O artigo “Uma Comissão de Anistia sem ideologias”, publicado em 15 de setembro nesta Folha e de autoria do presidente da instituição, João Henrique Nascimento de Freitas, acaba por atingir resultado diametralmente oposto ao almejado. Seu teor confirma os arbítrios praticados pelo órgão, os quais tenho denunciado, como a sistemática negativa de requerimentos sem análise acurada das provas.
Há ainda a ameaça de me afastarem sumariamente da comissão (sou o único representante dos anistiados dentre os 27 integrantes do órgão), sob a alegação de que, pasmem, atuo como advogado na defesa de anistiados. Tal arbitrariedade é objeto de “carta de repúdio”, assinada por 31 associações de anistia e direcionada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro (PSL).
Contraditoriamente carregado de ranços ideológicos, o referido artigo afirma a certa altura que a Comissão de Anistia está caminhando, “apesar de todos os esforços dos agentes que carregam ideologias da chamada ‘esquerda radical, revolucionária e revanchista’” —expressão reveladora de uma retórica pautada pela agressão, e não pelo argumento, típica de seitas ideológicas e tão imprópria em uma democracia.
Se o Brasil tivesse trabalhado o desenvolvimento econômico a partir de Celso Furtado, os problemas da fome a partir de Josué de Castro, a identidade nacional a partir de Milton Santos e Darcy Ribeiro e a educação pública a partir de Anísio Teixeira e Paulo Freire, certamente trataríamos o debate entre Adam Smith e Karl Marx como algo tangencial. Ocorre que todos os intelectuais brasileiros citados acima, sem exceção, foram perseguidos pela ditadura militar, o que nos retirou a possibilidade de debater com a devida profundidade os problemas do país.
O texto afirma também que a comissão está trabalhando no sentido de “proteger o erário” e que “o desafio será superado e o resultado apresentado, pois a comissão não deve perpetuar-se”. Salta aos olhos que o objetivo de João Henrique e seus aliados não é promover a Justiça, mas simplesmente acabar com o órgão, custe o que custar, arruinando o próprio pacto que fundou a nossa redemocratização.
Antonio Cruz / Agência Brasil
Damares anuncia auditoria em atos da Comissão de Anistia
A chamada Justiça de Transição não tem o condão de proteger o Estado. Seu objetivo primordial, em qualquer lugar do mundo, é identificar, reconhecer e reparar erros e agressões aos direitos humanos perpetrados por estruturas estatais, seja contra civis, seja contra militares. Assim, ao se comprometer com o Estado, e não com a verdade e a Justiça, a Comissão de Anistia está, no fundo, renunciando à sua finalidade legal e ajudando a ressuscitar o fantasma da ditadura, que voltou a assombrar todos nós.
A postura do comandante em chefe da Comissão de Anistia demonstra que ele está comprometido com a ideologia do governo federal, e não com a supremacia da Constituição; com a “economia”, e não com a Justiça; com a ocultação, e não com a revelação da verdade.
Melhor seria se ele tivesse atentado à advertência feita pelo advogado e educador norte-americano Derek Bok, que cunhou a máxima: “Se você acha que a educação é cara, experimente a ignorância”.
*Victor Mendonça Neiva é colaborador da Revista Diálogos do Sul, advogado e representante dos anistiados na Comissão de Anistia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
* Publicado originalmente em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/10/quando-a-ideologia-cega.shtml e reproduzido com autorização do autor
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