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Fernanda Pompeu*
Faz trinta e seis anos, Chico Buarque compôs uma canção cuja letra conta de uma mulher que já foi namorada “de tudo que é nego torto, do mangue e do cais do porto. A rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos, dos velhinhos sem saúde, das viúvas sem porvir.” A cidade toda, ao vê-la, canta em coro um refrão: “Joga pedra na Geni! Ela é feita para apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!”
Um dia aterrissa um zepelim gigante na cidade. Seu comandante ameaça explodir tudo “com dois mil canhões”. Mas ao ver Geni, ele se encanta e faz a proposta: se aquela formosa dama o servir, a população estará salva. Acontece que ela se recusa a dormir com o mandabala. Diz: “Prefiro amar com os bichos.” O prefeito, o bispo, o banqueiro, o zé-ninguém imploram para Geni dar para o forasteiro e resolvido. A chamam de “Bendita Geni!”
Geni domina o asco e cede. “O homem se lambuzou a noite inteira até ficar saciado, e nem bem amanhecia partiu numa nuvem fria com seu zepelim prateado.” A cidade foi salva pela mulher que todos desprezavam. Ela vê a aurora surgir e, por um momento, se sente uma heroína. Melhor, uma redentora! Até ouvir o coro dos cidadãos: “Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita para apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!”
Às vezes penso nas milhares de Genis que habitam ao nosso lado. Geni não é necessariamente uma mulher. Não é necessariamente uma prostituta. Ela pode ser o garoto gordinho que sofre bullying na escola. A adolescente lésbica enfrentando uma malta de machos. A menina negra coagida a alisar seus cabelos. A travesti morta a facadas numa esquina qualquer. O homem tão pobre que nem dinheiro sobra para andar de ônibus.
Ao olhar para as Genis, reflito também nos atiradores de pedras. Sujeito individual ou coletivo que sonha em fazer do mundo sua imagem e semelhança. Aquele que é contra o casamento homossexual, porque é hétero. Aquela que é contra as cotas raciais, porque nasceu branca. Aqueles que condenam os ateus, porque são de Jesus. Aquelas que falam mal das outras, porque são do bem.
Qual a razão de um comportamento diferente ou minoritário ameaçar a maioria? Quem tem direito de impingir um jeito de viver sobre um outro jeito? Eu sei! Somos ótimos juízes da vida alheia e péssimos quando se trata da nossa. Mas, talvez, a canção do Chico Buarque seja uma oportunidade para nos revisarmos e, com algum esforço, eliminarmos ideias ortodoxas, fundamentalismos sufocantes. Viva e deixe o outro viver sem julgamentos e pedras pode ser a luz do farol a nos guiar entre rochedos.
*Colaboradora de Diálogos do Sul – Imagem: Régine Ferrandis