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Foto: UNRWA / X

Queda da Síria agrava massacre palestino e viabiliza guerra da Otan contra Irã

Troca de regime na Síria supõe derrota sem paliativos para o chamado “eixo da resistência”, incluindo o Irã, que perde acesso terrestre ao Líbano, via fundamental para a ajuda à Palestina
Rafael Poch-de-Feliu
Contexto y Acción
Barcelona

Tradução:

Ana Corbisier

O desmoronamento do regime sírio faz parte de uma série histórica intitulada “reconfiguração do Oriente Médio”. Esta série foi iniciada pelos neocons norte-americanos depois do fim da Guerra Fria. Acreditavam ter saído vencedores daquele momento e pensavam que podiam impor, por fim, uma ordem mundial sob sua exclusiva disciplina (o “fim da história”), mas acontece que o planeta lhes vinha grande. Esqueceram que o afundamento de uma parte do mundo, da URSS e seu bloco, denotava a enfermidade do resto. 

Primeiro o Iraque, depois a Líbia e agora a Síria, todos os regimes árabes que estavam fora da disciplina ocidental foram caindo um depois do outro. Cumpriu-se a letra daquele memorando do Pentágono que o general Wesley Clark, então comandante supremo das tropas da Otan na Europa, formulou assim: “Vamos acabar com sete países em cinco anos, começando pelo Iraque, e depois a Síria, o Líbano, a Líbia, a Somália, o Sudão e, para terminar, o Irã”.

Mas as coisas não saíram como estava previsto. O resultado da mudança não foi ambíguo e sim desastroso para seus próprios promotores. O lugar de regimes hostis com os quais depois de tudo era possível chegar a acordos, foi ocupado por um panorama de sociedades destruídas. Hoje nem Washington nem ninguém pode dizer que controla o Oriente Médio mais do que ontem. Pelo contrário, as antigas disciplinas se romperam ou se transformam, e o número de atores que desejam restabelecê-las à sua medida aumentou notavelmente.

Quadro na Síria é parte do plano da Otan para dissolver Estados seculares do Oriente Médio

Todos os regimes árabes fora da disciplina ocidental foram caindo um depois do outro

“Buracos Negros”

Seis dos sete países mencionados são buracos negros. Só falta o Irã. Os que entendem de Oriente Médio dizem que a guerra contra este país está agora mais próxima do que nunca. 

Neste mau negócio, as sociedades pagaram um extraordinário preço de devastação, colapso social e morte. A queda da Síria não foi uma vitória popular como sugere a grande mídia, e sim só foi possível depois de mais de dez anos de sanções ocidentais, guerra civil por procuração com centenas de milhares de mortos e vários milhões de refugiados e total asfixia econômica, agravada nos últimos anos por uma ocupação militar que tirou do regime seus principais recursos petroleiros e alimentícios.

Desde 11 de setembro de 2001, a guerra contínua desencadeada pelos Estados Unidos no mundo custou oito trilhões de dólares

Desde o 11 de setembro de 2001 novaiorquino, a guerra contínua desencadeada pelos Estados Unidos no mundo (Afeganistão, Iraque, Iêmen, Síria, etc.) custou oito trilhões de dólares (duas vezes o PIB da Alemanha) para ocasionar entre 4,5 e 4,7 milhões de mortes (diretas e indiretas) e 38 milhões de deslocados. Os povos daquelas “ditaduras soberanas” e outros da região que viveram as “primaveras árabes” não só não se emanciparam como pioraram de vida.

“Campos de concentração”

Os manifestantes da praça Tahrir derrubaram Mubarak e obtiveram El Sisi, que governa à beira do colapso socioeconômico. Caiu Kadhafi, e a Líbia, o Estado mais próspero da África, se transformou em um arruinado mosaico de milícias com campos de concentração para migrantes financiados pela União Europeia e uma desestabilização e militarização que se estende por toda a região subsaariana.

Campos de deslocados superlotados e sem escolas: o drama das crianças vítimas da guerra da Síria

O Iraque foi destruído como Estado e se tornou uma série de entidades falidas, em grande parte em sintonia com o Irã, que se pretendia debilitar. Em todos estes casos, os serviços de propaganda ocidental, conhecidos como “meios de comunicação”, nos venderam o mesmo mundo feliz e as mesmas imagens de estátuas derrubadas, palácios do tirano saqueados e cárceres sinistros. Será diferente agora no caso da Síria? Em todo caso, nossos dirigentes repetem o discurso sem se dar ao trabalho de olhar para trás. 

A queda do regime de Damasco e a tomada do poder dos islamistas é uma “oportunidade”, diz a presidenta Von Der Leyen

Oportunidade

A queda do regime de Damasco e a tomada do poder dos islamistas é uma “oportunidade”, diz a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O presidente da França, a nação que em 2008, três anos antes do início da guerra civil induzida, convidou Bashar al-Assad para a tribuna de honra do desfile do 14 de julho nos Campos Elísios de Paris, se felicita pela queda de seu “Estado bárbaro”.

A representante da política exterior europeia, Kaja Kallas, saúda o “positivo e tão esperado sucesso que mostra a debilidade da Rússia e do Irã”. Ninguém se lembra de que o novo líder salafista de Damasco, Abu Mohamed al Golani, continua com busca e captura decretada por terrorismo com uma recompensa oferecida de dez milhões de dólares em um pasquim do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. 

Biden explica que a queda de El Asad foi possível “diretamente” graças “ao apoio incondicional dos Estados Unidos”

Autores e padrinhos do genocídio palestino como o presidente Joe Biden e o chefe de Governo israelense, Benjamín Netanyahu, não só se felicitam pela queda do regime sírio, como reivindicam seu protagonismo nela. Enquanto se faz acreditar ao público que o assunto está relacionado com algum tipo de revolta popular, Biden explica que a queda de Assad foi possível “diretamente” graças “ao apoio incondicional dos Estados Unidos”. “Resultado direto dos golpes que infligimos ao Irã e ao Hezbollah”, disse Netanyahu, que celebra o “histórico dia” enquanto suas tropas se internam na Síria a partir dos altos do Golã.

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Hadi al-Bahra, um dos líderes da oposição ao regime, confirma a tese de Netanyahu: os russos estão entretidos na Ucrânia e “por causa da guerra do Líbano e da diminuição das forças do Hezbollah, o regime de Assad tinha menos apoios”, diz. Outro comandante rebelde citado pela imprensa israelense vai até mais longe e deseja uma “boa coexistência e harmonia” com o Estado sionista: “Diferentemente do Hezbollah, que diz querer libertar Jerusalém e os Altos do Golã, nunca fizemos comentários críticos contra Israel”, afirma. Muito de tudo isso é delírio, um delírio que tenta dar forma racional ao império do caos que todas estas forças animam e para o qual só a louca corrida de Israel parece ter um verdadeiro roteiro.

Em uma observação mais concreta, a queda da Síria supõe uma derrota sem paliativos para o chamado “eixo da resistência” que une Irã, milícias chiitas como o Hezbollah, os bravos iemenitas, formações do Iraque e o Hamas, mas sobretudo supõe um revés para a sofrida resistência palestina. As rotas de aprovisionamento do Hezbollah foram cortadas e o próprio Irã deixa de ter acesso terrestre ao Líbano pela Síria, com o que se rompe um vínculo geográfico fundamental para a ajuda à Palestina

Frentes intercomunicantes

Em uma leitura mais geral, a queda do regime sírio confirma que todas as frentes bélicas estão intercomunicadas. De repente, os adversários ocidentais demonstram que podem causar muito dano a Moscou e a Teerã em outras frentes. A traição de Erdogan, um sócio econômico importante para Moscou que inclusive pretendeu mediar na Ucrânia, fez voar pelos ares o frágil entendimento triangular tecido pelo ministro de Exteriores russo, Sergey Lavrov, entre Rússia, Irã e Turquia quanto à Síria. A imprensa de Kiev alardeia abertamente a ajuda prestada aos salafistas sírios. Vistos como o arranque de algo com possível horizonte alternativo na recente cúpula de Kazan, os BRICS+ evidenciam de repente sua incoerência interna, sua debilidade e incapacidade para agir concertadamente em situações concretas. 

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Ainda desconhecemos a geografia do desmoronamento em Damasco e por que o paupérrimo exército não lutou. Que acertos e intrigas houve entre os generais de Assad? “Não podemos ser mais sírios que os sírios”, disse Putin, eludindo toda responsabilidade de Moscou no que foi um fenomenal revés para o Kremlin, que agora tenta salvar os restos. A mídia russa tenta dissimular o fiasco como pode e tende a culpar Assad. Mas, no fim, tudo isso é irrelevante ao lado do que supõe para o massacre de palestinos atualmente em curso.

Adquirem ainda maior viabilidade os planos israelenses para a expulsão do povo palestino de sua martirizada terra, como no passado ocorreu com as etnias indígenas do faroeste americano. Em um esclarecedor artigo escrito em Beirute em 6 de dezembro, o ex-diplomata escocês Craig Murray augura um cenário muito inquietante: “As potências sunitas aceitarão o aniquilamento de toda a nação palestina e a formação do Grande Israel, em troca do aniquilamento das comunidades chiitas na Síria e no Líbano por Israel e das forças respaldadas pela Otan, inclusive a Turquia”. A guerra contra o Irã parece mais próxima do que nunca.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Rafael Poch-de-Feliu Foi correspondente de La Vanguardia em Moscou, Pequim e Berlim. Autor de vários livros; sobre o fim da URSS, sobre a Rússia de Putin, sobre a China, e um ensaio colectivo sobre a Alemanha da eurocrise.

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