a intenção de se aglomerarem para entrar em confronto, o que culminaria em crime de desobediência. “Você pegar quatro pessoas apenas não é uma manifestação antifascista”, argumenta. “A pessoa pode estar passando por lá e [av. Paulista] e esse ser o caminho dela até o Largo da Batata”, analisa.
Para ele, foi “desnecessário” encaminhar os adolescentes à Fundação Casa para averiguação de antecedentes. “Essa averiguação, eu entendo que poderia ter feito por meio de ofício, hoje em dia a gente tem internet, um monte de coisa em que é possível fazer essa verificação”, aponta.
Além disso, o consultor da Educafro também defende que “não faz o menor sentido criminalizar ou colocar o panfleto como prova de que a pessoa estava cometendo crime, é liberdade de expressão”.
A Ponte procurou a assessoria de imprensa do ouvidor Elizeu Soares Lopes para que ele comentasse a atuação da polícia. A assessoria sugeriu falar com a Ordem dos Advogados do Brasil que estava junto com o ouvidor acompanhando os atos e a reportagem insistiu no pedido de entrevista com Lopes, mas não obteve retorno.
Ao Uol, Elizeu, que estava próximo em um momento de conflito entre policiais e manifestantes, afirmou que PMs agrediram porque foram agredidos e negou bombas de efeito moral. “Não é barulho de nada”.
O que diz a polícia
Na noite deste domingo (7/6), a Secretaria de Segurança Pública de SP divulgou uma nota afirmando que “as forças de segurança do Governo do Estado de São Paulo atuaram para proteger as pessoas e garantir o direito à livre manifestação”, que houve atuação de policiais mediadores e que houve “quebra de ordem e vandalismo na dispersão”.
A pasta informou que 32 pessoas foram conduzidas aos distritos policiais (4º, 78º e 14º DPs). Na região da Avenida Paulista, duas pessoas foram detidas com gasolina, óleo e demais materiais utilizados na elaboração de coquetéis molotov.
A polícia informou que quando o protesto estava quase terminando, um grupo insistiu em seguir para um trajeto diferente do combinado, obrigando os policiais a conterem o avanço das pessoas. “Um grupo de vândalos, no entanto, passou a hostilizar os policiais e depredou duas agências bancárias na região. Uma viatura da PM também foi atingida por uma pedrada e teve o vidro lateral traseiro quebrado”, detalhou a nota.
Protestos pelo Brasil
Manifestações foram registradas em outras capitais brasileiras. No Rio de Janeiro, atos puxados por movimentos negros destacaram a bandeira antirracista e aconteceram em Copacabana, na zona sul da capital fluminense, e no centro da cidade. Os manifestantes lembraram assassinatos recentes cometidos pelo Estado, como a morte de João Pedro Matos Pinto, 14 anos, com um tiro de fuzil quando estava dentro da casa de familiares, e João Victor, 18 anos, morto no Complexo do Alemão. O ato reuniu cerca de 5 mil pessoas, segundo reportagem do Alma Preta.
O comunicador e fundador do Coletivo Papo Reto Raull Santiago fez transmissão ao vivo do ato e publicou algumas imagens em sua conta do Twitter.
Lutar para garantir! ✊?#blacklivesmatter #vidasnegrasimportam.
? #katortorelli pic.twitter.com/SusEBkLK8p
— Santiago, Raull (de ?)? (@raullsantiago) June 7, 2020
Segundo o G1, 40 pessoas foram detidas durante o ato no Rio. Na capital mineira, os protestos tiveram concentração na Praça Sete e os manifestantes caminharam até a Praça da Liberdade, terminando o ato, também com críticas ao racismo, em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil, conforme registrou o Estado de Minas.
Em Brasília, o lema “vidas negras importam” também dominou a pauta de protestos contrários ao governo na Esplanada dos Ministérios. Havia um grupo bem menor, segundo o Uol, de apoiadores de Jair Bolsonaro.
Em Porto Alegre, os atos antirracista e antifascistas caminharam juntos pela capital gaúcha, no caminho isolado pela Brigada Militar. O ato antirracial que protestava pela vida e justiça para as pessoas negras assassinadas no Brasil, iniciou na Praça do Tambor, no Centro Histórico de Porto Alegre, e logo se juntou ao movimento antifascista que se reunia na Esquina Democrática.
Para a estudante Maiara Gonçalves, de 20 anos, a pauta antirracista foi ofuscado pelos gritos de ‘Fora Bolsonaro’. “Não que não seja importante, mas a nossa mobilização é pela vida do povo negro. Aqui está todo mundo gritando por democracia, mas esquecem que, no Brasil, não há democracia racial. Precisamos focar nesta pauta e não esvaziá-la, esquecê-la. Precisamos de atos realmente antirracistas”, disse.
A veterinária Angela Antunes, 45 anos, participou dos dois atos e destacou a importância do movimento. “É muito complicado sair no meio dessa pandemia, mas não podemos deixar que o movimento fascista aumente cada vez mais. Então, temos que ir para as ruas, o povo negro de periferia continua saindo nas ruas, não existe isolamento para a maioria dos nossos. Então está na hora de lutarmos contra isso, derrubar o governo Bolsonaro e mostrar que vidas negras importam”, disse.
Para o publicitário Faylom, de 28 anos, não há como não participar dos atos. “Meu povo já é morto muitas vezes e não tem como eu não me relacionar com qualquer morte, com o Miguel, com George Floyd e eu não aguento mais viver com medo. Então eu vou sair todos os dias e lutar o quanto eu tiver que lutar, porque não dá mais para pensar e fazer depois” contou.
Não houve mobilização pró-Bolsonaro em Porto Alegre, neste domingo.
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