NULL
NULL
O discurso de Vladimir Putin em Sochi marca um ponto de viragem nas relações internacionais.
O presidente russo deixou claro que ele agora já não vê os Estados Unidos como “parceiro”.
Não se trata de uma declaração de guerra, mas de um facto: os Estados Unidos
estão em guerra contra o resto do mundo. Este texto analisa as consequências deste passo em frente.
Em Sochi, no mês de outubro de 2014, Vladimir Putin reformulou drasticamente as relações entre a Rússia e Washington. Um discurso ponderado; seria um erro grave subestimar a sua importância. Muito mais forte e, às vezes, dramaticamente claro em relação ao que ele havia pronunciado em Munique, em 2007. No decurso destes 14 anos no poder o presidente russo nunca tinha ido tão longe. E, compreende-se melhor porquê seguindo o seu raciocínio.
Vejamos de que revisão, ou “Reset”, se trata. Até ontem, Putin havia permanecido “dentro” do esquema pós-Guerra Fria. Ele ficara lá, não só porque não tinha verdadeiramente escolha como porque, com toda a probabilidade, acreditava neste esquema que ele achava útil e realista. Mas, a ideia de o ultrapassar permanecia bem presente no seu espírito, a mais ou menos longo prazo, construindo com os Estados Unidos uma nova arquitetura para a segurança internacional.
Falar de «sapos» sobre tudo o que a Rússia teve de engolir sem tugir palavra, durante anos, desde a queda do Muro de Berlim é um doce eufemismo. Seria mais exato falar de palmadas em série. A Rússia foi posta à margem da maior parte das principais decisões a nível internacional, relegada para segundo plano, afastada sem nenhuma consideração. Isto foi (também) uma maneira de lhe fazer compreender que ela só contava «para as sobras», e, que não nos importamos que isso mude.
Excluída da gestão de conflitos em África, ignorada no debate sobre as questões financeiras, colocada na fila de espera da Nova Ordem Mundial. Duramente atingida aquando da guerra na ex-Jugoslávia, indo até ao bombardeio de Belgrado e independência do Kosovo. Apenas admitida à mesa das negociações quando era absolutamente indispensável, como nas discussões com o Irã e durante a crise síria.
Pior: com os últimos presidentes americanos, de Bill Clinton a Barack Obama passando por George W. Bush, os Estados Unidos têm manobrado à escala planetária omitindo regiamente reconhecer a área de influência da Rússia, indo por aí sem qualquer tipo de atenção diplomática. Instalaram-se em toda a Ásia Central ex- soviética: do Azerbaijão ao Quirguistão. Nem sempre com a mesma facilidade, claro, mas sendo o principal passar a mensagem: Washington significava a Moscou assim que não dava qualquer importância ao peso da Rússia nesta região do mundo.
Já para não falar da Otan, cuja expansão para o leste, após o fim do Pacto de Varsóvia, continuou sem descanso, simultaneamente ao alargamento da União Europeia a toda a Europa Oriental, até incluir alguns territórios que tinham feito parte da União Soviética como as três repúblicas bálticas. Tudo em violação dos acordos, orais e escritos, que impediam à Otan instalar bases ou armamento nas novas repúblicas que aderiam umas após as outras à União Europeia. Uma expansão acompanhada de declarações cada vez mais distantes dos atos, e segundo as quais a expansão da Otan não era motivada para um cerco progressivo à Rússia.
Finalmente, as operações destes últimos anos, com a inclusão da Geórgia de Mikhail Saakashvili nos mecanismos da Otan, e a promessa de uma futura entrada na Otan, a todo o vapor, da quarta ex-república soviética; e, com as pressões e promessas semelhantes feitas à Moldávia. Lembremos também a «guerra da Geórgia», que se concluiu com a derrota de Tbilisi após o massacre de Tzkinvali e a intervenção das forças armadas russas para repelir os Georgianos do território da Ossétia do Sul. O reconhecimento pela Rússia das duas repúblicas da Abecásia e da Ossétia do Sul (que Putin não formalizara até agosto de 2008) foi o primeiro sinal mostrando que o Kremlin decidira – mesmo que isto não tivesse sido de sua própria iniciativa mas, a tal, forçado pelas manobras adversas – a dizer “stop” a Washington.
Tudo isso foi subitamente atirado para segundo plano pela perigosa aventura do golpe de Estado em Kiev, que produziu o derrube pela força do presidente Viktor Yanukovych e o estabelecimento de uma nova Ucrânia ostensivamente hostil e belicosa “vis-à-vis” a Moscou. A manobra toda, não só com o consenso mas, também, com o financiamento, supervisão e controle pelos norte-americanos das operações no território da Ucrânia, primeiro a nível político, e militar em seguida.
Não se pode compreender, plenamente, a síntese feita por Putin em Sochi, se não se levar o conjunto destes acontecimentos em conta.
A conclusão que se impõe é a seguinte: a liderança norte-americana não prevê qualquer forma de multipolaridade, nem qualquer respeito de regras entre parceiros do mesmo nível. Não há quaisquer regras comuns. O que resta é apenas o caos, sem qualquer orientação geral.
Putin observou – sem o dizer explicitamente, mas mostrando que compreendeu, perfeitamente, que o verdadeiro alvo era ele, o próprio. Que as sanções económicas não visavam sancionar a Rússia, mas sim a penalizar o seu circulo. Que nos comportamentos e declarações dos dirigentes ocidentais, discernia-se facilmente a ideia que Putin não representava a Rússia e que, portanto, uma vez que ele tivesse sido eliminado a Rússia poderia reentrar na linha.
Dito por outras palavras, o Ocidente entende não negociar com a Rússia enquanto Putin permanecer à sua cabeça.
A resposta de Sochi é nítida e clara, e constitui um ponto de não retorno. Ele apoia-se em vários pilares fundamentais. O primeiro é a ideia que a unidade do Ocidente é relativamente precária. A Europa está longe de ser unânime atrás da América. Mesmo com reservas ela continua a ser um parceiro. Os números relativos às trocas económicas e comerciais falam por si, tanto como a história do período pós-guerra. É o primeiro pilar. E isso poderá ser uma aposta que não se renovará. Mas é claramente uma maneira de deixar em aberto todo o conjunto de cenários possíveis. Putin mostra que sabe perfeitamente que a Rússia, que ele tem entre as suas mãos, está associada de mil maneiras ao sistema ocidental. Mesmo durante os seus 14 anos de poder, e não apenas durante a era Yeltsin, a Rússia atou-se de pés e mãos ao destino do Ocidente. Ela está, portanto, vulnerável e deverá pagar a fatura, que será sem dúvida muito amarga. Putin, encontra-se, assim, encostado à parede e terá que provar aos seus concidadãos que consegue desenvencilhar-se disto .
O problema poderia desanuviar-se devido à crise política desta Europa. A erosão dos partidos políticos, em quase todo o lado, mostra que se pode encontrar outros interlocutores fora do quadro dos «conservadores» tradicionais, ligados aos partidos de esquerda socialdemocratas agora todos pró-atlantistas. A Europa popular desloca- se para a direita, tomando um cunho anti-europeu, anti-americano e anti-globalista, e converge para o outro pilar sobre o qual Putin se apoia : o do patriotismo, do conservadorismo ético, dos valores tradicionais da família, da educação, e do respeito pelo passado. A «Família europeia» poderá vir a estar muito bem modificada nos próximos anos. E há, aqui, um terceiro pilar este evidente : o Oriente, a China, o Irão, o resto do mundo. É para esta direção que se vai virar a águia de duas cabeças se as tentativas para o Ocidente correrem mal. As sanções— explica Putin— não pararão esta Rússia, que, tal como ele a descreve, aparece como subitamente acordada, solidária e compacta, como ela não estava desde há pelo menos dezenas de anos. É uma espécie de prelúdio para um governo de salvação nacional, no qual poderiam muito bem participar os comunistas de Guennady Zyuganov, os liberais democratas de Vladimir Jirinovsky, tal como os nacionalistas de direita e de esquerda, ignorando olimpicamente as distinções que existem na Europa e, mais geralmente, no Ocidente, mas que nunca tiveram um peso real na Rússia.
A «América» de Obama, a «América» que Moscou percebe como em vias de enfrentar uma crise sem retorno, (já que após Obama, poderemos muito bem chegar do mau ao péssimo com Hillary Clinton, que ganharia as eleições na base de um programa republicano dos mais radicais), não é mais um parceiro. O urso russo— assim se exprimiu Putin –- não entende sair do seu território. Ele não tem ambições expansionistas. Mas isso não significa, no entanto, estar disposto a ser desalojado.
Putin chegou a esta conclusão. É o seu plano para resistir. Veremos agora se ele está à altura de o executar capazmente. E, com esta «América» que joga ao «ou vai ou racha», a partida anuncia-se árdua. Sobretudo quando os dois protagonistas estão encostados à parede.
Giulietto Chiesa é jornalista. Ele foi correspondente de El Manifesto e de Avvenimenti, colaborador de inúmeras estações de rádio e televisão na Itália, na Suíça, no Reino Unido, na Rússia e no Vaticano. Autor de diversos obras, ele escreveu, nomeadamente, sobre a dissolução da URSS e sobre o imperialismo norte-americano. Antigo deputado ao parlamento Europeu (Aliança dos Democratas e Liberais, 2004-2008), é membro do Bureau executivo do World Political Forum (Fórum Político Mundial).