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Protestos contra Jovenal Moise aumentam: E se o Haiti se levantar de novo?

O país onde negros escravizados primeiro tomaram o poder; a nação humilhada por uma intervenção que já dura 15 anos está em pé de guerra. Por quê?
Lautaro Rivara
Desacato
Lisboa

Tradução:

O clima social está esquentando no Haiti, enquanto as frustrações sociais se acumulam em um barril de pólvora que nunca é desativado. Depois das intensas mobilizações do ano passado, com epicentros maciços e radicais nos meses de julho, outubro e novembro, a trégua tácita no final do ano deu lugar a um período natalino materialmente pobre, porém tranquilo. Mas as festividades não foram mais que o um breve interlúdio, Em breve recomeçariam as batalhas contra o alto custo de vida, a corrupção endêmica, a crise social e econômica e a ausência de um modelo de nação para a primeira república independente surgida na História deste lado do Rio Bravo. Os protestos já ocorrem vários dias intensos e nada parece indicar que cessarão.

Os primeiros sintomas deste novo ciclo de protestos apareceram quando jovens insatisfeitos com a ação policial em uma disputa de terras incendiaram a delegacia de polícia na cidade de Montrouis, no departamento de Artibonite.

A resposta, previsível, foi a rápida militarização de uma cidade pacífica. No dia seguinte ao incidente, as forças especiais dos Corpos de Intervenção e Manutenção da Ordem (CIMO) já estavam fazendo sua longa siesta em frente ao mercado da cidade, e ninguém conseguia se lembrar de como haviam chegado lá ou com qual propósito. Mas logo o conflito começou a se multiplicar em diferentes áreas do país até o dia explosivo de 7 de fevereiro, aniversário da fuga do país do ditador Jean-Claude Duvalier. Desde então começaram a se combinar todo o repertório de ações de rua imagináveis: concentrações esporádicas, imensas mobilizações espontâneas, caravanas de motos, greves de transportadores, a queima de delegacias de polícia e prédios do governo e, sobretudo, milhares de barricadas que rapidamente tomaram a capital e os dez departamentos do país.

O país onde negros escravizados primeiro tomaram o poder; a nação humilhada por uma intervenção que já dura 15 anos está em pé de guerra. Por quê?

Foto: Jeanty Junior Augustin
Manifestantes tomam as ruas da capital do Haiti

Há semanas a escassez de combustível não para de se agravar. As longas filas se formavam nos postos de gasolina deram lugar a portas fechadas e a pistas vazias, sem carros ou transeuntes. Os últimos litros de circulação legal foram engolidos pelo contrabando, e agora só é possível obter combustível nas ruas, depois de negociações árduas e a preços impossíveis. Nestas escaramuças está o pequeno consumidor, que arca com toda a perda — desde o motorista que precisa ligar sua motocicleta para comprar seu consumo diário de arroz com feijão, até a vendedora que precisa acender su mechero para continuar suas vendas no varejo nas horas sem sol As causas da escassez têm a ver com os empréstimos contraídos pelo deficitário Estado haitiano, que deve pagamentos milionários à empresa que concentra as importações. Os monopólios, sem remorsos, acertam contas esmagando os dentes de toda a população com o poder de paralisar o país. As ruas estão quase vazias e os preços de todas as coisas, desde o transporte até a comida, estão nas nuvens. A economia diária é desfeita, e a rotina daqueles que lutam por sua subsistência no país mais pobre (ou melhor,  empobrecido) de todo o hemisfério está paralisada.

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Enquanto a agenda internacional volta todos seus holofotes para a golpeada Venezuela, a grave crise haitiana passa, uma vez mais, praticamente despercebida. E às razões do isolamento sofrido pela nação caribenha, onde fatores políticos e econômicos são ainda mais decisivos que sua condição insular ou sua singularidade linguística, acrescenta-se um fato fundamental. O ensimesmado governo nacional de Jovenel Moïse, atravessado por oito dias de protestos e rejeitado por praticamente todos os setores da vida nacional haitiana, acaba de sinalizar um alinhamento à diplomacia de guerra dos EUA, reconhecendo junto à OEA a legitimidade do auto-proclamado Juan Guaidó, o “Cão branco”, como foi chamado o “presidente” recentemente ungido pelo Departamento de Estado.

A política abstencionista que o Haiti vinha mantendo com outras nações do Caribe tinha sido determinante para evitar que os Estados Unidos e o Grupo de Lima expulsassem a Venezuela desse organismo inter-regional, em fevereiro de 2018. A política pragmática e mendicante de Moïse, no entanto, dificilmente poderia ser confundida com a afinidade ideológica com o socialismo do século XXI. Puxado do cinturão, Moïse voltou rapidamente ao redil, traindo os laços históricos do país com a Venezuela e, especialmente, a política generosa mantida por Hugo Chávez Frías e a plataforma de integração energética Petrocaribe desde 2005.

Portanto, hoje quase ninguém aponta que, se é para combater emergências humanitárias, êxodo migratório, insegurança alimentar, repressão estatal e ausência de democracia, o foco de preocupação deve ser o Haiti devastado e os olhares cautelosos sobre sua classe política e seus adereços internacionais. Mas é evidente, dado o apoio irrestrito dos Estados Unidos ao apartheid israelense ou o regime desordenado da monarquia absolutista saudita, que o objetivo é garantir a exploração do petróleo bruto venezuelano e completar o processo de recolonização continental inaugurado com o golpe em Honduras exatamente uma década atrás. Os demais são apenas álibis mais ou menos imaginativos, como as armas de destruição em massa do Iraque ou o patrocínio do terrorismo por Cuba.

A esta ressonante indiferença à crise haitiana devemos acrescentar uma explicação ligada ao racismo secular de um mundo colonialmente estruturado desde os tempos da escravidão das lavouras e do comércio triangular. O racismo que faz com que vários setores, mesmo progressistas ou “esquerdistas”, se deslumbrem com a “elegância” com que brigam nas ruas de Paris milhares de coletes amarelos (certamente dignos), mas desprezem as batalhas desesperadas de um povo negro e do terceiro mundo que não parou de mobilizar centenas de milhares, e até milhões, desde a revolta popular de julho de 2018

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A palavra “ladrão” tem no crioulo, a língua nacional dos haitianos, uma conotação muito mais forte do que em outras línguas continentais, como português, espanhol e inglês. Não é um termo de uso frequente ou uma palavra de conotações leves. O roubo é considerado uma ofensa grave para toda a comunidade. Por isso, em algumas áreas rurais ainda é severamente punido, com métodos de justiça auto-geridos pelas próprias comunidades. É por isso que caracterizar o presidente da república e toda a classe política como ladrões vis, é um fato menos frequente e ainda mais significativo do que em muitos dos nossos países. A acusação está relacionada ao desvio de fundos públicos, comprovado pelo Senado haitiano e investigado pelo própio Tribunal Superior de Contas, que acusa altos funcionários do atual governo e do governo presidencial anterior de Michel Martelly. A soma dilapidada pela classe política local, em conluico com diversas corporações, é de cerca de 3,8 billhões de dólares, destinados a atender às necessidades infra-estruturais infinitas do país. São fundos que a Revolução Bolivariana concedera generosamente no âmbito dos programas de desenvolvimento da Plataforma Petrocaribe.

Se a essa corrupção endêmica adicionamos a delicada situação da economia e da sociedade haitiana, podemos facilmente compreender o rancor acumulado e desejo de transformação social, expressos nas ruas por meio de um mosaico que contraditoriamente expressa a união e setores políticos, urbanos e rurais, eclesiásticos e empresários, conservadores e radicais. Alguns indicadores econômicos podem nos ajudar a resumir rapidamente a situação: a desvalorização da moeda nacional, o gourde, de 20% ao longo de 2018; inflação de dois dígitos que alguns analistas estimam na ordem de 14 ou 15%; o desperdício de recursos públicos em gratificações de todos os tipos absorvidos pela classe política; má gestão econômica de um Estado que não tem sequer um orçamento oficial desde que foi retirado o previsto para o ciclo 2018-2019 ; os níveis alarmantes de desemprego e a completa informalidade do mundo do trabalho; a ruína pronunciada da produção agrícola; o contínuo êxodo de jovens, expulsos do campo para a cidade e de lá para países onde são discriminados e sobre-explorados; e, finalmente, a fome que assola quase 60% da população.

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Um carro blindado das Nações Unidas, conduzido por militares estrangeiros, perdeu o controle e bateu em um tap tap, o meio popular de locomoção haitiana. O saldo, trágico, foi de quatro mortos e nove feridos. Um acidente involuntário, sem dúvidas. Mas o espanto e raiva dos cidadãos comuns não parece ser devido à inexperiência do condutor, mas à incapacidade de entender por que um carro blindado, um veículo de guerra, circula ameaçadoramente por um país pobre, sem forças armadas e que não representa uma ameaça para a segurança de países terceiros. Há 15 anos começou a chamada pacificação do Haiti, liderada pelas Nações Unidas e consagrada na intervenção de uma força militar e civil multilateral, a MINUSTAH (agora MINUJUSTH). Mas hoje, a principal ameaça para a população, em vez de insegurança local (baixa, se comparada com o resto da região), e até mesmo mais do que o poder representado pelas suas próprias forças policiais, é a presença de forças de ocupação. Abusos sistemáticos contra as mulheres dos chamados “guetos”, entre 7000 e 9000 mortes pela epidemia de cólera trazida ao país por um contingente de soldados nepaleses, e um número desconhecido de jovens mortos nas favelas, são contados da capital Port-au-Prince. No Haiti, como poderia acontecer na Venezuela, a chamada “ajuda humanitária” nada mais é do que um excelente álibi para violar a soberania territorial de nossas nações.

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Dez mortos já reconhecem as forças policiais. Cerca de meia centena e igual número de feridos, afirmam enfaticamente setores da oposição e movimentos sociais. Nos últimos dias, as ruas e redes sociais mostram uma série de imagens escabrosas. Jovens e crianças deitadas, morrendo, nas ruas da capital. Um militante popular resgatado por seus colegas, depois de ser abatido por uma bala policial nas proximidades do parlamento. Uma densa fumaça preta que cobre a cidade quase permanentemente, gerando um clima irrespirável. O mercado de Croix-des-Bossales, mil vezes incendiado, mil vezes reconstruído, novamente reduzido a um emaranhado de ferro retorcido. Mas também há, sem dúvida, imagens heróicas, com esse heroísmo típico de pessoas simples, sem ter para onde correr, que se encorajam. Estar nas ruas do Haiti hoje é muito mais que uma opção política e um gesto de coragem: é uma necessidade vital, o cross desesperado de um povo contra as cordas. Homens em cadeiras de rodas ou com muletas marchando ao sol escaldante do meio-dia. Vendedores e mulheres idosas gritando seus slogans ultrajantes em face da repressão policial. E também, pequenos gestos de solidariedade internacional que brilham como luzes fracas e chegam ao país, quebrando as barreiras da linguagem e da preguiça.

Nou gen dwa viv tankou moun. “Temos o direito de viver como gente”, diz uma faixa que sintetiza um programa mínimo, elementar e meramente humano. O programa de um povo que ainda se lembra das glórias do passado, que ainda acredita nas possibilidades de regeneração nacional e que fanaticamente, e pela segunda vez, busca sua independência e dignidade. Um povo que sofre, sim, mas jamais se resigna.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Lautaro Rivara

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