Mas…não. Não foram as chuvas que mataram até agora mais de 150 pessoas neste verão. Matar é um verbo, uma abstração que representa um fenômeno real, uma ação. As gotas, nesse sentido, são apenas as mensageiras inanimadas que entregam destinos cruéis e premeditados por uns para alguns. As mortes não são tragédias, os mortos não estavam nos lugares errados nas horas erradas.
Crivella diria que se trata de um suicídio coletivo de centenas que escolheram morar em territórios irregulares, mas essa definição seria ainda mais lunática.
Quando o ser humano se enfrentava com temporais, raios e trovões, criou seus deuses para interpretar esses fenômenos. O velho esteriótipo ocidental do indígena fazendo a dança da chuva, que tem tanta fé quanto um cristão moderno nos poderes das entidades mágicas que ele crê, serve de exemplo. De certa forma, indiretamente, com este ritual ele faz aquilo que tanto destaca sua espécie: a capacidade de modificar conscientemente a natureza, se não por nós diretamente, que seja por seres poderosos que comandam o mundo, com os quais pela metafísica conseguimos, talvez, nos comunicar e ter o mínimo poder sobre a natureza.
Diante do medo e da fascinação com o desconhecido e inexplicável, seja os raios ou as chuvas que surgiam e caiam, nada mais humano do que buscar entender as causas desses fenômenos, intervir neles e até modificá-los para nossos interesses através da magia ou da fé. Hoje, porém, o nível científico e tecnológico nos permite compreender as leis do tempo e do clima. Desenvolvemos a meteorologia que sabe as determinações que geram as nuvens, a influência das correntes marítimas e tal. Podemos prever as chuvas. Conseguimos até modificar o clima como prova o mortífero aquecimento global. Mesmo assim, pessoas continuam a morrer por causa da chuva.
Agência Brasil
Quando políticos asquerosos como Crivella culpam a população pobre e trabalhadora é porque naturalizam resultados de origem social
Ou melhor, um certo grupo de pessoas.
18 mortes no litoral Sul e 30 desaparecidos; no rio morreram 5; são 55 mortos em Minas Gerais. A reportagem necrófila da GloboNews mostra que as milhares de pessoas que perderam suas moradias, familiares e amigos, são trabalhadores pobres excluídos para as piores posses, nos piores territórios, destinados à sobreviver para trabalhar, trabalhar para morrer soterrado. Perder familiares e amigos pelos céus que deveriam trazer a paz.
Mesmo com satélites e protótipos de todo tipo para examinar o tempo, domina ainda a agência de sujeitos incontroláveis na morte das pessoas. Mas isso é falso, se trata de um fenômeno humano, não natural, não é a chuva que mata, as mortes não são trágicas.
Pessoas que moram em condomínios de luxo no Guarujá não são mortos pela chuva mesmo quando ela cai mais forte. Alguns até desfrutam um bom temporal. Para alguns, pode ser um alívio para a poluição, para outros, a perda total de suas posses e moradia inundadas, como bem mostrou o filme Parasita. O mesmo fenômeno tem efeitos díspares entre as classes sociais.
Quando os noticiários afirmam que quem matou foi a chuva, ou quando políticos asquerosos como Crivella culpam a população pobre e trabalhadora é porque naturalizam resultados de origem social, ou, ainda mais sujo, culpam diretamente os injustiçados. As classes dominantes sempre tentam naturalizar sua dominação, seja pela religião ou por uma racionalidade condizente.
Não foi Tupã, Thor ou São Pedro, tão pouco foram as chuvas que mataram essas pessoas. A chuva é incapaz de matar, ela não tem essa capacidade de ação. Se ela mata, seria ela uma assassina? Ou o é um julgamento condizente, já que culpa algo que é incapaz de ser julgado? No capitalismo, a lógica burguesa interpreta a realidade de acordo com a sua imagem e semelhança, consequentemente encontrará um fundo irracional para defender o seu Deus moderno. Quem? O capital, não poderia ser diferente.
Se no passado invocamos entidades para ter o mínimo de controle através da mitologia sobre a realidade, hoje a burguesia esconde suas entidades para nada fazer além de dizer que são efeitos incontroláveis de causas naturais, e assim se negar de qualquer responsabilidade das tragédias que seu sistema econômico produz.
Os cenários e as pessoas vítimas das chuvas se repetem em todos os estados. São aqueles que não recebem um salário digno nem direitos suficientes para terem uma moradia digna e acabam repelidos para as periferias. São os que lidam com o desemprego e dão o seu jeito com trabalhos informais e bicos. São em sua maioria negros. Aqueles que moram em bairros sem planejamento, mas com casas construídas no improviso e abarrotadas em pequenos terrenos.
Essa situação é tal porque há uma parcela ínfima de pessoas que detém grande parte das posses e meios de produção do planeta, que concentram a riqueza produzida por aqueles arrastados e soterrados por enchentes. Onde 1% ganham 34 vezes mais do que a metade mais pobre. Onde 10% concentram 50% da renda; enquanto há políticos que no momento se ocupam na imposição da reforma da previdência para “conter gastos do Estado”, gastos estes que devem servir para pagar dívidas obscuras e “estimular” o mercado financeiro e atrair investimento externo e gerar ainda mais capital para a classe dominante.
As vontades do mercado, suas emoções e depressões que geram crises que sempre chocam por serem imprevisíveis até acontecerem, tanto quanto eram os temporais nos tempos mais remotos. O capitalismo nos mantém regidos por suas vontades obscuras, mas também sabemos que antes de tempestades se instala um aroma diferenciado no ar.
É mais que necessário que os mortais acertem as contas com seus deuses modernos e quebrem as correntes limitantes do pensamento metafísico que declaram chuvas como assassinas, ou soterrados e afogados como suicidas. Para isso somente superando as bases econômicas que dão origem a irracional racionalidade capitalista. Ou seja, a deposição do Capital e controle daqueles que realmente produzem, os trabalhadores.
Assim poderíamos produzir uma realidade no ambiente urbano que nos de conforto e prosperidade. Há nível tecnológico e riqueza para isso, mas ela está concentra nas mãos de poucos.
Não haverá mais o desespero diante de um céu acinzentado, somente o proveito do cheirinho de chuva.
Mateus Castor é jornalista
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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